Dracocídio (versão descontinuada) escrita por Luiz Fernando Teodosio


Capítulo 8
8º Assimetria - Roubo e Fuga


Notas iniciais do capítulo

Olá, leitores. Este capítulo saiu com um pouco de atraso por conta das tarefas de faculdade. Tenho um recado importante para vocês nas notas finais.
Este capítulo fecha a primeira metade deste primeiro arco da história.



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8º Assimetria

Roubo e Fuga

A fé draconiana levou Seph ao porão na hora seguinte à conversa com Myriel, carregando um pequeno balde de carne chamuscada. Desceu os degraus que lhe subiam a ansiedade, consciente de que o som de seus passos descalçados podia chamar a atenção do dragão. Quando se virou na direção dele, observou-o dormindo dentro de uma nova gaiola quadrada providenciada pelo pai para que o filhote tivesse mais espaço. Seph esfregou os dedos na própria mão suada. Havia aguardado duas semanas para experimentar o tato com um dragão de verdade e cotejá-lo com a sensação obtida em anos de sonhos noturnos.

Deu passos sorrateiros no chão frio. Mas foram provavelmente as batidas aceleradas de seu coração que fizeram os olhos ofídicos da criatura se abrir. Criou-se um elo visual entre olhos igualmente verdes e um hiato de movimento: o exame da primeira impressão. Seph arriscou um passo; o dragão ainda permanecia como uma estátua. Deu então o segundo passo, o terceiro, e sucedeu-se um erigir de cabeça reptiliana. Ainda assim, o garoto continuou se aproximando, enquanto o dragão se colocava em pé nas quatro patas. Seph queria uma comunicação sincera e silenciosa por meio dos olhos em vez da boca. Quando plantou-se perto da gaiola, notou que o vão entre as grades era pequeno demais para seus braços infantis, porém conseguia colocar as mãos lá dentro. Seph esticou a mão direita para tocar o filhote, numa velocidade instalada no meio termo entre a hesitação e a coragem tal qual o primeiro contato labial entre dois amantes.

Enfim, os dedos passearam nas verdes escamas reptilianas, áspera, quente e dura, quase como havia imaginado nos sonhos, subindo e descendo pelo pescoço. Enquanto ocorria essa descoberta, o dragão pousava os olhos desconfiados no visitante, para ficar alerta ao menor movimento de traição à pureza demonstrada. O afago chegou à região da cabeça. O filhote então cerrou os olhos e rendeu-se ao carinho.

Seph chegou a imaginar que sentiria a mente se esfacelar no ar e que, em seguida, acordaria em seu quarto. Mas os segundos perduraram e provaram que não estava sonhando. Era a realidade. Afagava um dragão de verdade.

— Você tem nome? — perguntou Seph. O dragão soltou um berro frágil, e deu o ar de ser uma negativa. — Você precisa de um. — Um som mais prolongado e ameno soou como um “sim”. E Seph lembrou-se do nome sussurrado em seu sonho. — Que tal… Tiamat? — O dragão pareceu gostar. — Bom. Então será Tiamat.

Seph queria destrancar a gaiola e, como na vida onírica, aninhar o filhote nos braços e senti-lo escalando o peito até os ombros. Não via muita razão em deixá-lo encarcerado, pois não havia como escapar do porão a não ser que alguém deixasse o dragão passar pelo vão da porta ao abri-la. Ele e Tiamat pareciam se entender, e Seph poderia pedir-lhe para não fugir, mas presumia que, no fundo, o dragão desejaria experimentar a liberdade com as asas dele.

O filhote resmungou. Seph reparou que ele estava de olho na carne tostada que trouxe. Deu-a para ele, que abocanhou os pedaços avidamente. Foi a primeira de muitas outras refeições oferecidas pelo garoto.

Seph passou a visitá-lo sempre de manhã, pois a tarde era o horário do pai, e alongava o tempo de visita o máximo que podia, aproveitando para segredar os sonhos dragonescos, antes conhecidos apenas por seu diário, e narrar as angústias de ser um pequeno nobre importante. Tiamat era seu fiel amigo. Também não deixou de perguntar ao dragão se ele conseguia soprar chamas, mas tudo o que o filhote conseguiu foi urrar e cuspir baba.

Certa madrugada, o luar que entrava pela janela de um quarto salientou a face envergada de um garoto com sono intranquilo.

Seph acordou. Sentia as pernas inquietas e a cabeça pesada. Saiu do quarto e andou pela casa para saciar os membros inferiores e apaziguar a mente. Desceu as escadas do primeiro andar, furtou uma maça na mesa de refeições e deteve-se a olhar o porão na sétima mordida. Trocaria a cama e as imagens dos dragões em seu quarto por um chão gelado e um dragão de verdade. Permitiu-se imaginar esse desejo apenas para ser frustrado pela porta que não abriria. Mas abriu! A porta não estava trancada como deveria estar. Será que Myriel ou meu pai estão lá embaixo?, pensou.

Sem dúvida, levaria bronca de um deles se o vissem no porão, mas Seph queria saber o que estavam fazendo. Desceu os degraus da forma mais silenciosa possível. Na metade do caminho, ouviu súplicas e impropérios murmurados, além do rugido furioso, mas pouco potente, de Tiamat. Quando Seph visualizou a cena completa, um dos guardas de seu pai tentava enganchar os dedos na gaiola, enquanto o dragão insistia em abocanhá-los. Ele permaneceu em silêncio até ouvir o seguinte argumento delituoso.

— Sua criaturinha repugnante! Já deixou marcas suficientes nos meus dedos… Merda, não para de sangrar. Fecha a droga dessa boca! Juro que te espetava com minha espada se não quisessem você inteiro.

— O que está fazendo?

O guarda virou-se. A face assustada por ser pego em flagrante dissolveu-se em instantes ao ver que era o pequeno pirralho Dracomir ao invés de Boris ou Myriel. Depositou a gaiola sobre uma mesa ao lado e falou com dissimulação:

— Não deveria estar aqui, pequeno Seph. Seu pai vai ficar furioso se descobrir que tentou entrar aqui no meio da madrugada.

— Você está roubando o dragão — acusou Seph, fazendo o sorriso dissimulado no rosto do outro desaparecer. — Pare! Não vai sair daqui com Tiamat.

— Tiamat? Quer dizer que você já até batizou o filhote? — riu o guarda. — Ah, garoto, apenas saia da frente. — E desembainhou a espada.

Seph engoliu em seco, mas estava disposto a não sair dali. Concebeu a possibilidade de sair gritando pela mansão inteira para que os guardas...

Chamas esverdeadas envolveram o rosto malicioso do ladrão, que gemeu e revirou-se em agonia. Foi a primeira baforada de Tiamat. Seph aproveitou a oportunidade para pegar a gaiola — era um pouco pesada — e subiu as escadas para o corredor. Tão logo atingiu o térreo viu-se cercado por um semicírculo de guardas, com Boris Dracomir no meio deles.

— Saia daí, Seph — ordenou Myriel. O garoto rompeu a guarnição e pôs-se em segurança.

Todos aguardaram a subida desesperada do ladrão, e quando ele abriu a porta do porão, duas dúzias de espadas pairaram no ar em torno dele. Em seguida, o homem capturado foi levado ao saguão. Todos os guardas e a família Dracomir foram acordados para o evento. Houve interrogatório, e não foi necessária muita violência para o ex-guarda dos Dracomir revelar suas verdadeiras intenções em relação ao roubo. Por fim, decidiu-se o que fazer com ele, e Seph ficou tão surpreso com a decisão de deixá-lo simplesmente ir embora que não reprimiu sua indignação:

— Mas ele quis roubar Tiamat. Devia ir para a prisão!

— Ele entregou os nomes dos envolvidos por trás do roubo. — Myriel tentou explicar. — Como compensação, estamos o libertando de seu juramento aos Dracomir. Não se preocupe, Seph, estamos sendo justos.

Muito tempo depois Seph compreendeu o que era ser justo naquela ocasião.

— — — —

Se Myriel soubesse a verdadeira identidade de Maison, a cabeça com o prêmio de quinhentas mil moedas de ouro teria se desprendido do corpo, e o mundo poderia usufruir de uma era afortunada com cinco deuses remanescentes. Contudo, nenhum membro decepado, sequer uma gota de sangue, maculou o chão forrado da tenda.

— Você não é o dracocida — concluiu Myriel, retirando a mão do punho da arma. — Não é nada parecido com a imagem do cartaz de procurado. E parece dizer a verdade sobre ter roubado o mapa de quem afirma ser o dono, ou pelo menos é isso que acredita. Então, diga-me. Como sabe que isto aqui realmente pertenceu ao dracocida? Embora seja uma teoria plausível, a julgar pelas anotações, esse mapa também pode ter estado nas mãos de um Ofensor.

— Achei que a palavra dracocida tinha mais chances de manter-me vivo quando tentou cortar minha garganta. De qualquer forma, esse mapa contém informações relevantes, não?

— Hmpf, provavelmente. Talvez seja uma pista bem pequena do paradeiro do dracocida, mas útil. Conte-me quando, onde e como o conseguiu.

— Há oito dias, numa taberna em Beltic. Roubei-o sem o dono ter notado depois de ele ter enchido a cara e adormecido sobre a mesa. Estava encapuzado, mal dava para ver o rosto dele. — Seph aglutinava informações de passados distintos, torcendo para que o cavaleiro não percebesse.

— Beltic, né? A cidade sagrada mais próxima desse lugar é Agridain. Ofensor ou dracocida é provável que esteja indo para lá.

Myriel tornou a analisar o mapa desdobrado, coçando o queixo despojado de pelos — aparentava menos idade do que possuía. O item continha informações úteis ao clero, incluindo a localização de pontos estratégicos — desatualizados — dos Ofensores. Para Seph, seria uma perda pequena se comparada à descoberta de seu próximo alvo em Agridain. O segredo de sua identidade foi sacrificado por seu futuro paradeiro. Isso eu não posso permitir. Preciso de um embuste que o faça pensar que o dracocida está visando outra cidade.

— O homem do mapa… ele conversou com o taberneiro. — disse o dracocida. Myriel rapidamente voltou a olhá-lo, pois sabia da importância de seus olhos para não cair em redes de mentiras. — Perguntava as direções para Ziengs. — De fato, Seph lembrava-se de uma cena na qual seu antecessor perguntava a um taberneiro, mas de outra cidade, o melhor caminho para Ziengs, uma das cidades sagradas, embora aquele dracocida tenha falecido antes de alcançá-la.

— Ziengs? — estranhou Myriel. — Se há uma chance de ser o dracocida, talvez valha a pena fortificar as redondezas daquela cidade sagrada. Já estou farto desses assassinatos. Aquele maldito vem escolhendo uma ordem aleatória desde o primeiro dracocídio. É muito difícil prever onde será sua próxima ação.

Seph podia sentir o ódio direcionado ao inimigo dos deuses pregado nos olhos de Myriel, a expressão determinada em caçar até o fim da vida a praga ambulante que vinha conspurcando o mundo. Embora tenha logrado seu interrogador até ali, precisava manter o esforço em criar as verdades aceitáveis aos olhos dele.

— Quanto a você, Maison — continuou o cavaleiro. — Eu lhe agradeço pelas informações. São de grande valia em nossa caçada pelo dracocida.

Após convencer o outro de que era um mercenário, Seph achou-se em extrema situação oportuna para investigar sobre o clero. Na verdade, queria muito dissolver o mistério do dragão que escutara há pouco, mas temia ser mortalmente silenciado para o resguardo de algum segredo. Preferiu perguntar-lhe o que os religiosos andavam fazendo para impedir a calamidade frente a gradual queda da Dragonia. Quais os planos dos cavaleiros de fogo para combater o dracocida? Outras perguntas já estavam aquecidas, prontas para serem servidas por sua boca, quando Myriel salientou, na segunda pergunta despejada, que qualquer informação concernente aos métodos de procura pelo dracocida e a atual condição do clero era confidencial. Aparentemente era uma preferência do clero que o assassino dos deuses fosse capturado por um cavaleiro de fogo e não por um mercenário qualquer.

— Não importa o que aconteça com o mundo, vocês, mercenários, se adaptarão a ele. Por mais que a humanidade decaia, homens com poder sempre irão lhes pagar uma sobrevivência transitória. — Myriel enrolou o mapa e avaliou os demais itens carregados por Maison. O mais atrativo, sem dúvida, era a espada embainhada. Myriel retirou-a da bainha e contemplou-a em deleite. — Ela tem a aura de uma espada gloriosa. É estranho que justo você seja o portador desta arma. Aposto que lhe foi dada por alguém que a perdeu em algum acordo. Qual o nome dela?

— Cinzenta. — Pelo menos, era assim chamada quando ela mantinha a aparência de uma espada comum. Em outras ocasiões, ele a batizara de Escarlate. Aliás, era arriscado demais manter a lâmina à vista do cavaleiro. E se a cor do metal, de cinza virasse vermelha, por causa do dragão nas redondezas? Ali estaria, diante daquele homem loiro, o próprio dracocida.

Myriel deteve seus olhos na lâmina da arma como quem admira uma escultura.

— Verdade, o metal é mais escuro que o de outras espadas. Gostei do nome. Cinzenta… Reflete a alma humana. — disse ele, sorrindo. — Há quem diga que somos mera fumaça expelida das narinas dos deuses. Nosso destino é esvair-se com o tempo. Isto é a única coisa que o ser humano é capaz de fazer para se eternizar. É realmente uma bela espada — concluiu o cavaleiro, embainhando a arma e oferecendo-a ao mercenário —, não importa em quais mãos.

Seph hesitou alguns instantes, avaliando algo de negativo e implícito naquelas últimas palavras.

— Estou lhe devolvendo todos os seus itens, exceto o mapa do dracocida — esclareceu Myriel.

— Está me libertando? — perguntou Seph, lamentando em segredo por causa do mapa.

— É uma forma de compensação por ter me dado informações preciosas além deste mapa. Justo, não acha? — Recebeu o assentimento verbal de Maison e finalizou: — Ótimo. Agora recolha seus pertences e saia daqui.

Mas Seph não queria ir embora, não sem antes perguntá-lo a respeito do que ouvira essa noite. Era arriscado, mas crucial.

— O que era… aquilo?

O cavaleiro hesitou na resposta.

— Leve esse segredo com você até o dia de sua morte, mercenário. Agora, vá. — Myriel não parecia muito solícito em esclarecê-lo sobre o dragão.

Seph coletou seus pertences e afligiu-se com o fato de tirar aqueles homens de seu encalço ao preço da ignorância do evento que o levara até ali. Não descobriria nada ao ir embora, mas, talvez, fosse melhor não abusar da sorte. Eram muitos oponentes. Ele relegaria esse episódio e voltaria a se concentrar no dragão de Agridain.

Ao sair, foi observado por Myriel, e depois pelo grupo de cavaleiros de fogo no lado de fora; não deixou de reparar na expressão carrancuda de Kolin. Ninguém lhe disse uma única palavra, e ele nem esperava receber alguma. Somente quando Seph penetrou mais uma vez no bosque, é que se sentiu liberto da observação. Felizmente, havia prestado atenção nas direções quando fora capturado. Presumia que não estava fora do curso, e isso o lembrou da inconveniente falta de um mapa. Seria complicado arranjar um segundo com todos os detalhes do primeiro.

O mercenário libertado pausou seus pensamentos ao escutar ruídos de cascalhos não muito atrás dele. Parou. Grilos e outros insetos preencheram o silêncio humano. Seph retomou a passada, e vez ou outra se podia flagrar o som de uma aproximação. Os olhos se puseram com urgência a exame da floresta. Não espiou a retaguarda, para não dar a entender que percebera o movimento inimigo, apenas os lados. Quando encontrou o que queria, fez parecer o mais natural possível sua caminhada até um pedaço da floresta onde a mata não era tão esparsa, o solo exibia diversas depressões e o luar ainda era mais escasso. Seu corpo farfalhou os arbustos e passos pisotearam a terra recheada de minhocas.

— Pra onde ele foi? — perguntou um dos perseguidores ao perceber que tinha perdido o rastro do criminoso.

— Não sei. Não podemos perdê-lo. O Kolin vai ficar irado quando souber que a gente deixou o maldito escapar — praguejou o outro.

— Decidimos o par no jogo do palitinho. Ele que nem reclame.

— Eu sei, mas o chefe pediu que só voltássemos com a cabeça espetada na espada.

— E você terá uma — pronunciou o homem que irrompeu atrás deste último e brandiu a espada em um rápido movimento horizontal, separando a cabeça do corpo do cavaleiro de fogo.

Se o gume escarlate era afiado para dragões, o cinzento era para humanos.

O companheiro gritou de susto e afastou-se desembainhando a espada para se proteger.

— Myriel pediu apenas uma cabeça, não é? — Seph se aproximou, vislumbrou o pavor e a coragem reprimida no rosto do cavaleiro remanescente. — Mas eu darei uma extra a ele, como recompensa por ter deixado o dracocida escapar. Justo, não acha?


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Notas finais do capítulo

IMPORTANTE: A bookserie entrará num pequeno hiato de dois meses. Ou seja, não haverá capítulo em Janeiro, apenas no final de fevereiro. A razão é porque irei aproveitar as férias para revisar os capítulos já publicados, fazendo algumas correções, e finalizar de uma vez o primeiro arco da história. Não se preocupem, nada na história que vocês já leram até aqui será subtraído; mexerei apenas em frases e algumas cenas que poderiam ser mostradas de uma forma diferente. Portanto, não há necessidade alguma de reler todos os capítulos anteriores.
Gostaria de agradecer os que chegaram até aqui. Espero que retornem comigo em 2015 para mais capítulos de Dracocídio. Boas festas e até a próxima!



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