A Pele do Espírito (versão antiga) escrita por uzubebel


Capítulo 6
Encontro na Floresta




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As frutas tinham gosto de terra, o pão parecia um grande chumaço intragável de algodão na minha boca; forcei-me a engolir. Era sempre assim no dia seguinte ao solstício: o dia do luto. No solstício mesmo, festa, quando os falecidos visitam nosso mundo; aproveitar a única noite em que podemos revê-los é a regra. Mas quando amanhece e os espíritos partem, nada resta além de saudade e do gosto amargo de que nada seria como antes. Nunca.

Mas antes... Antes do quê? Minha própria mente parecia querer me convencer de que minha vida começara depois da morte dos meus pais. De antes disso – cinco anos da minha vida – de ter sido encontrada sozinha por Dorothea, viva, porém muito longe da minha casa em ruínas... Antes disso, eu não me lembrava de nada. Não me lembrava do rosto das pessoas que eu mais amava no mundo, meus pais, além de sorrisos petrificados em fotografias; lembranças pálidas demais para me saciarem, ou para colorirem o branco na minha memória.

E, nesse dia de luto, mal se falava, reinava um silêncio triste e meditativo, ninguém saia de casa... A não ser eu. Ficar entre quatro paredes lamentando sabe-se lá o quê eu perdera, e eu não sabia, me sufocaria. Peguei meu casaco no gancho da porta, Damon pulou em meus ombros depois de eu me vestir, e saí. Era assim todos os anos, e Dorothea nunca questionava meus motivos; ela tinha os próprios fantasmas para velar.

Assim que saí, expirei uma nuvem de vapor, prova de que o inverno chegava, e minha nuca desprotegida, pois meu cabelo era curto, só se mantinha aquecido pelo corpo de Damon, enrolado ao meu pescoço. Seguimos uma trilha fraca até o alto da ilha, uma região coberta de florestas densas. As copas das árvores filtravam a luz da manhã, como cortinas pesadas. Sentei-me numa pedra sobre o alto da elevação, ocultando-me sob as árvores, mas ainda capaz de presenciar uma das mais belas paisagens da ilha toda: uma visão panorâmica de praias e mar cor de jade a perder de vista. Pena que, naquele dia, nada daquilo bastaria para me confortar.

Além das árvores, uma nuvem encobriu o sol. Chorei.

Soluços sacudiram meu peito, escondi o rosto nas mãos e me engasguei com meus lamentos. Damon pulou para o meu colo e se aninhou lá, tentando me confortar. A névoa que eu expelia com a respiração foi se tornando cada vez mais densa, como se dotada de vida própria, e repentinamente também perfumada. Um cheiro suave de flores acompanhado de outro, bem mais dominante, mas ainda assim ambos pareciam intrinsecamente ligados, como duas partes de um todo muito maior do que eu poderia supor. Por um momento, aquele cheiro pareceu lavar minha mente...

Ergui o rosto das mãos e me vi cercada por densas paredes de neblina; em todas as direções só se via a brancura escondendo a paisagem como um véu. No entanto, essa névoa parecia, além de viva, consciente. Cada nova expiração minha, que se condensava ao encontrar o ar frio, se juntava, numa dança cheia de espirais e piruetas, ao todo nebuloso ao redor; e esse todo, por sua vez, se agitava de contentamento ao acolher mais uma parte.

Eu não ouvi passos. Não ouvi nada. Quando ele chegou pelas minhas costas, parecia sequer pertencer a este mundo. Era um garotinho da minha idade, cerca de oito ou nove anos, mas seus cabelos eram brancos como os de um velho; parecia tão antigo quanto o mundo e também atemporal. Sua pele era tão pálida quanto a névoa que o cercava como um cão nos calcanhares do dono, e seus olhos eram como os de um animal, cheios até a borda com íris prateadas e pupilas vigilantes.

E, apesar de nada denunciar sua presença, algo me fez virar e vê-lo vindo na minha direção, com os braços cheios de papoulas brancas, iguais à que aparecera no meu quarto. As flores imediatamente foram ao chão quando ele me viu, espantando-se.

– Lorena? – sussurrou.

Meu nome?

Algumas das flores caíram aos meus pés, e apanhei uma. Era idêntica à que eu guardara junto aos meus tesouros, até mesmo o pólen branco como flocos de neve, e o cheiro... era aquele que impregnava a névoa. Afastei a flor do rosto, sentindo-me tonta. Meu corpo amoleceu, a cabeça girava, a flor caiu no chão e eu também, em seguida, tão alheia que mal senti o impacto. A última coisa que vislumbrei foi um olhar perplexo e atormentado do menino estranho.

– Vocês podem ajudá-la? – a voz soou baixa e distante, mas preocupada, como se não quisesse que eu ouvisse o que conversava. – Eu não sei, não posso curá-la. Seria contrariar meu dever outra vez, mas vocês... Vocês podem e sabem. Estudaram toda a sua vida no templo para isso... Ajudem-na! – suplicou.

Minha pele ardia, mas não havia sangue, porque o fogo cauterizara as feridas. Sonhei com mãos me tratando delicadamente, o unguento fresco, o cheiro anestésico dos incensos, uma energia estranha no ar e minha pele se refazendo magicamente. Todos no lugar ocupavam-se comigo, enfaixando minha pele nova e frágil, menos um, que mantivera distância todo o tempo...

Sentado num canto, com uma expressão muito tensa e cansada para uma criança, os olhos baixos amargurados, as mãos apoiando o rosto, a culpa vincando sua testa por algum motivo. Ele só se aproximou, com passos cuidadosos e lentos, como se eu fosse um animal acuado, depois que todos os outros se foram, e se sentou diante de mim.

Apesar do corpo curado, algo em mim ainda latejava. Algo muito mais doloroso que o corpo queimado... Eu não sabia onde estava, só sabia da notícia que recebera assim que chegara. Onde estão meus pais? Perguntei. Estão mortos, o menino respondeu.

Doía na alma...

O menino na minha frente, como que lendo minha mente, disse:

– Eu posso fazer a dor parar.

– Acorda, Lorena! – Dorothea riu, sacudindo-me – O que te deu para dormir tanto hoje?

Esfreguei os olhos, protegendo-os da luz. O sol que entrava pela janela era o sol quente e alto do começo da tarde. Tarde... Era tarde, por que eu dormira tanto?

– Ah, bom dia – respondi.

–Venha, venha almoçar – Dorothea chamou.

– Almoçar?

– Bom, se tivesse acordado mais cedo, teria tomado o café.

– Mas eu..., eu acordei. Eu comi – levantei a cabeça pesada, confusa.

– Não, não comeu – Dorothea foi ríspida, seu sorriso desapareceu. Parecia que algo a estava incomodando.

– Mas eu me lembro...

– Não – interrompeu-me. – Era só um sonho. Agora venha comer.

Dorothea saiu.

– Damon? – encarei meu gato, que dessa vez não disse nada. – Você também está me escondendo alguma coisa?

Ele também se virou e saiu porta afora.

Joguei as cobertas para longe, desci da cama, descalça, e me ajoelhei. Nem precisava mais contar as tábuas no assoalho, sabia exatamente qual era a certa, com sua cor um pouco mais clara, uma mancha na madeira que parecia um coração, pequenos detalhes assim. Levantei-a.

A pequena papoula ainda estava lá.


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