A Pele do Espírito (versão antiga) escrita por uzubebel


Capítulo 5
Visitas na Noite Enevoada


Notas iniciais do capítulo

Queria agradecer à Lilith, que acompanha e comenta essa história desde a minha primeira postagem e à Monique Góes, que chegou agora mas também já deu seus pitacos. Meninas, vocês afastaram a depressão do meu fim de semana com seus comentários, então esse capítulo é pra vocês.



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Houvera uma cidade naquela praia; agora não havia mais. Tudo fora engolido pelo mar séculos atrás, e destruído. Menos o templo. Quando o mar baixava, ele se erguia, cercado pelos destroços das casas que salpicavam a praia e seus rochedos como ossos emergindo da lama. E, falando em ossos, lá não havia nenhum.

E, mesmo assim, qualquer ilhéu insistiria no mesmo diagnóstico: mortos, estavam todos mortos. Engolidos tão rapidamente pela água que até seus gritos ficaram presos sob a sua superfície, junto com suas almas.

Eventualmente, as ondas cuspiam pela costa da ilha todo tipo de objetos perdidos: cerâmicas, roupas, jóias... Coisas que alguém jamais ousaria tocar, por mais preciosas ou necessárias que fossem. Certa vez, já órfã e mantida sob as saias de Dorothea, caminhando por uma praia qualquer, eu encontrei uma boneca. Devia ter pertencido a uma criança mais velha que eu, com seis anos à época. Tinha olhos negros, abundantes cabelos escuros e usava roupas diferentes de tudo o que eu já vira... Roupas de outra cultura.

E eu a peguei.

Quando percebeu, Dorothea bateu na minha mão, esbravejando para que eu soltasse aquilo agora, AGORA! Disse que o brinquedo estava amaldiçoado, igual a qualquer outro objeto daquela cidade fantasma que o mar trouxesse à tona. Mas ela logo se virou, e jamais descobriu a pequena tábua solta no assoalho do meu quarto.

Aquela boneca foi o primeiro de vários tesouros que reuni ao longo dos anos. E em cada um daqueles objetos havia uma história, coisa que eu mesma havia perdido naquele incêndio e tentava incessantemente recuperar.

E, sobre histórias, imagino se mais alguém descobriu o que de fato afundou aquela cidade...

– O mar está agitado hoje – comentei com Damon, meu gato valente e encrenqueiro.

Tinha pelos brancos, uma mancha preta nas costas, outra sobre o olho direito azul, enquanto o esquerdo era dourado e as pontas das patas eram negras. Seu corpo era marcado por antigas cicatrizes de lutas contra outros gatos, cães e qualquer animal que o encarasse desafiadoramente demais. Um talho particularmente profundo, muito próximo de seu olho azul, cruzava a mancha escura em sua cara. Apenas uma cicatriz eu podia afirmar que não viera de nenhuma briga: o naco que faltava em sua orelha esquerda fora perdido no incêndio, três anos antes. Damon esfregou a bochecha na minha, do alto de sua posição favorita, empoleirado sobre os meus ombros. Talvez estivesse concordando comigo como podia. A casa de Dorothea não era muito longe de um rochedo alto, onde as ondas gostavam de se jogar, então o som do mar me embalava todas as noites. Naquela madrugada, ele mais parecia rugir.

Deitei-me e Damon se aninhou no travesseiro, ao lado da minha cabeça. Puxei as cobertas até o queixo e abracei Damien. Lentamente, fui rendendo-me ao sono. Lembro de, em algum momento entre a vigília e a inconsciência, o mar ter se calado, como se guardado numa caixinha. E de, por entre meus cílios trançados, ver uma névoa densa se espalhar pelo meu quarto. Minhas pálpebras pesavam cada vez mais, e lutavam contra a minha vontade de acordar, de ver o que se passava. Instantes depois a porta se abriu, derramando o brilho dourado de uma vela sobre a neblina e sobre um vulto que entrou gritando com a voz de Dorothea.

– Você! – ela estendeu a vela para algo aos pés da minha cama e a balançou da esquerda para a direita, como se quisesse afugentar um animal selvagem com o fogo. – Afaste-se da menina, SAIA! Você não tem o direito, não! Ou quem pretende machucar agora? – chorou de fúria. – VÁ EMBORA! Vá embora para aquelas ruínas malditas que são a sua casa e não volte nunca! VOCÊ-NÃO-PODE-VÊ-LA!!!

Um forte vento invadiu meu quarto, golpeou as portas e o rosto de Dorothea. A senhora cobriu os olhos e a vela se apagou. A névoa escorregou pela janela e sumiu. O mar voltou a rugir.

Finalmente mergulhei nas águas escuras e quietas do meu sono...

A cama sacolejou e rangeu sob o inesperado peso extra.

Comecei a flutuar ligeiramente acima do meu sono.

– Ele não pode, não pode...

– Calma, Dorothea – consolou-a uma voz rouca e baixa, quase enferrujada, como se não fosse usada habitualmente.

– Não – ela rebateu rispidamente. – E você, nunca se esqueça do porquê eu o permito por perto. E diga ao seu mestre, ou qualquer que seja o jeito como você o chama, para ficar longe. Minha opinião continua a mesma de três anos atrás.

Estendi a mão preguiçosamente para fora dos lençóis e tateei o chão em busca de Damien. Depois de uma noite de sono inquieto, remexendo-me, ele normalmente caía da cama. O que meus dedos alcançaram, no entanto, foi diferente. Ergui-a diante do rosto, uma flor. Uma única, impecável e imaculada papoula branca, que de tão fresca gotejava orvalho das viçosas pétalas. Mas como se metera lá, debaixo da minha cama, eu não sabia. Apenas sentia se tratar de um tesouro.

Um segredo.

Então, escondi-a sob a tábua solta do assoalho.

E seu perfume pareceu afastar os sonhos da minha cabeça.


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