A Pele do Espírito (versão antiga) escrita por uzubebel
– Desculpe, estou atrasada! – disse ao entrar em casa.
– Lorena? Venha cá – Dorothea me chamou.
Corri até a cozinha. A mesa estava atulhada de doces: biscoitos de castanhas, caveirinhas de açúcar, tortas de frutas, caramelo... O cheiro logo me embriagou.
Dorothea, uma viúva de cinqüenta anos pequena e com os cabelos grisalhos firmemente presos, estendeu-me um prato com um bocado de tudo e disse:
– Toma. Leva pros seus pais.
Agradeci-lhe. Saí da cozinha, depois da sala, passei pelo curto corredor e entrei no primeiro cômodo à esquerda. Era pequeno, limpo, sem móveis além de dois altares apoiados contra a parede branca. Sentei-me diante do mais à direita, ajeitando as flores sobre ele. Acendi dois incensos e seu cheiro encheu o quarto. Pus o prato de comida em cima do altar e apanhei a foto amarelada, de bordas chamuscadas, em seu topo.
– Mamãe, papai, eu trouxe doces – beijei o casal da foto – Dorothea sempre diz que vocês gostavam de doces. Só queria me lembrar disso... Feliz solstício de inverno.
– Mas onde você disse que foi mesmo? – Dorothea perguntou.
– Ahn... – eu não disse -, na praia – respondi.
Não pergunta qual praia, não pergunta qual praia...
– Que praia?
Calei-me.
– Lorena? – ela não ia deixar eu me safar.
– A Praia Velha...
Só tive tempo de ouvir a tigela cheia de doces em suas mão se espatifar de encontro ao piso. Pulei para trás, mas Dorothea estava imóvel e rígida como se esculpida em pedra.
– O quê tem de mais? – perguntei, assustada – Nós moramos em uma ilha, há praias por todo lado, literalmente. O quê torna essa tão especial?
A praia velha não era bem vista por ninguém em toda a ilha de Jada mas, sempre que Dorothea falava dela, era mais que receio ou superstição, era pessoal...
Ela virou o pescoço na minha direção, e quase podia ouvi-lo ranger de tensão.
– Você podia ter enfurecido os espíritos – a ideia a fez tremer e executar um complexo gesto de afastar o mal – Me prometa que não vai se envolver com os espíritos, nunca! Me prometa.
– Eu...
– Prometa!
– Eu prometo.
A tensão em seus ombros se foi tão rapidamente, que achei que a velha senhora fosse desmontar diante de mim.
– Que bom... – suspirou.
Dorothea finalmente olhou para baixo e uma careta acentuou suas rugas.
– Quanto doce desperdiçado.
Damon já estava espreitando todo aquele açúcar com interesse demais, então eu o puxei para o meu colo e ele miou com indignação. Caiu no chão, você não pode me negar esse privilégio!, parecia dizer. Dorothea se abaixou para recolher os cacos, mas eu a interrompi.
– Esquece isso, eu limpo tudo – ofereci-me – Leva o resto dos doces pro festival.
Ela concordou e se foi, mas não sem antes separar um punhado das melhores guloseimas especialmente para mim.
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