Cartas Para Quinn escrita por lovemyway


Capítulo 31
Capítulo 31 — Sobrevivente


Notas iniciais do capítulo

[ALERTA: GATILHO DEPRESSÃO]

HELLO DARKNESS MY OLD FRIEND. Não esperavam por esse comeback, não é? 4 anos depois, a cara de pau aqui resolve aparecer de novo com capítulo novo de CPQ. Sempre disse que planejava terminar essa fic, e isso ainda é verdade. Muitas coisas aconteceram nesses 4 anos, tanto boas quanto ruins.

É surreal pra mim estar postando de novo. Essa é a PRIMEIRA COISA QUE ESCREVO EM QUATRO ANOS, então, se estiver uma bosta, peço desculpas. Isso é, se alguém ainda se dispor a ler isso KKKKKKKKKKKKKK

De qualquer forma, quero agradecer a todas as pessoas que acompanharam a história até o presente momento. Todas as pessoas que favoritaram, comentaram, recomendaram. Agradecer também a todos que ainda mandam mensagens no twitter, pedindo por atualizações. Saber que depois de tanto tempo alguém ainda se importa é indescritível.

Eu deixei bem grande o alerta de gatilho porque o capítulo é bem pesado ao tratar de depressão. Se você acha que isso pode te afetar, preze sempre pela sua saúde mental e não leia. Sei que esse ano isso está sendo bem difícil de manter. O importante pra mim é que você fique bem ♥

No mais, espero que gostem do capítulo! Não foi fácil escrever, não foi fácil vencer o bloqueio criativo, mas aqui estamos. Não posso prometer datas pro próximo, mas como já disse anteriormente, pretendo, sim, terminar essa história.

Obrigada a todos pelo carinho e pela paciência! Vejo vocês lá embaixo :)

P.S.: recomendo ler ouvindo a música “Saturn", do Sleeping at Last feat. Tim Fain ou "Smoke & Mirrors" da Demi Lovato. Foram nelas que me inspirei pra escrever esse capítulo.



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A ligação de Quinn foi interrompida por um barulho alto. De cenho franzido, ela olhou para a porta do quarto, confusa e ligeiramente irritada. Não era todos os dias que tinha a oportunidade de fazer uma chamada de vídeo com Rachel, não apenas pelo fuso-horário, mas também pela disponibilidade das duas. Os momentos eram raros, e a mulher sempre procurava aproveitá-los ao máximo. O que não era possível se alguém estivesse fazendo o que não devia.

 

— Quinn? — Rachel chamou, a voz soando preocupada.

 

— Não deve ser nada — a soldado deu de ombros, imaginando se sua melhor amiga tinha se metido em alguma confusão, o que, infelizmente, não era incomum. — Santana deve ter irritado alguém e começado uma briga. Não seria a primeira vez — revirou os olhos e se levantou. — Eu vou só dar uma olhada em…

 

Outro barulho alto. O chão tremeu, e a ligação caiu. 

 

Quinn não teve tempo de chegar até a porta, pois a mesma foi aberta antes mesmo que a mulher pudesse dar qualquer passo. Santana entrou correndo, visivelmente assustada, e antes que pudesse dizer alguma coisa…

 

Dessa vez, não foi apenas o barulho. A soldado escutou os gritos de Santana, sem compreender, contudo, o que estava sendo dito. Ela sentiu os pés saírem do chão, e o corpo ser arremessado para longe, colidindo com a parede.

 

Explosão, Quinn pensou, quando sentiu a dor começar a invadir seu corpo. É assim, então? É assim que acaba?, foi a última coisa que passou pela sua mente antes de perder a consciência.



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Sam, Sam, Sam

 

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A garotinha está sentada em sua cama. O barulho dos seus soluços é engolido pelo das chamas. Chamas azuis e assustadoras, que cobrem o quarto inteiro e impedem qualquer pessoa de entrar ou sair. Ela está sozinha. Sozinha em seu medo, sozinha em seu choro, sozinha em sua solidão.

 

Embora as chamas não sejam feitas de fogo, ainda queimam. Queimam com o frio. Queimam com a sensação de entorpecimento. Queimam e causam tremores em seu corpo, fazendo-a se sentir sem conforto, sem esperança. Queimam e queimam e queimam, consumindo cada centímetro do quarto, cada pequeno espaço vazio que conseguem ocupar. Não há lugar para mais nada além das chamas.

 

O ursinho de pelúcia que segura contra o peito é a única companhia que a garotinha tem. Mesmo que velho e sem vida, ela o guarda em segurança. Todo o resto pode estar destruído, mas esse pequeno pedaço de si, a menininha se recusa a deixar ser consumido pelo frio. Ela pode ter perdido muitas coisas, mas não ele. Nunca ele.

 

Ele tem sido seu companheiro fiel há anos. A pelugem amarela e macia ao toque, os olhos de contas tão verdes quanto o oceano, a marca de costura no braço esquerdo, de quando precisou ser recosturado depois de cair… O ursinho é tão bem cuidado quanto pode ser. Foi um presente que a garotinha ganhou dos pais, e o qual ela tem amado desde então.

 

Velho, sim. Com marcas, sim. Ele é, também, a única fonte de calor que ela consegue sentir no deserto gelado que se tornou seu quarto. Talvez as chamas saibam disso, talvez sintam isso, porque mesmo já tendo levado todo o resto, elas ainda não estão satisfeitas. Querem o ursinho, também. Querem apagar o seu calor. Arrancá-lo dos braços da garotinha e deixá-la completamente sozinha. Querem ocupar o único local que ainda não conseguiram tomar.

 

As chamas se aproximam, ferozes e insistentes, e a menininha treme, chora, e suplica. Uma súplica silenciosa que não surte efeito. Ela abraça o ursinho com mais força, o azul se aproximando para levá-lo embora…

 

A menininha não quer que o ursinho se vá. Não quer perdê-lo. Não quer se perder. Não quer sentir as chamas em sua pele, não quer ser sufocada pela sensação de angústia que cresce e cresce em seu peito. Ela olha para o ursinho, e ele a encara de volta. As contas verdes que são seus olhos parecem brilhar como um farol de luz verde na imensidão azul.

 

Mesmo que deseje falar, a garotinha não consegue. As palavras ficam presas em sua garganta, e seus lábios parecem estar costurados por uma linha invisível. Ela toca o ursinho no lugar onde seria seu coração. Ela o ama. Seu amigo, seu companheiro, sua luz. Ainda que não consiga pronunciar as palavras, com o seu toque, ela comunica seu desejo. “Não se vá, não se vá, não se vá”, ela pede.

 

As chamas, contudo, não são misericordiosas. Elas não atendem a desejos de garotinhas. Elas apenas consomem e consomem, ignorantes a dor que causam. A garotinha luta, mas as chamas são mais fortes. E então, o que a garotinha temia acontece: as chamas vencem, e levam consigo a última lembrança que uma criança tinha de uma infância que não mais existe.

 

De braços vazios, a menina olha e olha e implora no seu olhar, “Não me deixe, não me deixe, não me deixe”.

 

Miraculosamente, o ursinho não desaparece. As chamas o levam para longe, mas a menina ainda consegue vê-lo. Os olhos, ela enxerga os olhos, enxerga a luz verde, enxerga o farol. Se ao menos ela conseguisse se levantar… Se ao menos ela conseguisse alcançá-lo… Ela quer, como quer, mas se sente tão cansada, tão vazia. Suas pernas não são fortes o suficiente para sustentá-la em pé. Ela não consegue andar.

 

Ainda não, mas um dia ela vai conseguir. Um dia, a garota sabe, sua força vai retornar. Um dia, ela vai conseguir se reerguer e percorrer o caminho até o seu fiel amigo. Um dia, ela o segurará novamente em seus braços e sentirá outra vez o seu calor. E talvez, quando isso acontecer, as chamas a tenham abandonado. Talvez elas finalmente desapareçam. 

 

Talvez… 

 

Até lá, a menininha, agora menina, abraça a si mesma e olha, olha e olha. Olha para a frente. Olha para o ursinho. Olha para o amuleto de sua esperança. Olha para a promessa de um futuro que será seu.

 

Ela olha, e espera.

 

 

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Santana, Santana, Santana

 

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Eu gostaria de poder voltar no tempo

Então eu poderia voltar por apenas mais uma noite

Eu gostaria de poder ver o seu sorriso

Para me lembrar dele nem que por apenas mais uma vez

Eu sinto sua falta…



— O que é isso?

 

Quando o caderno foi arrancado de suas mãos, Quinn sentiu como se seu coração tivesse parado de bater por alguns instantes. Ela ergueu os olhos, a cor sumindo completamente de seu rosto, a apreensão fazendo seu estômago embrulhar. O garoto parado diante dela abriu um sorriso largo, aparentemente satisfeito em ver a reação que havia arrancado da adolescente.

 

— Um caderno, nunca viu? — Quinn debochou, tentando escondendo o nervosismo que sentia. Levantando-se do banco, ela esticou a mão em direção ao objeto. — E eu o quero de volta.

 

— “E eu o quero de volta” — o rapaz repetiu, numa péssima imitação. Seus amigos, que estavam parados logo atrás dele, riram. — Fabray, o seu nariz tava tão próximo da página que achei que você estivesse tentando cheirar o negócio, se é que você me entende… 

 

— Há, há, nossa, que engraçado! — a adolescente exclamou, tentando manter um tom de voz monótono. — Mas tenho que admitir, Rogers, estou bastante surpresa. Não sabia que você conseguia formar frases com mais de três palavras. Já bateu tanto a cabeça durante os treinos e os jogos, que achei que só soubesse se comunicar por grunhidos.

 

A provocação não teve o efeito que Quinn desejava. No lugar de ficar com raiva e xingá-la, como geralmente fazia, Daniel Rogers olhou para ela de olhos estreitos, e o sorriso no seu rosto apenas se alargou. Se antes Quinn achava que o coração tinha parado de bater por uns segundos, agora, ela estava completamente certa de que ele funcionava, porque batia tão rápido que chegava a ser doloroso.

 

As palmas das mãos da adolescente suaram. Ela estava acostumada a ser vítima das “brincadeiras” dos garotos do time de futebol da escola. As aulas tinham começado há apenas algumas semanas, e era o primeiro ano dela no Ensino Médio. Como era uma escola nova, Quinn não conhecia absolutamente ninguém. Seus amigos estavam em Nova Iorque, há quilômetros de distância, e ela não fizera questão alguma de encontrar alguns novos.

 

Mesmo que já estivesse morando em Seattle há algum tempo, Quinn sentia como se nunca fosse se acostumar. Ela ainda sentia saudades do que tinha no passado. Saudades da casa que não existia mais, saudades de tudo aquilo que não podia mais ter. Tudo o que ela queria era poder voltar para Nova Iorque, o que não era mais possível. Ao menos, não no momento.

 

Então, ela tinha que suportar. Suportar viver uma vida que ela sentia que não era sua. Suportar não poder mais ter os pais por perto. Suportar os tios agindo como se tivessem direito de ocupar um lugar que não pertencia a eles. Suportar as provocações que sofria no colégio, apenas porque tinha se recusado a fazer parte do círculo dos garotos populares. A adolescente só queria poder ser deixada em paz, o que nunca parecia acontecer, onde quer que ela estivesse.

 

— Quanta agressividade, Fabray. Assim fico magoado — Rogers levou a mão livre ao peito, fingindo uma cara de sofrimento. — Pra que tudo isso? O que é que você tem aqui, ein?

 

Daniel baixou a cabeça e percorreu o olhar pela página aberta do caderno, o sorriso não desaparecendo um segundo de seus lábios. Quinn sentiu como se tivesse levado um soco no peito, todo o ar escapando de seus pulmões. Ela podia sentir o suor descendo pelas suas têmporas, e sua mão, ainda estendida, tremia ligeiramente.

 

    Não leia em voz alta, ela pensou, desesperada. Não leia em voz alta, não leia em voz alta, não leia…

 

    — Ora, ora, ora — o garoto terminou de ler e balançou o caderno, soltando uma longa risada. — Parece que alguém conseguiu derreter o coração da Rainha do Gelo. Tá apaixonadinha, Fabray?

 

— Você não sabe do que está falando — Quinn retrucou, a voz falhando ligeiramente. Ela se recusou a abaixar a cabeça, mantendo-a erguida, ainda que sentisse vontade de se esconder. — Agora seja um bom garoto, Rogers, e devolva meu caderno.

 

— Eh, não tô afim. Na real, acho que todos deveriam saber o que você anda escrevendo. O que diz, Fabray? — balançando o caderno provocativamente na frente da adolescente, o garoto ficou frustrado ao ver que ela não esboçou a reação que ele queria. Lançando a ela um olhar cheio de crueldade, ele voltou sua atenção para o objeto que tinha em mãos. — Isso é um sim, então?

 

Não leia em voz alta, não leia em voz alta, não leia em voz alta, Quinn suplicou mentalmente, finalmente abaixando a mão que tinha estendido para que ninguém percebesse o quanto ela estava tremendo. Por favor, por favor, por favor...

 

— “Eu gostaria de poder voltar no tempo, então eu poderia voltar por apenas mais uma noite” — Rogers começou a ler em voz alta, o tom de zombaria claro em sua voz. — “Eu gostaria de ver o seu sorriso para me lembrar dele, nem que por apenas mais uma vez”.

 

Quinn não tinha notado como o refeitório estava tão silencioso até então. Absolutamente todas as pessoas estavam viradas na direção deles, observando o confronto com atenção, ansiosos para ver o desfecho. Ela queria poder gritar, chorar, mandar todo mundo tomar conta da própria vida, mas as palavras pareciam não querer sair. Ela só conseguia ficar lá, parada, o rosto queimando de vergonha, raiva e humilhação.

 

— “Eu sinto sua falta…”, ah, que fofo, Fabray. Não sabia que você conseguia sentir alguma coi…

 

Uma garota esbarrou com força contra Rogers, fazendo-o perder o equilíbrio. Ele deu dois passos para trás, tentando recuperar o balanço, mas a adolescente, que havia se segurado nele para não cair, tropeçou nos próprios pés, fazendo-o se desequilibrar novamente. Rogers deu mais um passo para trás, quase caindo. No susto, ele soltou o caderno, que foi ao chão sem que quase ninguém percebesse. A garota, contudo, percebeu. Ela olhou para Quinn, que a encarava de olhos arregalados, e indicou discretamente o diário com a cabeça.

 

Quinn entendeu o recado, e se abaixou o mais depressa que pôde para pegar o caderno de volta. Levantando-se, ela o segurou contra o peito, e lançou um olhar agradecido em direção a recém-chegada, que apenas deu uma pequena piscadela em resposta.

 

— Você enlouqueceu?! — Rogers gritou, irritado.

 

— Ooops — ela disse, afastando-se dele e erguendo as mãos em sinal de rendição. — Desculpe, não vi você.

 

    Os lábios da garota tremeram, como se ela estivesse fazendo esforço para não rir. Rogers percebeu a mesma coisa, o que o deixou ainda mais irritado. Seu rosto ficou completamente vermelho, e por uns instantes, Quinn temeu que ele fosse bater na recém-chegada. Ao invés disso, ele lançou a ela um olhar cheio de escárnio.

 

— Olha por onde anda, sua putinha latina — o rapaz rosnou, entredentes.

 

A expressão no rosto da garota mudou completamente. A sugestão de sorriso desapareceu, e agora, quem parecia prestes a atacar era ela. Quinn deu involuntariamente um passo para trás, preocupada.

 

— Do que foi que você me chamou, pendejo?

 

— Ei, ei, ei! — um dos amigos de Rogers, Diego, abriu os braços entre os dois, tentando apartar a situação. — Deixa isso pra lá, cara.

 

— O que é, Diego, vai ficar do lado dessa imigrantezinha de merda?

 

—  ¿Com quien piensas que estás hablando, hijo de la puta? — a garota berrou, furiosa. Ignorando os braços de Diego entre ela e Rogers, a adolescente se lançou com força na direção deste, quase levando-o ao chão. Antes que qualquer pessoa pudesse fazer alguma coisa, ela ergueu o punho e socou o garoto no rosto.

 

O refeitório, que antes estava silencioso, irrompeu em sons. Diego gritou “SANTANA!”, e puxou a garota pela cintura para longe de Rogers, que a encarava com incredulidade, o sangue escorrendo do nariz aparentemente quebrado. Algumas garotas, principalmente líderes de torcida, gritavam, horrorizadas com a cena. Outras pessoas riam, e outras faziam apostas, esperando ver uma possível briga.

 

Muitos estudantes levantaram de suas mesas e se aproximaram da cena, esperando pra ver o que mais ia acontecer. Uma das mulheres que trabalhava na cantina saiu correndo para chamar um professor. Enquanto isso, Santana xingava Rogers em inglês e espanhol com nomes que Quinn nunca tinha ouvido antes.

 

A confusão só diminuiu quando os professores, enfim, chegaram a cafeteria. Santana e Daniel foram mandados a sala do diretor, e o resto da escola foi ordenado a retornar aos seus assentos calmamente e terminarem seu almoço em silêncio.

 

Quinn não tinha a menor ideia de como tudo isso tinha acontecido, mas de uma coisa ela tinha a absoluta certeza: Santana não era uma pessoa que ela gostaria de ter como inimiga.

 

*

 

— Fabray, não é?

 

Quinn ergueu a cabeça. A garota da cafeteria, Santana, estava parada à sua frente, carregando uma mochila aparentemente pesada sobre um dos ombros. A jovem não fazia a menor ideia de como tinha sido encontrada. Desde tudo o que tinha acontecido no refeitório, ela vinha almoçando sozinha em cantos escondidos da escola, preferencialmente no auditório. Era um lugar perfeito, pois estava quase sempre vazio nesse horário, e ela achou que ninguém jamais a acharia lá. Claramente, estava enganada.

 

— Isso — afirmou, soltando um pequeno suspiro e tirando a mochila que estava sobre a cadeira ao seu lado, colocando-a no chão, dando espaço para a outra garota se sentar, caso quisesse. — Quinn Fabray. 

 

— Santana Lopez — a adolescente disse, sentando-se no lugar que havia sido desocupado. — Você é uma pessoa difícil de encontrar.

 

— Não sabia que estava sendo procurada — Quinn deu de ombros, sorrindo, sem graça. — A propósito, acho que não agradeci por aquele dia. Então… Obrigada.

 

— Ele mereceu — Santana dispensou o agradecimento com um aceno de mão. — Nunca gostei daquele Rogers, ele é um tremendo babaca. Sinceramente, não sei como Diego consegue suportá-lo.

 

— Vocês são amigos?

 

— Diego e eu? Não. Nossas avós são, então nos conhecemos.

 

— Ah…

 

— Tudo bem, eu sei que ele também é um idiota — a garota disse, rindo, ao ver a expressão de desconforto no rosto de Quinn. — Não costumava ser quando era mais novo, mas sabe como é. Se meteu com uma turminha errada, e agora fica fazendo merda pelos cantos.

 

— Você teve problemas? Por ter socado o Rogers?

 

— Suspensa por um dia — ela respondeu, dando de ombros. — E o imbecil pegou apenas alguns dias de detenção, acredita? Depois de tudo o que ele fez.

 

— É claro — Quinn revirou os olhos, enojada. — Ninguém vai querer prejudicar o senhor Olhem-Para-Mim-Eu-Sou-Incrível-Porque-Jogo-Futebol. Que grande bosta.

 

— Total — a outra adolescente concordou, suspirando. — Escola é uma merda, não é?

 

— Só a escola? Eu diria que essa cidade toda é uma merda.

 

— É isso aí, não deixe os sentimentos guardados, bote tudo para fora.

 

Quinn e Santana trocaram olhares divertidos e, segundos depois, ambas caíram na risada. Uma sensação boa preencheu Quinn, um calor que foi subindo até seu peito e pareceu se alojar em seu coração. Fazia muito tempo que ela não se sentia assim, relativamente contente, como uma garota comum. Fazia muito tempo que ela sequer tinha soltado uma risada. O som parecia estranho aos seus ouvidos, mas não de uma forma ruim.

 

Fechando os olhos, ela conseguia se lembrar de uma outra risada. Uma que ela daria tudo para escutar novamente. Uma pontada de saudades bateu em seu peito e, repentinamente, Quinn parou de rir e respirou fundo, tentando controlar a vontade de chorar. Ela havia prometido a si mesma que guardaria suas lágrimas para si, que não choraria em público. Seu sofrimento era só seu, e ela não queria dividir ele com mais ninguém.

 

— Você tá bem? — Santana murmurou a pergunta, mas ainda assim, ela soou alta no silêncio do auditório.

 

Quinn abriu a boca para responder que sim, mas a voz não saiu. Não, pensou, eu não estou bem. E essa era a verdade, não era? Há muito tempo que ela não estava bem. Há muito tempo que vivia como se houvesse uma nuvem negra sobre sua cabeça, fazendo as gotas de chuva caírem nos momentos mais inoportunos, e acabando com todas as chances de ver raios de sol.

 

Não é como se ela não estivesse tentando. Ela estava… Não estava? Acordava todos os dias, levantava, tomava banho, café da manhã, escola, almoço, mais aulas, tarefa de casa, jantar, escovar os dentes, dormir, sonhar. Sonhar com a mesma coisa, de novo e de novo. Acordar no meio da noite com o coração acelerado e suando frio. Acordar com vontade de gritar e de chorar. Vontade de chamar nomes de pessoas que não mais responderiam.

 

Isso era o normal, não era? Era normal carregar consigo uma dor que nunca ia embora? Era normal ver as outras pessoas seguindo com suas vidas, enquanto ela se sentia presa ao mesmo momento? Era normal não estar bem? Não conseguir ficar bem, por mais que tentasse? Era normal ignorar a autoridade dos tios, porque ela era sobrinha deles, e não filha, e não cabia a eles tomarem decisões por ela? Era normal cuidar do irmão como ela cuidava? Era normal que ele fosse o centro de seu mundo? Era normal que ela sentisse que para ele viver e ser feliz, ela tinha que tomar para si a responsabilidade de garantir que isso acontecesse?

 

Às vezes, Quinn sentia como se fosse muito mais velha do que realmente era. Sentia em seus ossos, que pareciam carregar dentro de si um cansaço inexplicável. Um que transformava seus membros em chumbo, e que os fazia quase impossíveis de erguer. Às vezes, quando abria os olhos pela manhã, Quinn sentia como se levantar da cama fosse uma tarefa que ela não ia conseguir realizar. Isso era normal? Era, não era? Tinha que ser, porque se não fosse…

 

Se não fosse, ela não sabia o que fazer. Deveria pedir ajuda? Alguém escutaria, caso pedisse? Ou deveria apenas suportar calada, como se nada estivesse acontecendo? Será que todas as pessoas se sentiam assim, e ninguém nunca falava sobre isso? Será que todos fingiam que estava tudo bem, o tempo todo, e eventualmente… Será que, eventualmente, tudo ficaria mesmo bem, apenas por ela dizer a si mesmo que ficaria?

 

— Fabray?

 

A voz de Santana arrancou Quinn de seus pensamentos. Só então ela percebeu que seus olhos ainda estavam fechados, e tudo o que conseguia enxergar era a escuridão. A adolescente respirou fundo e os abriu, apenas para dar de cara com o olhar preocupado de Santana. A vontade de chorar se intensificou, mas Quinn se recusou a derramar uma lágrima sequer. Não, não na frente de uma pessoa que ela mal conhecia, não na frente de ninguém.

 

Abriu a boca novamente para dizer que estava tudo bem, estava tudo bem, não era nada… Mas, novamente, a voz não saiu. Parecia presa na garganta, presa com todas as outras coisas que ela vinha guardando para si há muito tempo. E por um instante, Quinn pensou “E se?”. E se ela dissesse, mesmo que só uma vez? Se as pronunciasse baixinho, para só ela ouvir? “E se?

 

Santana esticou a mão e tocou no braço de Quinn, sem dizer nada, a expressão preocupada ainda presente em seu rosto. E foi isso. Isso que quebrou Quinn. Isso que fez as lágrimas contra as quais ela estava lutando finalmente descerem pelo seu rosto. Isso que fez as palavras finalmente se formarem em seus lábios.

 

— Não — ela falou, a voz frágil, quebrada, tão alta quanto um sussurro. — Não, não, não…

 

Foi como se uma barreira tivesse quebrado. Os sentimentos começaram a inundá-la como um tsunami, destruindo tudo em seu caminho. Destruindo as barreiras, as ilusões, as mentiras. O corpo de Quinn começou a tremer, e ela abraçou a si mesma, tentando conter as emoções, mas era impossível.

 

Ela não soube em que momento Santana a puxou para seus braços e a segurou apertado contra seu corpo. Não soube quando os soluços surgiram, os únicos sons que ela conseguia reproduzir que expressavam todo o seu medo, a vergonha, a tristeza, a saudade, o amor, a raiva, o ressentimento, o alívio.

 

A adolescente não soube por quanto tempo permaneceu assim. Talvez segundos, talvez horas. Só soube que em nenhum momento Santana a soltou. Ela não disse nada, não fez promessas de que tudo ficaria bem, de que ia passar. Ela apenas segurou Quinn e permitiu que ela chorasse, permitiu que ela extravazasse tudo aquilo que precisava.

 

Quando finalmente se recompôs, Quinn saiu dos braços da outra adolescente e se endireitou na cadeira, limpando as lágrimas com a manga da camisa. Ao erguer a cabeça para encontrar o olhar de Santana, surpreendeu-se por não encontrar nem o julgamento e nem a pena que estava esperando. Ao invés disso, viu apenas aceitação e compreensão. Silenciosamente, Santana esticou o braço para segurar a mão de Quinn, apertando-a gentilmente.

 

E foi assim que as duas permaneceram até o final do horário de almoço. Sentadas lado a lado, de mãos dadas e em silêncio, um gesto de apoio que Quinn jamais esqueceria. Talvez procurar novos amigos não fosse tão ruim, afinal. Talvez algumas mudanças fossem boas. Talvez ela não precisasse mais ficar sozinha.

 

Talvez.

 

 

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Rachel, Rachel, Rachel

 

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17/06/2011

 

Mamãe,

 

Na última vez que nos vimos, eu tinha onze anos. Eu e Sam estávamos saindo de casa na correria, porque nos atrasamos e ficamos com medo de perder o ônibus escolar. Por causa da pressa, esbarrei na mesinha perto da entrada do apartamento e, sem querer, derrubei o livro de matemática que estava segurando nas mãos. Olhei para trás envergonhada, sem saber se alguém havia notado a minha falta de atenção, e por um breve instante, o seu olhar encontrou o meu. A senhora sorriu para mim, uma expressão serena em seu rosto. Sorri de volta, sem graça, abaixando-me para pegar o meu livro. Assim que me levantei, corri até porta e fui atrás de Sam, que estava segurando o elevador. Quando tive a chance, não olhei para trás. Devia ter olhado. Queria ter olhado. Uma última vez.

 

Ainda lembro do seu sorriso. Lembro de como ele fazia todo o seu rosto se iluminar. Lembro de como parecia alcançar os seus olhos, que brilhavam cheios de amor para mim. Por mim. Por nós. Lembro de como lembrei dele, parada diante do seu túmulo, as lágrimas descendo lentamente pelo meu rosto, os soluços presos na garganta. Lembro de como lembrei dele todas as noites durante meses, porque era o único conforto que eu conseguia encontrar que me acalmava o suficiente para me permitir voltar a dormir.

 

Nunca a esqueci, mamãe. Nunca esqueci dos seus abraços apertados, da sua comida favorita, de como você gostava de dançar ao som de qualquer música dos Beatles que tocasse na rádio. Nunca esqueci de como você fazia chocolate quente nos dias chuvosos e sentava ao meu lado no sofá, o braço em torno dos meus ombros, o calor do seu corpo me passando uma sensação de conforto e segurança.

 

Nunca a esqueci, exceto que… Às vezes, eu esqueço. Esqueço como era o som da sua risada, ou o cheiro do seu perfume, ou quais os livros que a senhora gostava de ler. Esqueço de como era a expressão em seu rosto quando a senhora estava muito feliz ou muito chateada, ou o que a senhora costumava dizer ao papai todos os dias pela manhã, antes de entregar a ele uma xícara de café.

 

Tantas coisas que lembro, tantas que não lembro, tantas memórias que jamais formarei para recordar. Ainda dói, mamãe. Dói não ter podido dizer adeus. Dói não ter olhado para trás. Dói não ter seu sorriso gravado em minhas pálpebras, para vê-lo todas as vezes que fecho os olhos. Dói ter todas essas experiências boas, ruins, medianas — todas essas coisas com as quais deveria estar dividindo com você, mas, ao invés, estou dividindo com uma folha de papel em branco. Dói ter que escrever tudo isso no lugar de dizer. Dói querer seu conforto, sentir falta do seu abraço, e saber que nunca mais o terei.

 

Dói amar. Dói não amar. Existir é como uma dor constante, algo ao qual a gente está tão acostumado que nem sempre percebe que está doendo. Eu nem sempre percebo quando está doendo. Depois de um tempo, tudo parece entorpecer. O mundo parece girar mais devagar, o tempo parece estagnado, as cores parecem mais desbotadas, e a vida mais vazia.

 

 Às vezes, mamãe, eu não sei se estou viva. Se coloco a mão sobre meu peito, sinto meu coração batendo. Sinto ele subir e descer ao ritmo de minha respiração. Sinto o calor da minha pele, a aspereza da minha blusa na ponta dos meus dedos. Sei que estou aqui. Sei que estou existindo. Só não sei se existir é viver.

 

Eu estou tão cansada. Isso é normal? Esse vazio? Esse espaço dentro de mim que sinto que deveria ser ocupado, mas que nunca pareço ser capaz de preencher? Será que há algo de errado comigo? Estou quebrada? Ainda sou capaz de amar, de me importar, de sentir algo que não seja esse frio que não vai embora?

 

Por que o frio não vai embora, mamãe? Por que ele parece partir de dentro de mim, e por que parece se espalhar pelos meus braços, minhas pernas, meu tronco? Por que ele parece me paralisar, me sufocar, me desestabilizar? Por que eu sinto como se nunca mais fosse sentir novamente?

 

Desculpe-me por ser uma decepção. Desculpe-me por não ter me tornado a pessoa que a senhora gostaria que eu fosse. Desculpe-me se falhei, se só sei falhar, se não consigo ser outra coisa além de um conjunto de erros. Desculpe-me por pensar isso. Desculpe-me por não conseguir ser melhor. Desculpe-me por não conseguir fazer com que Sam, tia Elena e tio Christopher entendam. Desculpe-me por não ser o suficiente.

 

Estou tentando, mamãe, juro que estou. É só que lutar é difícil quando esquecemos o motivo pelo qual estamos lutando. Pensei que me alistar ao exército seria a solução. Pensei que encontraria meu propósito aqui. Não encontrei, e não sei mais onde procurar. Estou desesperada, mamãe. Não sei o que fazer. O que eu faço? Por favor, diga-me, o que eu faço?

 

Eu não quero desistir, eu não quero desistir, eu não quero desistir.

Eu te amo. Eu sinto sua falta.

 

Da sua filha,

Quinn.

 

*

 

28/10/2011

 

Mamãe,

 

Eu me inscrevi em um projeto chamado “Carta para soldados”. Funciona como uma troca de cartas entre soldados e adolescentes americanos. Aparentemente, é para ajudá-los a melhorar a escrita e nos dar um senso de normalidade em meio a loucura em que vivemos.

 

Santana e eu estávamos juntas quando vi o anúncio no quadro. Havia sido uma noite longa. Eu estava cansada, tão cansada… Só queria alguma coisa, qualquer coisa, para me distrair. Qualquer coisa para tirar minha mente os pensamentos sombrios que a vem assombrando. Foi quando eu vi o panfleto, e senti que era algo que precisava fazer. Sei lá. Parecia bobagem. Eu não sabia o que um desconhecido iria poder fazer por mim, e nem achava, na verdade, que havia algo que pudesse ser feito. De toda forma, eu me inscrevi no programa. Acho que, no fundo, eu só queria alguém com quem me conectar. Alguém que me desse esperança, alguém que me compreendesse, alguém que… Não sei. Só alguém, eu acho.

 

Estranho como as coisas acontecem, não é? Ontem recebi a primeira carta. A minha corresponde se chama Rachel Berry, tem dezesseis anos de idade e mora em uma cidadezinha em Ohio com seus dois pais. A mãe dela faleceu no mesmo atentado que tirou você de mim.

 

Rachel é… Eu não sei explicar. Só sei que ela não é nada do que eu imaginei que seria, e digo isso de um jeito positivo. Ela parece ser bem honesta, de uma maneira que eu gostaria de ser, porém não sou. Rachel parece ser do tipo de pessoa que usa o coração na manga, que não tem medo de dividir suas dores. É um conceito estranho para mim. Como uma adolescente que eu não conheço, que nunca vi na vida, que não sei quase nada sobre, confiou a mim detalhes de sua vida? Confiou, mesmo sabendo que eu poderia julgá-la, discriminá-la, tratá-la com indiferença. Achei corajoso da parte dela. Mais corajosa do que eu mesmo tenho sido há anos.

 

Não apenas isso, eu também notei que Rachel entende.

Ela entende.

Ela entende.

 

Em sua carta, Rachel escreveu “Dizem que tudo na vida acontece por um motivo”. Espero que ela esteja certa, mamãe. Espero que haja mesmo um motivo.

 

Ainda te amo. Ainda sinto sua falta.

 

Da sua filha,

Quinn.

 

*

 

16/01/2012

 

Mamãe,

 

Era uma vez uma garotinha.

 

Como muitas outras crianças de sua idade, os pais dela eram separados. O pai morava com o companheiro em uma pequena cidade de Ohio chamada Lima, onde a garotinha nasceu. Ela e a mãe, por sua vez, moravam em Nova Iorque, a cidade que nunca dorme. Talvez a garotinha sentisse falta da presença do pai, que só via algumas vezes ao ano. Ou talvez ela já estivesse acostumada a sua ausência, contentando-se com as interações que de fato conseguiam ter. De uma maneira ou de outra, algo era certo: a garotinha era feliz com a vida que levava.

 

Suponho que muitas garotinhas eram felizes antes daquele dia. Suponho também que, assim como eu, algumas delas foram marcadas com feridas que talvez nem mesmo o tempo possa cicatrizar. Sei que as minhas ainda estão abertas, sangrando. Talvez as dessa garotinha também estejam.

 

O fato é que, assim como todas as outras meninas de sua idade, a garotinha cresceu. Cresceu conhecendo a dor de perder alguém que amava tão cedo na vida. Cresceu sentindo todos os dias o peso do julgamento e do ódio que as pessoas sentem por quem foge do padrão. Cresceu apenas com os pais como amigos. Cresceu, e aprendeu que o mundo às vezes não é bonito, ou justo, e que felicidade nem sempre é algo que pode ser facilmente alcançado.

 

A garotinha… Não, a adolescente, aprendeu a andar de cabeça baixa. Aprendeu a usar uma armadura. Aprendeu que para receber um corte, você nem sempre precisa estar perto de uma faca. Às vezes, bastam palavras afiadas. Afiadas e direcionadas ao ponto fraco. Afiadas e prontas para causar o maior estrago possível. Afiadas e carregando consigo não apenas seus significados, mas também um sentimento de impotência por não poder agir contra elas. Por às vezes acreditar nelas.

 

Era uma vez uma adolescente. Uma adolescente sonhadora, extremamente talentosa, que acreditava em si mesma e no seu potencial de tornar seus sonhos realidade. Ela era determinada, esforçada, e não deixava que as pessoas a derrubassem com seus comentários negativos. Diante das dificuldades, ela erguia a cabeça e seguia em frente. Diante de seus medos, ela prosseguia, confiante. Diante de seus atormentadores, ela sobrevivia, dia após dia.

 

A adolescente era forte, corajosa, e autêntica. Ela não tinha medo de admitir quando estava com medo. Não tinha medo de expor seus sentimentos para todos verem. Não tinha medo de mostrar seus piores e melhores lados. Ela se importava, claro que se importava, com o que os outros pensavam. Contudo, a adolescente não deixava que os pensamentos dos outros ditassem o modo que ela vivia sua vida.

 

Só que, assim como todo ser humano, a adolescente também cansava. Ela também tinha momentos de fraqueza. Momentos de dúvida. Momentos em que a vontade de desistir e jogar a toalha para o alto era grande. Ela tinha momentos em que a dor se tornava grande demais para caber dentro de si. Ela tinha momentos em que desejava não ser forte, corajosa e determinada.

 

Às vezes, a adolescente só queria poder receber um abraço da sua mãe.

Às vezes, eu só gostaria de poder receber um abraço seu.

 

Eu tenho alguns dias muito ruins, mamãe. Dias em que estou cansada. Dias em que a vida parece um fardo. Dias em que eu sinto como se estivesse aqui, mas não existisse de verdade — como se fosse uma assombração presa num looping infinito, tendo que reviver todos os dias os meus piores momentos.

 

Só que eu também tenho alguns dias bons. Ultimamente, eles se resumem aos dias em que recebo notícias de Rachel. Ela é… Ela é especial. Talvez ainda não a conheça bem o suficiente, mas não preciso, não pra enxergar isso. Não pra ver o que está exposto aos olhos de todos. Ela é inspiradora. Ela luta, luta, luta e continua lutando mesmo quando acabam suas forças. Ela é honesta, com os outros e consigo mesma, tanto em relação aos seus defeitos quanto às suas qualidades. Eu queria ser assim. Queria poder admitir para mim mesma algumas coisas que tenho mantido escondidas…

 

Se não a mim mesma, não ainda, talvez eu possa admitir a você. Talvez eu possa dizer as palavras, mamãe, sem ser julgada. Talvez a senhora olhe para mim, de onde quer que esteja, e em seu olhar possa estar presente apenas amor.

 

A verdade é que eu não quero viver.

 

Por favor, mamãe, não me odeie por isso. Por favor, não ache que estou menosprezando a minha vida. É só que… Desde que você e o papai se foram, vocês levaram algo de mim. Algo que não consegui recuperar desde então. Um pedaço essencial que faz falta, muita falta, e sem o qual eu não pareço ser capaz de encontrar o caminho para a felicidade.

 

Eu não quero viver, porque não sei se mereço. Não quero viver, porque a vida não tem sentido quando você não consegue sentir. Não quero viver, porque não sinto que estou realmente vivendo. Não quero viver, porque estou cansada de fingir que quero.

 

Como ela consegue? Como Rachel consegue lidar com todas essas emoções? Como ela consegue se desprender dessa dor? Como ela consegue encontrar razões para continuar? Eu queria saber. Talvez um dia eu descubra.

 

Até lá, continuarei com os meus dias bons e ruins. Continuarei com essa verdade que manterei escondida de todos. Continuarei com os meus medos e minhas inseguranças. Até lá… Até lá, eu sentirei esperança. Eu acredito que as coisas podem melhorar. Preciso acreditar que vão melhorar.

 

Não vou desistir, mamãe. Por você. Pelo papai. Pelo Sam. Pela tia Elena e o tio Christopher. Pela Santana. Talvez, um dia, por mim.

 

Sempre te amarei. Sempre sentirei sua falta.

 

Da sua filha,

Quinn.

 

**********************************



Quinn Fabray tinha onze anos quando seu mundo acabou pela primeira vez.

 

Com chamas, fuligem e pedaços de concreto, toda a base sob a qual sua vida tinha sido construída desabou, assim, de um dia para o outro. Não houve preparação. Nenhum sinal. Sem despedidas. Tudo estava bem, e então, não estava.

 

Quando fechava os olhos, Quinn podia imaginar os gritos de sua mãe sendo engolidos pelo fogo. Podia imaginar a força vital de seu pai sendo esmagada pelo concreto. Podia imaginar a fuligem no ar, sobre eles, uma observadora silenciosa do último suspiro de duas pessoas que significavam tudo para ela.

 

Durante muitos anos, esses pensamentos assombraram seus sonhos. A garotinha acordava no meio da noite, assustada, num quarto na casa de seus tios, ao mesmo tempo familiar e desconhecido. A luz da lua entrava pelas frestas da janela, e sombras estranhas ocupavam as paredes. Ela tremia, tremia e tremia, sempre em silêncio, até sua respiração normalizar e seu coração parar de bater tão depressa. Alguns dias, era rápido. Em outros, ela ficava acordada até amanhecer, esperando para ver o sol surgir e as sombras sumirem, na esperança que levassem consigo os seus medos.

 

Nas noites seguintes, porém, os pesadelos retornavam. Terríveis; constantes. A única certeza com a qual ela podia contar em dias tão incertos. Mesmo quando cresceu, o medo nunca a abandonou, os pesadelos não deixaram de aterrorizá-la, e Quinn viveu todos os dias sabendo que, assim, de uma hora para outra, tudo podia ser destruído novamente.

 

Por isso, Quinn também viveu todos os dias protegendo a si mesma dos perigos. O perigo de se abrir demais e entregar seu coração a alguém; o perigo de criar raízes, e elas serem destruídas; o perigo de se permitir ficar confortável, consigo mesma e com os outros, só para depois ter que coletar os pedaços e os colocar de volta quando, inevitavelmente, todas as suas certezas fossem derrubadas outra vez.

 

Era exaustivo, às vezes. A garotinha que consolava o irmão e acreditava que não podia se dar ao luxo de ficar de luto, também. A adolescente assustada demais, fechada demais, que preferia fingir que estava tudo bem, quando, por dentro, sentia como se um tornado sugasse para o seu epicentro toda a força que ela tinha, toda a esperança, e tudo o que sobrava era o vazio que ninguém podia ver além dela. A jovem perdida, que lutava o tempo todo por causa nenhuma, apenas porque lutar era a única forma que ela sabia de sobreviver.

 

Quinn estava tão cansada de sobreviver.

 

Às vezes, nos momentos em que se permitia ser honesta, Quinn admitia para si mesma que queria mais. Queria mais vida, mais sentimento, mais coragem. Queria poder deixar todos os medos para o calar da noite, e enfrentar os dias ensolarados sem precisar se esconder nas sombras. Ela queria poder gritar, gritar até a garganta arder e a voz falhar; queria poder correr, só para sentir a brisa batendo no rosto. Queria poder ser livre para se entregar, para sonhar, para amar. Não era querer demais, era? 

 

Era?

 

Talvez sim. Talvez não.

Talvez todos os quereres fossem excessivos, ou talvez nenhum fosse. Ou talvez coubesse a ela decidir.

 

Demais, a jovem sempre dizia a si mesma. Ela queria demais. Coisas que não podia, que não deveria ter, porque uma escolha havia sido feita. Quinn escolhera que Sam deveria viver, e se ela tivesse que sobreviver para que isso acontecesse… Bem, então ela sobreviveria por tanto tempo quanto lhe fosse permitido.

 

Exceto que… Sobreviver não era fácil, era? Em alguns momentos, tudo o que ela mais queria era desistir. Tanto esforço, tanta luta. Pra que? Pra que? Pra que?, ela se perguntava. Por que ela tinha que aguentar o coração partido? Por que ela tinha que suportar os pesadelos? Por que ela tinha que sentir todas aquelas coisas ruins, sofocantes, paralisantes? Por que Sam podia seguir em frente, protegido, enquanto ela tinha que entregar tudo de si para que ele pudesse ter uma chance?

 

Não era justo. Não era justo que seus amigos pudessem ir para casa e receber um abraço dos pais. Não era justo que seus tios, que nunca tiveram crianças, que nunca quiseram filhos, fossem encarregados do fardo de cuidar dos sobrinhos. Não era justo que fosse tão fácil para Sam vê-los como figuras parentais. Será que ele não se lembrava? Porque ela lembrava, todos os dias, todas as horas, todos os minutos agonizantes em que precisava reaprender a respirar, porque o ar se recusava a entrar em seus pulmões.

 

Algumas vezes, quando lutava contra a própria mente, Quinn imaginava como deveria ter sido para os pais. Quais teriam sido seus últimos pensamentos? Será que doeu neles, assim como doía nela, saber que não poderiam mais voltar para casa? Saber que não veriam os filhos novamente? Qual sofrimento teria sido maior? Morrer, ou ter o coração partido por saber que Quinn e Sam teriam que viver sem eles?

 

A garotinha desolada, a adolescente assustada, a jovem perdida. Será que os mortos sentiam orgulho? Será que teriam, se soubessem o que ela tinha se tornado? Será que teriam, se soubessem o quanto ela vivia assustada? O quanto fugia de qualquer coisa que a pudesse machucar de novo?

 

Era a única forma que ela sabia de seguir em frente. Sobreviver não era fácil, e, às vezes, não era o que Quinn queria. Entretanto, era necessário. Era a escolha que tinha feito. E se Russel e Judy, onde quer que estivessem, olhassem para filha cheios de decepção… 

 

Bem, então essa seria apenas mais uma das dores que ela teria que suportar.

 

 

**********************************

 

Quinn Fabray tinha vinte e dois anos quando seu mundo acabou pela segunda vez.

 

Com chamas, fuligem e pedaços de concreto, a base de sua vida foi novamente destruída. Não houve preparação. Nenhum sinal. Sem despedidas. Tudo estava bem e, então, não estava.

 

É assim, então?, a soldado pensou antes de perder a consciência. É assim que acaba? E devia ser, provavelmente era, porque não havia outra explicativa. Nada mais podia justificar o fato de que, ao abrir os olhos, Quinn tinha onze anos novamente, e observava o irmão sentado no chão do quarto, brincando com o boneco de ação do Superman.

 

Ela se lembrava disso. Lembrava da raiva que carregava no peito. Lembrava da esperança que não deveria estar sentindo, mas sentia, e que a fazia erguer a cabeça todas as vezes que a porta da frente se abria, torcendo para que, a qualquer momento, os pais voltassem para casa. Mas eles não voltaram, jamais voltariam…

 

E ela tinha dezessete anos de novo. Parada no corredor da escola, as costas pressionadas contra o armário, a presença reconfortante de Santana ao seu lado. As pessoas passavam pelas duas, conversando despreocupadamente, e tudo o que ela fazia era olhar e olhar, mas sem ver. Sua mente nublada pela dor, repetindo em sua cabeça memórias que a adolescente preferiria esquecer, porque…

 

Vinte e um anos outra vez. A vida devia fazer sentido, não devia? Quinn havia se alistado no exército, estava lutando pelo seu país, por aquilo que acreditava. Ela estava… Fugindo, a voz em sua mente dizia. Fugir parecia ser uma especialidade. Fugir da dor, das lembranças, da verdade…

 

“— Você recebeu uma carta.”

 

E Quinn não sabia o motivo disso ser importante, mas era, sabia que era, porque a voz em sua mente sussurrava Rachel, Rachel, Rachel…

 

“— Mamãe? Papai?”

 

Ela era uma garotinha, agora, e estava diante dos pais mais uma vez. Doía, doía demais, como se o tornado dentro do peito tivesse sido substituído por chamas. Ferozes, rápidas, elas se alastravam por todo o seu corpo, e era como se a fumaça estivesse em seu nariz, sua boca, seus pulmões, porque ela não conseguia respirar.

 

“— Você tem sido tão corajosa, Quinn. Tão linda, tão forte.”

 

Eu não quero ser forte, a garotinha pensou. Eu só quero vocês. E ela queria ficar, a garotinha. Queria permanecer com os pais, queria sentir o calor de seus braços, o conforto de suas palavras, o toque de suas mãos. Mas Quinn não era mais uma garotinha, não podia mais ser. A garotinha tinha crescido, um pouco quebrada, um pouco temerosa, um pouco reservada.

 

A garotinha tinha se transformado em uma mulher. Uma soldado. Uma sobrevivente.

 

“— Eu amo vocês.

 

Era um adeus, Quinn sabia. O adeus que nunca pode dizer quando era criança. O adeus que ficou entalado na garganta por tantos anos. O adeus que a fazia se sentir tão quebrada, tão incompleta. Um adeus que daria a ela um novo começo.

 

Quando era uma menina, Quinn escolhera sobreviver. Escolhera priorizar o irmão, escolhera se isolar, escolhera esconder a dor. Entretanto, depois de muito tempo, ela finalmente compreendeu. A dor não podia ser escondida — talvez dos outros, mas não dela mesma. E de que adiantava? De que adiantava se agarrar a isso? Que bem lhe trazia fechar os olhos para as coisas boas e afundar-se nas ruins?

 

Sam estava bem. Não era mais um menininho que precisava ser protegido. Todo o medo que Quinn havia sentido ao pensar que ele podia sofrer… Inútil, não era? Ter medo não impedia que nada acontecesse. No final das contas, ele havia sofrido, havia chorado, havia sido feito em pedaços.

 

Sam estava bem. E Quinn não estava, ainda não, mas algo havia mudado. Ela se sentia mais forte, mais corajosa, mais segura. Sim, ela era uma sobrevivente, porém, podia ser mais do que isso. Queria ser mais do que isso.

 

Queria ter mais do que isso.

 

Quinn sempre se sentiu tão sozinha, mas não estava. Nunca esteve. Sam foi a boia a qual ela se agarrou para se manter flutuando, para não afundar em um oceano de solidão.  Ele também foi a luz, a esperança, o desejo de um futuro melhor. Santana foi o primeiro pedaço de terra firme, a primeira mão estendida à espera do momento em que Quinn estivesse finalmente pronta para levantar. Foi o chão firme debaixo dos seus pés, que lhe passou a segurança para enfim levantar e dar os primeiro passos. E Rachel? Rachel era mais. Mais que esperança, mais que segurança, ela era uma força por si só. A gravidade que puxava Quinn para o seu centro. O planeta pelo qual ela orbitava. Um planeta estranho, maravilhoso, e cheio de vida. Rachel era um caminho. Um caminho que a fazia andar, e andar, e andar, mas sem nunca cansar. Um caminho que trazia um aprendizado a cada passo, uma nova sensação a cada momento.

 

Sam, Sam, Sam.

Santana, Santana, Santana.

Rachel, Rachel, Rachel.

 

Havia uma força dentro de Quinn. Uma que, por muito tempo, ela não tinha visto. Depois de tantos anos se afogando, respirar pela primeira vez era… Indescritível. Como explicar o que não podia ser explicado? Como colocar em palavras a leveza do alívio? O peso que carregava não havia desaparecido, mas não precisava, não é?

 

O peso podia ser dividido. Como ela não viu antes? Como não percebeu?

 

Sam, Sam, Sam. Abraços apertados, respirações rasas, tanto medo, tanta dor. Tinha que ser forte por ele, tinha que sobreviver por ele, tinha que entregar tudo de si mesma para que ele pudesse entregar tudo dele. Família. Lembranças felizes. Piqueniques no Central Park. Assistir desenhos juntos. Discutir sobre os personagens favoritos. Sorrisos largos, risadas livres, leveza.

 

Santana, Santana, Santana. Silêncios reconfortantes, olhos que escondiam, mas que também mostravam — mostravam calor, segurança, apoio. Quedas; mãos fortes prontas para erguê-la, prontas para segurá-la em pé pelo tempo que fosse necessário. Rocha. Sempre lá, uma constante. Sentadas lado a lado nas arquibancadas, o sol tocando seus rostos. Em pé, também lado a lado, braços encostando um no outro. Conforto.

 

Rachel, Rachel, Rachel. Palavras que nunca antes haviam sido ditas. Compreensão, uma que nenhuma outra pessoa poderia demonstrar. Alívio em poder se desprender de pesos que carregava há tantos anos, que eram como âncoras, puxando-a para o fundo. Sorrisos largos, sinceros, que a enchiam de calor quando tudo o que ela conhecia era o frio. Cartas. Vazios preenchidos. Esperança. Pensar no futuro. Querer um futuro. Dor, não por ela mesma, mas por saber que outra pessoa também era tocada pela escuridão, que também era assombrada por pesadelos. Amizade. Coração acelerado. Felicidade. Amor.

 

Amor.

 

“— Nós também amamos você, filha.”

 

Havia uma porta, e Quinn não estava certa de onde ela havia saído nem para onde levaria. Ela só sabia que a porta era uma escolha, era seguir em frente, era dar um passo para um futuro que não trazia nada além de incertezas. 

 

Incertezas e possibilidades.

 

Ela podia fazer isso. Podia enfrentar o desconhecido. Podia lutar. Podia ser corajosa. E ainda doía, doía com o tornado, doía como as chamas, doía com o adeus. Cada passo era difícil, quase impossível, e a porta parecia tão longe, tão inalcançável. Contudo, Quinn tinha sido uma sobrevivente por muito tempo. 

 

Quando atravessou a porta, ela escolheu viver.

 

 

**********************************

 

Quinn Fabray tinha onze anos quando sua vida desmoronou pela primeira vez.

Ela tinha vinte e dois anos quando recomeçou.



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Notas finais do capítulo

Pesado, né? Doeu muito escrever algumas cenas. No geral, eu curti bastante o resultado, e espero que vocês tenham gostado!

Um aviso: coloquei essa história no spirit e no wattpad e vou atualizar lá até estar toda postada. Então, quem preferir outras plataformas, fica aí outras opções. Os links estão no meu perfil aqui no nyah.

Quem quiser entrar em contato comigo, só chamar lá no twitter @_lovemyway

Até logo, e obrigada por ter lido ♥



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