A Pele do Espírito (versão antiga) escrita por uzubebel


Capítulo 2
O Coração do Templo


Notas iniciais do capítulo

Bom, como o prólogo era bem curtinho, já emendei o primeiro capítulo na rabeira.



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Já sentiu aquele calafrio estranho, sua consciência vacilar por um momento ao olhar para o lado, vislumbrar alguém, ouvir uma voz ou uma música, sentir um cheiro e ter a bizarra sensação de que algo lhe é familiar, mesmo que não consiga resgatar na memória o quê seria?

Não sabe onde está, mas sente que já esteve aqui antes, apesar de não se lembrar...

— Anda logo, Lorena! – Ed me apressou.

Eu não conseguia me livrar dessa sensação.

—Pare de pressionar ela, Ed! – Alice o repreendeu e se virou pra mim – Não precisa fazer isso...

— Mentirosa – rebati, amarga, sabendo que teria de me submeter, e descer aquela encosta, e... – Solstício de inverno. Por quê no solstício de inverno? – murmurei.

— Porque não seria assustador o bastante se não fosse solstício de inverno – Ed resmungou e Alice o beliscou – Ai!

— Vou matar o Noah – continuei meu atrapalhado monólogo – Se eu voltar, vou matar ele.

— E se não voltar? – Alice finalmente externou sua preocupação.

Pisquei, distraída, antes de perceber que ela falava comigo.

— Vou assombrá-lo. Fazer barulhos estranhos e mexer nos sonhos dele. Aranhas; todo mundo sabe que ele morre de medo de aranhas. Vou fazer ele sonhar com tarântulas grandes e peludas...

Ed olhou para o céu.

— Logo vai escurecer – averiguou – É melhor você ir.

Gemi, rendendo-me com uma careta.

Muitos metros abaixo, o mar rugia, furioso, e se jogava violentamente contra o rochedo escuro. Parecia até querer me afugentar. Respirei fundo e conferi a corda amarrada à minha cintura; com Ed e Alice segurando-a, e a outra ponta bem amarrada a uma árvore, comecei a descer.

As primeiras pedras eram as mais escarpadas. Depois de transpô-las, o caminho rochoso se tornava menos íngreme e quase aceitável, e a corda, apenas uma precaução boba. Caminhei com cautela, apoiando as mãos nas pedras molhadas de água salgada, apesar de a maré ter baixado há algum tempo. Mais adiante e abaixo, entre o mar e eu, erguia-se um edifício antigo.

Suas paredes de mármore polido erguiam-se até a altura de vários andares. Uma abóbada se sobressaía no teto e seu convexo, exposto ao céu, era coberto com detalhes minuciosos de metal, que brilhavam ao lusco-fusco do ocaso. Arcos adornavam toda a estrutura, portas e janelas altas de madeira pesada e escura. Filigranas de prata clara e ferro escurecido decoravam cada coluna, cada capitel e fluíam para o alto da ampla porta de entrada, até tornarem-se um emaranhado indistinto, como veias em seu caminho até o coração.

Um velho templo, o pensamento ecoou em minha cabeça.

Então, um movimento repentino atraiu minha visão: um vulto indistinto empoleirado sobre a abóbada, contra a luz do sol poente, o que me dificultava vê-lo, que rápida e repentinamente desapareceu.

Sacudi a cabeça, tentando pô-la no lugar, enquanto um calafrio me chacoalhou o esqueleto. Fantasma não, fantasma não..., repeti meu mantra.

— Lorena, tá tudo bem? – Alice gritou.

— Tá! – menti – Eu tô legal.

Continuei caminhando... Estaquei diante da escada de mármore que levava ao templo; enquanto as pedras negras da praia, onde eu pisava, estavam encharcadas, os degraus, o chão e até as paredes do prédio estavam completamente secos. Como se, enquanto a maré estava alta o bastante para cobrir a abóbada inteira, toda a estrutura estivesse protegida por uma gigantesca bolha.

Subi cada degrau com receio e parei no topo do último, esperando por quase um minuto até me certificar de que o mármore não me devoraria. Eu vou matar o Noah, vou matar o Noah..., repeti meu outro mantra.

Adiante, as portas eram tão altas que as aldravas de cabeça de tigre pareciam rir da minha pequenez de criança. Usei todo o meu peso para puxar os aros de metal, achando que as portas velhas e pesadas seriam quase impossíveis de abrir, mas elas se moveram tão facilmente que eu caí para trás, com todo o meu peso. Parecia ter sido azeitada há poucos dias, e não há séculos, desde que o povo que construiu o templo desapareceu..., e não emitiu qualquer ruído. Uma porta que range teria me incomodado menos.

Entrei, apesar do interior escuro. À direita, preso ao batente bem acima da minha cabeça, pendurava-se um sininho de prata. Daqueles que anunciavam ao espírito do templo a chegada de um fiel. Estendi a mão para a corda de seda, prestes a tocar o sino... Um pouco de proteção dos espíritos nunca era de se jogar fora, né? Mas diziam que o templo era mal-assombrado, então talvez chamar a atenção dos espíritos não fosse a melhor ideia...

Infelizmente, o tilintar doce do sino já ecoava pela escuridão crepuscular.

Os únicos fiapos de luz vinham de janelas pequenas e muito altas que rodeavam a base da abóbada, como uma coroa, e iluminavam o côncavo minuciosamente pintado. Além disso, a luz incidia na única mobília de todo aquele grandioso salão: um altar cercado por espelhos d’água límpida e doce – eu me certificara. E, na parede atrás, havia um belo painel esculpido em baixo-relevo, com dois animais, felinos grandes e ferozes, um preto e outro branco, confinados e mesclando-se dentro de um pequeno anel. Pareciam encarar-se com distanciamento, digladiar-se furiosamente e dançar com leveza, tudo ao mesmo tempo. O claro segurava uma jóia vermelha entre as presas, e o escuro, uma azul.

Então, o cheiro de incenso, doce e quente, me envolveu; e percebi os incensos que agora queimavam no altar. Recuei um passo, assustada. Antes, não havia nada lá...

O perfume penetrou em minha mente, acentuando cada vez mais uma impressão – a impressão de que eu já o sentira antes.

Cada passo que eu dei, às cegas, levou-me a outro cômodo, nos fundos. Este, em contraste ao grande salão do qual eu fugira, não passava de um quarto. E lá havia janelas abertas e luz. Mas, além disso, não havia muito mais: uma cama macia, mas simples; uma mesa e uma cadeira; sopa quente, como se tivesse sido preparada há instantes; na parede, a cabeça esculpida de um felino prateado, que segurava na boca aberta um rubi ainda maior que o da sala de orações e, à um canto, um espelho com moldura de prata.

Até que um miado baixo chamou minha atenção. Corri para a cama e olhei sob ela.

— Damon! – chamei, contente, meu gato de olhos ímpares, o direito azul e o esquerdo dourado, que brilhavam nas sombras – Você encontrou o Damien! – comemorei.

Ele respondeu com um miado orgulhoso, enquanto eu metia a mão debaixo da cama e recuperava Damien.

— Você está bem? – perguntei ao velho gato branco de pelúcia, sem medo de que alguém estivesse me vendo, e o abracei – Não se preocupa, isso não vai acontecer de novo. O Noah não vai te roubar e te esconder. Prometo...

Quando ergui os olhos, percebi que estava defronte ao espelho, encarando meu reflexo. Levantei e me aproximei, tocando sua superfície com a ponta dos dedos. O vidro estava morno, como se houvesse sido tocado pelo sol.

De súbito, várias imagens encheram minha cabeça. Eu ainda estava diante do espelho, diante de mim, mas o reflexo que me encarava de volta era uma versão tão mais nova minha, que eu a esquecera. E ela... Eu chorava. Damien estava em meus braços, coberto de fuligem negra. E, sobre meus ombros, olhos prateados me fitavam, e lábios pálidos sorriam e sussurravam.

Tudo bem...

Afastei-me do espelho e logo as imagens começaram a se esvair, como um sonho na manhã. Recuando cada vez mais, bati com as costas na parede oposta, e a joia na boca do animal de pedra caiu no chão com um baque seco. Quando me abaixei e a toquei, a gema se aqueceu e pulsou contra minha pele.

Como um coração.

Soltei-a imediatamente.

— Damon – chamei. Ele miou – Vamos dar o fora daqui.


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