Enigma escrita por Matheus Pereira


Capítulo 4
Brutal


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!

*The Noble Experiment refere-se à Lei Seca americana que vigorou de 1920 a 1933, terminando como um fracasso. Proibia a produção, transporte e consumo de bebidas alcoólicas.
**Blindtigers referem-se aos bares clandestinos dessa época, muitos operados por pessoas ligadas ao tráfico.



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CAPÍTULO 4

8h19

O inspetor Thomas adentrou a antiga casa logo após Ruby. A habitação miserável, que a pobreza obrigou a jovem a morar, não diferia tanto da rua sulcada e lamacenta. De tão velha, a casa parecia estremecer sob seus passos no negro assoalho de carvalho. Thomas tinha a sensação que a casa iria ruir. As janelas estavam acortinadas por um tecido tão escuro que não dava a chance do menor raio de sol nascente atravessá-las. Se apenas isso fosse o pior. Nenhum sopro do ar exterior circulava. Fitou a mobília barata e sem brilho: poeira se acumulava em uma modesta escrivaninha. A falta de espaço era opressora. A casa era demasiado pequena, sombria, suja e pobre. Thomas sentia-se como se estivesse confinado numa gaiola. Uma depressão profunda inundava-lhe a alma, acentuando-se a cada passo adentro daqueles frios muros cinzentos. Seu coração parecia se apertar: um desespero contido crescia dentro de si. Estava se sentindo sufocado, quanto mais respirava aquela atmosfera peculiar e que não se renovava. O ar era de uma severa e aguda melancolia, que pairava baixa, envolvendo cada átomo do aposento. Como poderia aquela jovem dama, que há tão pouco conhecera, viver ali e manter tal beleza e vivacidade?

Como se notasse o desconforto do rapaz, Ruby acendeu algumas velas na cozinha, numa tentativa de dissipar a escuridão do ambiente.

– Permita-me, senhorita – disse Thomas, desapertando o nó da gravata e metendo a mão por dentro dos colarinhos da camisa. Tirou o seu chapéu, revelando os cabelos ruivos.

– O senhor gostaria de um pouco de café? – perguntou Ruby, numa voz trêmula. Thomas olhou hipnotizado, num misto de pena e horror, para as maneiras da jovem. Apesar de ter testemunhado uma cena que, da forma como descrevera, era pavorosa; ela mantinha certa calma. Encontrara o cadáver de seu noivo e, meticulosamente, escrevera um bilhete para que um menino entregasse a polícia. Não parecia abalada. Esperava ela por aquilo? Como uma jovem poderia manter-se, em tais circunstâncias, aquele sossegado estado de espírito? Das vezes que lidara com casos de assassinato, Thomas já tinha visto pessoas vomitarem, desmaiarem ou simplesmente em desespero diante de um corpo morto. Ruby, por sua vez, não estava no seu mínimo perturbada. Estava à sua frente oferecendo café. Thomas tentava estudá-la, analisando suas feições, querendo penetrar nos recônditos de sua mente. Em vão, era como se ela tivesse um escudo e nada podia ser lido. Tudo o que seus olhos verdes exprimiam era um vazio. Aquela indiferença o fez suspeitar da pessoa com quem falava.

– Senhor? – perguntou Ruby novamente, tirando-o de seus devaneios.

– Oh, não, muito obrigado – pausou, enquanto se sentava à mesa. – Deve estar sendo muito difícil para você, suponho.

– Muito difícil – ela respondeu numa voz serena e macia, sentando-se – É duro acreditar... Você se pergunta quem poderia ter cometido tamanha brutalidade. É como se... Não desse para acreditar, entende? Tão a sangue-frio... Oh, pobre Daniel!

Havia certa emoção compelida e obrigada em seu discurso. Ruby deu um suspiro profundo, não sucumbindo ao fixo olhar do inspetor Thomas.

– O senhor não precisa ouvir-me. Quero dizer, não precisa sentir pena. Que mais eu posso fazer, certo? Devo manter o controle – ela disse em sua voz melodiosa e sedutora, fazendo com que as suspeitas de Thomas esmorecessem. Como poderia desconfiar daquela jovem? Seu comportamento sereno e centrado não seria, por fim, muito melhor que o melodramático de tantas mulheres que conhecia? E a troco de quê? Manter a calma certamente ajudaria a polícia muito mais, ao passo que chorar torrencialmente e não conseguir responder à um interrogatório atrasaria uma investigação onde o tempo era crucial.

– Se é de algum consolo, senhorita... Quem quer que tenha feito isso ao seu noivo, não há de sair impune – disse o inspetor Thomas, tocando a mão de Ruby delicadamente e tentando soar o mais firme possível em sua afirmação.

8h22

Andar por aquela estrada, à margem das árvores, fora uma tarefa miserável, sobre a qual Warwick não perdeu a oportunidade de reclamar. A lama tornava a caminhada difícil. As árvores eram espaçadas o suficiente para enxergar alguns metros da floresta à dentro. E, após poucos minutos, o coronel Warwick, o detetive Lucchesi, o médico Andrew e o policial George se depararam com uma figura humana que jazia próximo às árvores apodrecidas. Não se podia ver muito dali: o corpo fora abandonado a uma relativa distância da estrada. Aproximaram-se, finalmente adentrando a floresta. O cheiro podre e nojento de putrefação se tornava mais forte a cada pisada no terreno enlameado.

De repente, este não era mais o problema. O rapaz havia sido claramente assassinado em tamanha brutalidade que deixou mesmo Warwick sem reação. Em todos seus anos de trabalho, jamais vira tal coisa. O cadáver do jovem rapaz se encontrava de barriga para baixo, próximo a uma árvore. Seu rosto estava mergulhado na terra encharcada. Suas roupas; ou o que ainda restavam delas; estavam todas sujas numa mistura de lama e sangue, que formava uma piscina negra sob a terra molhada. E quanto sangue! Quanto sangue aquele homem guardava dentro de si! Quem quer que tenha cometido aquele crime não poderia ser chamado de humano e, não fosse pelos mórbidos detalhes que a polícia iria logo descobrir, poderiam muito bem creditar aquele crime à besta ou a algum animal. Quem tinha sido capaz de empreender aquele assassinato tão cruel? E, não só isso, mas qual a motivação que teria levado essa pessoa àquilo?

A mata então se balançou com o vento que sacudiu as árvores, fazendo folhas uivarem e caírem como numa dança. Um pássaro cantou ao fundo e o sol despontou por entre as nuvens novamente. Era como se a natureza estivesse alheia a toda aquela violência que enchiam os olhos daqueles homens de pavor e os lembrasse de que o tempo não parara.

– Jesus – Andrew quebrou o silêncio – Deus, isso é... Terrível. Que... Macabro! Simplesmente, macabro!

Uma agonia tocava a todos no fundo de suas almas. Lucchesi respirou fundo e, com toda a determinação que pode reunir, foi adiante. Agachou-se e tocou a pele do cadáver.

– Mais interessante que eu havia pensado... Quem diria, nesse fim de mundo... Bem, o corpo já está bem frio. Eu diria que a morte se deu nessa madrugada – afirmou.

O legista pareceu sair de seu estado de hipnose ao perceber que Lucchesi estava fazendo um trabalho que ele quem devia levar adiante. Warwick olhava Lucchesi com desdém e, em seguida, fuzilou o médico legista com uma expressão que indicava que ele deveria dar sua opinião prévia – e logo. George, antes que tivesse de receber o mesmo tipo de aviso, se apressou em raciocinar. Começou a analisar o local do crime atentamente, em busca de evidências.

– Er... sim... A pele do rapaz está... er... Branca, sem cor... O corpo está aqui há mais de duas horas... É, pallor mortis já se estabeleceu e... er... –, disse, ao se agachar e ao tocar o corpo – Algor mortis também. O corpo já está na temperatura ambiente.

– Vou precisar que tente ser mais específico que isso e pare com essa baboseira técnica – Warwick esbravejou.

– Er... Os músculos... Os músculos estão rígidos. Não totalmente... Mas estão.

– E?

– Bem – respirou fundo – Indica que a morte foi há cerca de dez horas, senhor. Entre as 22h e as 2h de hoje, provavelmente – afirmou o legista, mais confiante.

– A esta hora da noite, somente as bestas estão acordadas. Dificilmente um transeunte teria visto quem tenha cometido o crime, especialmente nesta área tão remota – concluiu o policial George, agachado no chão, a poucos metros.

– Sim, George, obrigado por reiterar o óbvio. Impossível saber o que seria da força policial sem você – Warwick vociferou rispidamente – Conseguiu algo útil?

– Receio que não, senhor. A lama está encharcada demais para se formar pegadas – repensou na frase – Digo, elas até se formam, obviamente. Mas com essa umidade, a lama apenas serve para nos fazer escorregar. Pegadas de até dez horas atrás, infelizmente, não... Impossível. Arma do crime foi provavelmente levada, mas tenho que vasculhar o perímetro ainda. – George observou.

Sem dar atenção ao que George acabara de dizer, Warwick olhava para o horizonte, como se contemplasse uma excelente idéia.

– Com tanto sangue... Os trajes do assassino ficaram bem manchados, não? – perguntou, dirigindo-se ao legista.

– Certamente, senhor... Devo analisar as feridas posteriormente, é claro. Mas não vejo como, nesse abatedouro, as roupas não tivessem ficado banhadas – esclareceu Andrew Bundy.

– Temos algo, imagino. O sujeito deve ter abandonado as roupas em algum lugar. Ou, senão o fez, vive sozinho, não tendo que dar satisfação a ninguém. Isto explicaria o horário do crime. E, claro, há chances de ele ter caminhado alguns metros ou quilômetros, dependendo de onde mora. Com um pouco de sorte, algum transeunte o viu. As roupas cheias de sangue certamente chamariam atenção – Warwick falou, em tom animado.

– Se ignorarmos a espessa neblina dessa madrugada e falta de iluminação nas ruas, certamente – Lucchesi desafiou-o.

– Seu cérebro de ervilha tem alguma teoria melhor? – replicou Warwick.

– Sugerir que o assassino abandonou suas vestes é ridículo. Depois, teria feito o que? Andou nu no frio da madrugada? Warwick, o senhor deveria pensar melhor antes de falar baboseiras. Sei proprio un idiota! Não sou eu que tenho um cérebro de ervilha, coronel... – disse Lucchesi.

– Sendo assim, não és tão melhor! Ainda não sugeriu nada! – esbravejou Warwick, com a veia da testa saltando e o rosto tingido de vermelho.

– Ah, Warwick. São tantas as possibilidades! Não quero me precipitar. Fora isso, eu não vejo o porquê do alarde diante dos trajes. Estes são o de menos. O sujeito pode tê-los abandonado no dia seguinte, certamente. Jamais logo depois do assassínio. E esse fato não impede de que more com alguém, inclusive. Que hipótese furada! – soltou uma risada – Algumas amantes minhas têm o sono bem pesado, coronel. Saio da cama, tomo um banho, me arrumo, e elas ainda estão lá. Certamente o senhor não tem as mesmas experiências, mas... Não vamos riscar isso do nosso leque de possibilidades por causa desse seu pequeno problema, não é mesmo? – gargalhou de si mesmo. Warwick se conteve e em seguida bufou, mas as palavras o fugiam.

– Ah! Tem mais... Mesmo que alguém o visse com as roupas ensangüentadas, não creio que chamaria assim tanta atenção. Se for seguir esta linha de raciocínio, senhor, acabarás por prender um desses inocentes açougueiros que andam pelas ruas do condado. Nosso sujeito poderia simplesmente ser confundido com um desses – observou o detetive Lucchesi.

– Então você quer que façamos o que, bastardo? – Warwick perguntou impacientemente.

– Não estou aqui para te ensinar a raciocinar, Warwick, mas como sou um homem caridoso, cabe um conselho. Caso o senhor permaneça conduzindo essa investigação brincando de política para se promover à custa da repercussão do caso na imprensa, acabará por andar em círculos. Não se agarre a fatos que são um beco sem saída. Estarás focando na árvore, não na floresta. Que tal explorar um pouco mais a cena do crime, conduzir os interrogatórios, analisar relatórios e deixar suas conclusões para depois, certo? Ser precoce demais é sempre um problema. O senhor bem sabe – Lucchesi soltou outro riso. Andrew, perplexo, fitava a cena, enquanto George parecia absorto em pensamentos, mais afastado dos três.

– Seu dago miserável! Como você é pretensioso, me desafiando! Pois então acha que pode me ensinar como fazer meu serviço? Pois estou nesse cargo há décadas, sei lidar com assassinatos por experiência – Warwick rugiu. Sua raiva e seu temperamento explosivo opunham-se à calma e serenidade que constituíam o semblante de Lucchesi. Warwick parecia estar no ímpeto de partir para cima do detetive, mas a voz de George deteve-o.

– Mas que diabos...? – o policial falou alto o suficiente para que os demais o ouvissem – Ah, meu Deus!

Os demais venceram a vegetação e foram de encontro a George. Ele estava agachado e parecia puxar o vômito. Ao seu lado, nós do intestino da vítima formavam uma pilha e exalavam um terrível cheiro pútrido. Uma nuvem de moscas-varejeiras, em enxame, esvoaçava ao redor do intestino exposto e zunia. As moscas dançavam em ondas, disputando as vísceras do falecido. Nos galhos de um carvalho sob suas cabeças, um corvo crocitou estridentemente. Lucchesi lançou, involuntariamente, um olhar para o alto e, quando o fez, viu dois desses pássaros. Um deles ferozmente alçou vôo, a cauda negra bela e forte batia sobre o tímido sol. O outro engoliu um pedaço de carne que estava em seu bico e, em seguida, fez o mesmo, planando bem alto.

8h42

— Não, eu não sei! Eu não o vi! – Ruby dizia em tom um pouco alto e ligeiramente grosseiro, em resposta a quem quer que fosse que a havia chamado na porta de casa. O inspetor Thomas largou a xícara de café – que acabou por aceitar após alguns minutos de conversa – desequilibradamente sobre a mesa da cozinha. Foi verificar qual era o motivo daquela conversa exaltada. Aproximando-se, ouviu uma voz feminina desgastada e cheia de pausas perguntando:

– O que... Os policiais estão fazendo aqui?... Por quê?... Aconteceu... Algo? Sabe de... Algo? Oh! Não! Não! David!

Tratava-se de uma senhora baixinha e rechonchuda, de cabelos curtos, ligeiramente claros, com alguns fios escuros ainda resistindo e olhos azuis. De trajes simples e gastos, ela tinha uma postura um pouco curvada.

– Já disse que não! Essa não é uma boa hora! Vá embora, por favor! – Ruby retrucou, irritada. Aproveitando a oportunidade, o inspetor Thomas interrompeu a discussão e saiu da casa, finalmente respirando ar puro.

– Ruby, acalme-se um pouco... Quem é a senhora? – perguntou.

– Rose... Rose Becker. O senhor é um dos policiais? Meu filho... David... Está desaparecido! – sua voz era marcada por tristeza e melancolia e, ao assimilar o que aquela frágil senhora o disse, Thomas estremeceu, sentia-se pesaroso por ela. Aos seus 25 anos, ainda não era pai – se dedicou, desde muito cedo, ao Exército e à força policial. Contudo, era difícil não simpatizar-se com a senhora. A dor que ela sentia era bem perceptível no tom da voz e na expressão facial.

– David Becker é conhecido de Daniel? – Thomas virou-se e perguntou à Ruby, que tinha um semblante artificial, tentando recompor a serenidade.

– Inspetor, isso não é relevante – ela deu um sorriso torto, e apoiou a mão em seu ombro, como se estivesse a assegurá-lo do que acabara de dizer. Desconcertou-o por alguns segundos, mas Rose Becker quebrou seu "encanto":

– Eram sim! Oh, eram... Amigos, eu diria. Mas, policial...

– Inspetor Thomas! – Ruby tentou cortar a senhora.

– Inspetor Thomas, David e Daniel eram bem diferentes! David não era dado com a bebida. Não, não sempre foi um rapaz ponderado. Ele não desrespeitaria o The Noble Experiment*. Não leva uma vida de indecência... Oh, não que o Daniel leve! – Ruby estremeceu – Quero dizer, apenas... O senhor deve saber... Há muitos blindtigers** por aí... É... Natural que os homens visitem-nos.

– Não é exat... – Ruby disse e foi cortada pela voz firme de Thomas.

– Claro... A senhora deveria aguardar aqui. O delegado e o detetive estão vindo. Provavelmente, a senhora será útil. E poderemos te ajudar.

– Mas do que... Trata-se isso tudo?

– Daniel Smith foi encontrado morto, senhora.


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Notas finais do capítulo

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