O Entregador de Estrelas escrita por Beatriz Azevedo


Capítulo 6
Eu salvo alguém




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Corri de volta para a fábrica. Como sempre tentei disfarçar minha sombra ao passar perto do prédio da Sra. Hills. Pulei a grade e fui em direção ao dormitório. Quando toquei na maçaneta para abri-lo alguém colocou a mão no meu ombro e eu pulei contendo um grito assustado.

“Alguém esta fora da cama sem autorização” Me virei para encarar Mr. Samson.

“Desculpe, eu… eu-”

“Acho que ia se safar?” Sua voz grossa e alta era um ótimo contraste com a minha que parecia ter se perdido.

Mordi os meus lábios roxos com frio.

“Tem sorte que eu me simpatizo com você e não te mando embora.”

“Obrigado, Senhor.” Falei girando a maçaneta, mas ele me impediu novamente.

“Poderá ficar se sobreviver está noite.” Ele concluiu e eu engoli em seco. “Vai dormir aqui fora. Boa noite.” Ele se virou e começou a andar em direção à casa iluminada do outro lado do pátio deixando suas pegadas na neve que não era branca por causa da sujeira. Ele parou de repente e me encarou. “Onde você estava?” Enquanto ele falava fumaça saia de sua boca e eu o imaginei como um dragão das historias que minha avó contava.

“Eu…” Comecei e deixei a palavra continuar a sair sem rumo de minha boca.

“Aprenda a completar frases!” Ele deu um passo em minha direção e se abraçou mesmo que, embaixo de todos aqueles casacos era quase impossível sentir frio. “Além de analfabeto não sabe falar.” Ele murmurou em um tom que eu pudesse ouvir. O fitei “Não fique me encarando. Responda! E responda com uma frase completa!”

Mexi meus pés que chegavam a arder de tanto frio. Ele franziu a testa e eu tentei me afastar enquanto ele se aproximava.

“Não vai responder?” Olhei para minha mão direita que mostrava os ferimentos de ontem e depois o encarei. “Eu ia lhe dar uma lição, mas este frio já vai servir para algo e se você sobreviver, amanha conversamos.” Com isso ele se virou e foi embora em definitivo. E eu?

Eu não tive muita escolha (como sempre) a não ser forrar o chão com a madeira podre que ficava empilhada do lado do dormitório das meninas e tentar dormir. Tremi ao sentar na madeira gelada e úmida. O edifício cortava um pouco o vento glacial que vinha do norte. Dobrei a manga da minha camiseta e observei os machucados, entre eles o mais recente se destacava, estava roxo. Levantei meu braço e comecei a torcer um pouco da pele, acabei por desistir. Minha exaustão e frustração já haviam levado o melhor de mim.

Deitei minha cabeça na bolsa de carteiro após enterrar a adaga do meu lado e eu fingi que a neve era na verdade pedaços de nuvens e que eu estava dormindo no céu. Um céu gelado, sujo e mortal.

Acordei cedo no outro dia. Ainda não era minha hora de virar estrela, imagino. Eu ainda tenho coisas para fazer e isso inclui obedecer o que me foi requisitado. A questão é que todos viram estrelas no final, mas alguns brilham mais que outros e eu quero brilhar, quero que minha avó me encontre para que ilumine o caminho e no final eu possa estar com ela. Pisquei e observei os flocos de neve que caíram no meu nariz. Sorri esfreguei a neve como se ela lavasse meu rosto que não via água tão limpa há um bom tempo.

“O que esta fazendo? Vai morrer de frio!” Uma voz doce pareceu cair em cima de mim vinda do céu. Olhei para cima onde Victória me observava pela janela de seu quarto. Observei seu cabelo loiro dourado comprido e mal penteado que tentava cobrir seu rosto. Ela o jogou para o lado e esperou uma resposta que morreu na minha garganta como todas as respostas que tento formular. “Não vai responder, mudinho?” Ela perguntou apoiando o braço no batente da janela e apoiando sua cabeça em sua mão. Sorri. Não me incomodava mais quando me chamavam de mudinho. Era melhor do que ficarem falando meu nome verdadeiro e ficarem me lembrando dos meus pais. “Espere um instante!”

Levantei uma sobrancelha e me sentei observando a neve que caia mais suavemente agora. Ouvi o barulho de uma porta abrindo e logo os passos de Victória a denunciaram. Ela carregava um cobertor surrado e sorria. “Ele te obrigou a dormir aqui?” Ela perguntou e eu olhei para outro lado e torci o lábio. “Deve estar com frio.” Ela estendeu o cobertor e eu me senti muito mais aquecido mesmo que fosse uma camada muito fina. Ela ajeitou o vestido cinza remendado e sorriu novamente. “Está melhor?”

“Muito. Obrigado.”

Ela fingiu uma cara surpresa “Gente! O mudinho falou!” Ela riu e se sentou na madeira úmida pela neve. “O que está te incomodando?”

“Eu não sei como chegar em Nordstrand.”

"Isso é fácil. De barco." Ela sorriu e depois franziu a testa. “Por que iria querer ir tão longe?”

Encolhi os ombros.

“Poderia ir de barco… se tivesse dinheiro.” Ela entortou o lábio “O problema é que as viagens são caras, o tempo é enorme e muitos morrem quando vão trabalhando, fique aqui”

“Eu não posso, tenho uma coisa importante para fazer”

“Como quiser.” Ela olhou para outro canto provavelmente entediada. “É considerado impossível fazer você mudar de ideia”

Fiz uma careta e concordei de leve.

Ela se levantou, bateu as mãos à fim de limpá-las e olhou para o chão preocupada “Sabe como está o Stwart?” Mordi o lábio e fiz que não. “Bom… espero que ele fique bem. Nos vemos no refeitório.” Ela acenou e caminhou e direção à porta.

“Victória!” Gritei (o que provavelmente resultou em um tom de voz normal) e tentei evitar sentir o arranhão na minha garganta toda vez que falo mais alto.

Ela se virou e sorriu.

“Obrigado.” Falei e ela assentiu.

Me levantei ao ouvir o clique da porta fechando. Rapidamente desenterrei a adaga e a guardei na bolsa de carteiro. Caminhei lentamente ate o dormitório dos meninos e entrei no quarto. Todos dormiam. Não pretendiam acordar as quatro ou cinco horas. Lentamente forcei meus pês ate meu colchão, me sentei e tirei o livro da bolsa. O L I V E R T W I S T. Franzi a testa. “Oli…” Parei de falar e me lembrei do que Matilda havia falado. ‘Oliver Twist’ minha mente sussurrou e eu comparei os sons. Sorri vitorioso. “Oliver Twist…” Senti as silabas saindo de minha boca e repeti o titulo. Dei uma risada e corri ate a janela “Oliver Twist!” Gritei ignorando o quanto minha garganta ardia e escutei minha voz ecoar pelo pátio. Ouvi muitos resmungos sonolentos que sentiam muito frio para se incomodarem de acordar para brigar comigo. Abracei o livro. “Oliver Twist” sussurrei mais uma vez fechando os olhos. A felicidade, infelizmente não me aqueceu e eu perdi os sentidos abraçado ao livro.

“Ei, vamos, temos muita coisa para fazer!” Acordei com Charles me empurrando para fora da cama. Haviam mais três meninos arrumando suas camas e mais dois ajoelhados, provavelmente rezando. Olhei pela janela onde eu conseguia ver a pequena praça com o relógio marcando 5:30. “Você está bem?” Charles perguntou e eu me virei para ele lembrando que eu ainda habitava o planeta terra.“Quer chamar uma enfermeira?”

Pensei em concordar, mas pensar em receber um visita do Sr. Samson na enfermaria parecia muito agonizante. “Olhe para você, esta branco como a neve la fora, vai morrer!” Charles continuou e eu virei minha cabeça para olhar para outro canto.

“Eu vou melhorar sozinho. Vou ficar bem.” Respondi.

“Sabe que se as freiras te verem elas vão te mandar para a enfermaria”

“Então não vou para a cafeteria. Vou direto para a fábrica hoje, ok?”

“Você quem sabe” Ele encolheu os ombros.

Então quando todos se voltaram para o refeitório eu fui em direção à fábrica. Abri as portas e olhei em volta: algumas crianças já tralhando entre a fumaça e os sapatos. A fumaça que eu respirava ardia na minha garganta (mais do que já estava ardendo) e o fogo que vinha do outro lado da sala no era suficiente para aquecer todo o local fazendo-me sentir frio e calor ao mesmo tempo. Não era surpresa que eu estava doente.

“Hey! Vamos, temos muito para fazer!” William gritou e eu me virei para o encarar. Todos tinham medo do William, mesmo que ele fosse um de nós e tivesse nossa idade. Olhei para as crianças. Era fácil identificar o Phelip. Ele sempre estava com as bochechas vermelhas de cansaço e mesmo que o que nós ofereciam na fábrica era o mínimo para continuarmos vivos ele conseguia ser mais gordinho que os outros. Observei enquanto William se aproximava dele. “Mais rápido!” Ele gritou nos ouvidos de Phelip. Phelip começou a puxar a alavanca mais rapidamente, mas não rápido o suficiente para que William não o mandasse parar e o arrastar para a parede.

Entrei em panico enquanto William arrastava Phelip pela orelha. Todos que trabalhavam disfarçaram o olhar para o que aconteceria a seguir. Era horrível, mas mesmo que não quiséssemos nossos olhos nos traíam e nós acabávamos vendo. Tentei respirar me encostando na parede, mas ai os gritos e o choro abafado cortaram o ar e eu caí em desespero. O barulho persistiu com som de socos pelo que creio chegar a um minuto até que ele mandou dois garotos levar Phelip para a enfermaria. Os garotos passaram por mim e eu levantei minha cabeça apoiada em minhas mãos para espiar. Phelip estava com o rosto e bracos cheios de hematomas, seu nariz sangrava e ele não abria os olhos. ‘Sera que alguém pode morrer assim?’ Eu pensei, mas fui interrompido pelo gesto de William para que eu me aproximasse dele. Respirei fundo e andei em sua direção. “Mudinho, vá lá em cima e busque madeira.”

Resmunguei algo, meti minhas mãos nos bolsos e subi as escadas. Olhei para o dormitório das meninas que ficava do outro lado do pátio aonde a pilha de madeira se encontrava. Andei perto da grade do portão observando o trânsito de charretes. Parei ao notar que os filhos do Sr. Samson brincavam na rua. Me apoiei na grade e examinei cada movimento de suas faces. Ele tinha três filhos: Felix, Mary e George. Todos eram snobes como o pai. Menos o George que por ser mais novo não tem direito a quase nada e ninguém espera grande coisa dele.

Eles brincavam de jogar uma bola colorida pra lá e pra cá. Meus pensamentos vingativos se recordaram do dia que eu acordei com Mary tentando roubar minha bolsa de carteiro e depois mandou que eu mostrasse o que havia dentro. Ela me deu um tapa na face e se ela não fosse filha do dono da fábrica ou uma garota ou se não fosse meu tipo nada atlético eu provavelmente teria revidado, ao invés disso eu tive que jogar minha bolsa pela janela e quebrar a maioria das coisas que haviam dentro. Meus pensamentos malignos tomaram conta de mim e eu me vi desejando que a bola colorida caísse no meio da rua e ela fosse atropelada. E foi ai que aconteceu:

Ela não conseguiu segurar a bola que rolou para o meio da rua. Arregalei os olhos enquanto ela olhava para os dois lados para atravessar a rua. 'Um cavalo descontrolado vai atropelá-la' entrou nos meus pensamentos. Ouvi o trote do cavalo se aproximando, o barulho era ensurdecedor, mas ela parecia não ouvir. Me ajoelhei tentando aguentar o barulho e os rangidos da charrete.

“Mary, não!” Gritei e apanhei uma pedra do chão. Atirei a pedra que atingiu o tornozelo do cavalo que gritou e parou de andar parando à poucos centímetros da menina horrorizada.

Ela me encarou assustada, pegou a bola e correu em minha direção. Olhei assustado para minhas opções de fuga. Nenhuma. E para piorar eu conseguia ouvir os passos de William subindo as escadas.

“Hey! Fique ai!” Ela gritou abrindo o portão e levantando seu vestido que arrastava na neve ao andar. Engoli em seco e observei ela se aproximando mais e mais até que de repente ela ficou a menos de meio metro de distância e no outro momento ela me abraçava. Segurei minha respiração e mantive meus braços caídos. Ela soluçava e eu senti suas lágrimas molharem meu casaco. “Você me salvou, obrigada” Ela falou e continuou me abraçando. Tentei fazer com que ela reparasse em meus olhos de descrença, mas ela estava ocupada demais me abraçando e soluçando.

“Licença.” Falei me afastando dela e ela me encarou confusa por alguns instantes. Depois ela arregalou os olhos e olhou para o chão.

“Desculpe…” Ela acrescentou rapidamente.

“Eu-” Eu comecei tentando inventar qualquer desculpa para que ela não fizesse seu pai me despedir.

“Hey! Idiota! O que está fazendo?” Ouvi a voz rouca de William gritando. Arregalei os olhos e Mary o encarou insatisfeita.

“Idiota você! Não vê que eu estou conversando com ele? É cego por acaso?” Mary pegou uma pedra no chão e atirou na direção de William que se esquivou sem problemas. Ele semi cerrou os olhos e voltou para dentro da fábrica. Ela se voltou para mim e sorriu. “Você já tomou café da manhã?” Tentei não manter minha mente no fato de sua voz mudar de tom tão rapidamente e me concentrar no que ela havia dito.

Fiz que não.

“Então venha.” Ela falou me puxando, mas eu me mantive parado.

“Não, eu preciso voltar agora.”

“Vai mesmo negar chocolate quente?” Ela perguntou e eu ouvi sua frase mais como uma ameaça que um convite. Eu posso não ter medo de muita coisa, mas a Mary me apavora.

Mordi o lábio e pensei que ela podia estar me enganado. Ela iria me dar comida e depois dizer que eu roubei.

“Vamos, não vou te morder. Confie em mim.” Ela me guiou para a mansão no canto norte do pátio e abriu o pequeno portão que separava as pessoas da fábrica da rica e próspera família Samson. O portão dava de cara com um caminho com grama coberta de neve. A casa soltava uma fumaça branca no ar e eu já imaginava o calor de dentro. Ela abriu a porta e fez um gesto para que eu entrasse. A sala era espaçosa e possuía a lareira de pedra mais bonita que eu já havia posto os olhos. Me lembrou da lareira de casa que tinha queimado a parede de trás fazendo-a ficar preta. “Sente-se” Ela falou sorrindo e apontando para um sofá verde e macio do outro lado. Olhei desconfiado para o sofá e optei por sentar no tapete perto da lareira. Mary trouxe uma caneca com um liquido grosso, doce e cor de cacau “Eu já volto, fique à vontade” Ela falou e sumiu.


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