Enigma escrita por Matheus Pereira


Capítulo 12
Improvável


Notas iniciais do capítulo

Vou dedicar este capítulo - adiantado - à KariAnn, que, por livre vontade, recomendou "Enigma". Para um escritor, este tipo de reconhecimento é muito bom! Meu muito obrigado, e espero que você goste de "Improvável".

Neste capítulo, Lucchesi analisa o caso Daniel Smith com as descobertas que fez. Tudo parece ainda mais complexo diante dos novos dados. Como o italiano irá desvendar esse quebra-cabeças?

Uma excelente leitura a todos!



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Quarta-feira, 5 de março de 1930

3h25

Maledizione! Mas que diabos isso tudo significa, afinal? É tudo tão improvável. O falso testemunho da senhorita Becker, que misteriosamente desapareceu durante o horário do crime e extraordinário por si só. Mas me surpreende ainda mais que Ruby Morgan tenha sido vista conversando com o noivo que viria a ser assassinado logo depois – Lucchesi finalmente comentou, sem esconder seu entusiasmo. Estava estacionando o carro em frente ao minúsculo prédio do Departamento de Polícia, ao lado da mercearia. O bar clandestino provavelmente estaria aberto até pouco antes do amanhecer. Contudo, não parecia possível extrair mais informações relevantes sobre Daniel e David sem atrair suspeita.

– Não sei o que esses fatos fantásticos, cada um de seu modo, significam, Lucchesi. Mas apenas me lembram da cautela que você tanto disse. Não sei se podemos confiar no que aquele rapaz afirmou – Thomas abandonou a noite fria e entrou no prédio onde somente estavam um expedidor e um oficial em serviço – Temos que checá-lo. John de Unionville. Não será tão fácil, nome muito comum. Mas aquela figura albina exótica deve ser facilmente reconhecida.

– A história me pareceu muito casual. Não vejo porque suspeitar do rapaz. Não há nada de errado com ele – Lucchesi se jogou na poltrona do escritório do delegado Warwick e se pôs a derramar querosene na lamparina – Posso concordar é que é possível ter havido um julgamento errado, isto é, ele ter visto outras pessoas e achar ter visto Daniel e Ruby. Era uma noite chuvosa e precisa se ter uma boa vista para reconhecer alguém com tão pouca iluminação. Mas isso é bem improvável.

– Já eu... Eu não confio no rapaz, não confio em nenhum deles – sentou-se em frente à Lucchesi e apoiou os antebraços no suporte da cadeira – John, se é que esse seu nome verdadeiro, colocou-se como uma testemunha. Essa é uma forma muito boa de justificar sua presença próximo à uma cena de crime quando se é o assassino. Isso é uma possibilidade, certo?

– Há algo de errado com sua teoria, porém – Lucchesi se inclinou para frente, como se estivesse a contar um segredo – O tempo. O legista está falando em 22h30 como horário mínimo da morte. É a hora que John era esperado para chegar a sua casa. Mesmo tendo chegado dentro de meia hora depois, não sobraria tempo hábil para perseguir Daniel Smith pela mata, domá-lo, tirá-lo a vida e depois um monte de órgãos e as tripas. Isso leva tempo – massageou os olhos – E depois John dirigiria até a casa. Teria chegado lá bem mais tarde do que afirmou. Mesmo que estendamos o tempo de morte para menos.

– Em qualquer caso, teremos que dar um jeito de checar isso tudo amanhã. A esposa tem que confirmar a versão. E isso é quase impossível, é achar uma agulha no palheiro. Nas suas condições, não há nem mesmo tempo para se perder com tudo isso – Thomas desviou sua atenção para a luz fraca da lamparina e pareceu refletir um pouco – Tomando sua versão como verdadeira, afinal... E também excluindo o quesito "meios", pois foi um assassinato muito brutal para ser cometido por mãos femininas, temos Ruby Morgan. Não explica porque o chapéu de David Becker estava na cena do crime.

– Não explica nada sobre David Becker, você quer dizer. Ele é um elemento que simplesmente não se encaixa na história – Lucchesi disse – Às 21h40, temos a confirmação que Daniel Smith e David Becker deixaram o bar juntos. Mesmo deixando o lugar no meio do temporal, não havia nada de errado com os dois. Na verdade, estavam muito animados. Riram e beberam – olhou para o teto do cômodo escuro por alguns segundos, como se estivesse refletindo – Devem ter demorado vinte minutos para chegar à casa dos Becker, não é?

– Andando, deve ter sido isso – Thomas confirmou.

Bene, você não esperaria que um rapaz feito David fosse direto para sua casa, a fim de não deixar a mãe tão preocupada. Mas não – suspirou – David Becker simplesmente desaparece a esse ponto! Sua irmã, Megan Becker, sai de casa por volta das 22 horas. Um fato. Não sabemos para onde ela, afinal, tenha ido, mas, de qualquer modo, afirma não ter visto o irmão. E até mesmo perguntou por ele no bar clandestino. Teria sido um despiste? Enfim, tomando como uma verdade que Megan Becker não tenha visto David Becker ao sair de casa, então ele teria seguido em frente com Daniel Smith? Também não. Daniel Smith é visto sozinho, dez minutos depois em uma conversa acalorada com a noiva, Ruby Morgan, alguns 300 metros adiante, na varanda da sua residência.

– Há algumas possibilidades, Lucchesi. Como você apontou, um despiste, embora seja uma ideia que não me agrade. Novamente, o problema do crime não ser um crime feminino. Como ela abateria dois homens feitos? E por que faria isso?

– Prossiga. Em que mais consegue pensar?

– David Becker teria se escondido na mata. Deliberadamente. É o assassino. E isso explica o chapéu...

– Ou o chapéu foi plantado por nosso assassino. Ou assassina, que seja... Quem se beneficiaria com o sumiço de David? Quem se beneficiaria com o chapéu do rapaz achado na mata? – Lucchesi correu o dedo pela poeira na mesa de carvalho.

– Difícil que isso tenha sido feito, e, pela sua expressão, você mesmo parece achar essa hipótese boba. Alguém precisaria ter roubado-lhe o chapéu para tal feito. E, se formos considerar tal hipótese; temos também que considerar que houve um duplo homicídio. Um duplo homicídio apenas para que houvesse um outro suspeito. Bem, sejamos sensatos, Lucchesi. Nós não temos dois corpos, temos somente um. Sejamos sensatos, mais uma vez, e simplifiquemos as coisas. A hipótese de David é a mais provável, queira o senhor ou não – Thomas disse, passando a mão por seus cabelos ruivos.

– Ora, Thomas, não venha com isso novamente! Esqueça, eu sinto que a solução não está aí. David Becker não teria sido capaz de cometer tal crime. Agora, se você não for capaz de me oferecer ajuda, também não me atrapalhe – Lucchesi bufou.

– Lucchesi, sendo assim, com licença. Você é capaz de ficar sozinho. Estou aqui do lado. Apenas tente não destruir escritório do Warwick. Vou tentar descansar, você deveria fazer o mesmo – Thomas disse, deixando a sala.

4h

Lucchesi passava a mão pela barba grisalha agressivamente. Estava desapontado. Como aquele crime poderia ser tão extraordinário? Por que nada ali parecia fazer sentido? Pôs-se a metodicamente rabiscar uma folha de papel, sob a fraca luz da lamparina.

HORÁRIOS

3/3/1930

15h (aprox.) – Ryan Adams visita a casa de Daniel Smith (confirmado por: Ruby Morgan, Ryan Adams)

19h25 (aprox.) – a senhora Becker procura pelo filho, David Becker, que não está em casa (confirmado por: Ruby Morgan, Rose Becker).

19h30 (aprox) – David Becker e Daniel Smith chegam ao bar clandestino. Bebem e jogam bingo. (confirmado por: clientes do bar)

21h (aprox.) – começa a chover.

22h30-0h – Ryan Adams está no cinema em Tifton (confirmado pelo cinema)

21h35 (aprox.) – David e Daniel saem juntos do bar clandestino (confirmado por clientes do bar)

21h55 (aprox.) – David e Daniel supostamente chegam à área em que moram.

22h – a senhorita Becker deixa a casa (confirmado por: Rose Becker, Megan Becker)

22h15 (aprox.) Daniel Smith é visto na entrada de sua casa (confirmado por: John, de Unionville)

22h30 – 23h15 – horário provável aproximado da morte de Daniel Smith (horário estimado pelo legista)

4/3/1930

0h – 0h30 – horário aproximado em que Megan Becker chega ao bar (confirmado por: clientes do bar)

1h30 – A senhorita Becker retorna para casa (confirmado por: dono do bar)

1h50 – A senhorita Becker chega a casa

7h30 – Ruby Morgan descobre o corpo

8h20 – Polícia descobre o corpo

"O que não faz sentido aqui é...", pensou consigo mesmo "Bom, são várias coisas que não fazem sentido. Por que David foi deliberadamente ao bar clandestino, por volta das 19h? Teria marcado encontro com Daniel, então? Ambos pareciam estar felizes e seguindo John, David esboçou até alguns sorrisos. Outro motivo, afinal, para se desconfiar da hipótese de que tenha assassinado o único amigo. Por que, afinal, iria fazer tal coisa se estavam, aparentemente, tão bem um com o outro? Ainda que David fosse, na realidade, um peso para Daniel...".

Então o italiano se pôs de pé e seus olhos cruzaram a sala, aturdido. Lucchesi juntou as palmas das mãos em frente ao rosto, como se estivesse pedindo uma resposta a alguma divindade. Diante do cansaço de um dia inteiro voltado à reflexão daquele único caso, o detetive parecia ter caído em desgraça. Não conseguia responder quem teria matado Daniel Smith. "Um homem, a primeira vista, simples, com uma linda, mas verdade seja dita, apática noiva. Tinha seus defeitos, é claro, mas quem não os tem? Vivia em bares, mas qual era o mal em experimentar as bebidas alcoólicas? Quem poderia querer assassiná-lo, havendo ele quitado todas as dívidas. Bom, quase todas. Havia ainda dois credores: Ryan Adams e David Becker, o fiel rapaz a quem Daniel pacientemente tinha como amigo. Ryan Adams jamais poderia ter matado Daniel por razões óbvias. Tinha um álibi. Já David... Eu apenas tenho a sensação, ou, como alguns ousam dizer a intuição de que não foi ele. Mas do que vale o que eu penso? Talvez eu esteja ficando velho, ultrapassado, é essa a verdade. E eu sou demasiado orgulhoso e demasiado teimoso para admitir meus erros", Lucchesi bufou.

De repente lhe ocorreram as imagens da brutalidade do crime e do quanto o assassino fora desumano. As tripas para fora do corpo e amontoadas davam um toque animalesco para o assassinato. Era a imagem da banalização da vida. Por que aqueles requintes de crueldade? Alguma maligna sede de sangue? Lucchesi precisava descobrir a resposta em pouco menos de treze horas, mas os novos detalhes descobertos no bar o deixaram mais confuso que antes. A lembrança de que precisava cumprir um prazo trouxe-lhe à mente a imagem de uma ampulheta. Finos grãos de areia caíam. A areia ocupava os dois espaços cônicos praticamente na mesma quantidade. O tempo se esvaía. Lucchesi afugentou tais idéias com um balanço de cabeça e voltou a atenção para o caso.

Havia pensado e repensado o caso sob múltiplos ângulos, tantas vezes que era impossível contar. "O que me incomoda mesmo é o tempo. Como David Becker sumiu de uma hora para outra naquela noite? Para onde teria, afinal, ido, e o que teria feito, riscando a hipótese de que não seja o assassino?", pensou, voltando os olhos para o papel rabiscado. "David e Daniel teriam chegado do bar clandestino em algo entre 21h50 e 21h55. Supondo que voltavam altos pelo efeito da bebida e ainda conversando, isso certamente atrasa um pouco o tempo do trajeto. Desse modo, os dois teriam chegado à casa de David apenas dentro de um curtíssimo espaço de tempo da senhorita Becker deixar a mesma residência. Aqui temos, porém, que ela não viu o irmão, tendo até mesmo perguntado por ele no bar clandestino, considerando que sua preocupação era genuína. E a senhorita Morgan, vivendo a alguns metros a frente, também não viu David. John, aquele albino esquisitão com quem conversei no bar, em coisa de quinze minutos depois, no máximo, passou pela residência. O que ele viu foi uma discussão da senhorita Morgan e do senhor Smith. Nada de David Becker. O que aconteceu com esse rapaz entre as 22h e um quarto de hora depois é crucial. O que fez, para onde foi? Como poderia ter assassinado Daniel, de novo, se o próprio Daniel estava na entrada de casa às 22h15? Como pode David ter desaparecido?" Lucchesi tentava se focar o máximo possível, mas andava em círculos, tropeçando em novas perguntas ao tentar responder outras.

"E aí já surgem novas interrogações. Do que vale a palavra da senhorita Morgan, a palavra dela de que não teria visto David Becker? Ela também dissera que não tinha visto o noivo, o que entra em contradição com o testemunho despretensioso do rapaz albino. Fora isso, o que a senhorita Becker disse é bem verdade. Mulheres são tão perdulárias, principalmente as mais bonitas. É estranho que Ruby Morgan tenha se resignado a uma vida sem luxos quando facilmente poderia conseguir uma envolvendo-se com um rapaz rico. Há alguma de errada com ela. Alguma coisa faltando", suspirou.

"Ruby é quase perfeita de tão bonita e simétrica. Os modos contidos e sem exageros são emoldurados por cabelos escuros e frios olhos verdes. Seu comportamento é metódico e calculista, os seus gestos parecem ser mil vezes repensados antes de serem postos em prática. Os velhos vestidos de tecido mal feito não combinam com sua aura angelical. Graciosa, voz doce. Porém, tão apática, tão sem vida. Os mesmos bonitos olhos claros nenhuma emoção denunciam. De tão perfeita, como se tivesse sido esculpida com precisão divina, é incrivelmente sem graça", Lucchesi pensou. "O que ela pensa, e o que ela esconde por trás daquele exterior engessado? É claro que a senhorita Becker não é muito diferente. É fato que mentiu ao dizer que tinha ido ao bar. Ela deixa sem preencher, então, pelo menos, o que fez durante duas horas e meia. Tempo de sobrar para cometer o crime. Posso me lembrar que ela tinha um comportamento apreensivo, de nervosismo até, várias vezes durante o interrogatório."

Olhou para fora, a brisa gélida podia ser sentida mesmo dentro do cômodo. O céu cinza-chumbo guardava a cidade. "Concentre-se, Lucchesi. Concentre-se", disse para si mesmo. O olhar desviou para um caderninho de capa grossa e preta. "As anotações de Thomas", pensou.

Sentou-se na poltrona, subitamente determinado, como se tivesse que correr para salvar a vida de alguém. Não havia ninguém para ser salvo, mas havia alguém inescrupuloso que estava o desafiando, como se fosse quase pessoal. Fora presenteado com um jogo mental e aceitava a tarefa. Abriu o caderno e começou a ler as letras cursivas do inspetor Thomas. As frases só continham essencial para serem entendidas. Eram, por vezes, um pouco desconexas. Lucchesi, porém, não se importava. Ele queria ver o crime por outros olhos.

As anotações seguiam no mesmo estilo até culminarem no interrogatório interrompido de Ryan Adams, no fim da manhã anterior. Por fim, desistiu. Nada ali parecia lhe ajudar. Thomas anotara tudo sobriamente, relatando os fatos, sem espaço algum para observação de algum aspecto comportamental. Tentou organizar os pensamentos, novamente, numa folha de papel:

Para onde David Becker foi às 21h55-22h? Como sumiu?

Por que exatamente a senhorita Morgan brigava com Daniel Smith às 22h15? [o relato de John é, afinal, confiável?]

Por que a senhorita Morgan omitiu que esteve com Daniel?

O que a senhorita Becker fez entre as 22h-0h?

Por fim, quem tinha oportunidade e motivo para assassinar Daniel entre as 22h30 e as 0h?

Ryan Adams / Megan Becker / David Becker / Ruby Morgan

Lucchesi suspirou. Riscou, um segundo depois, o nome de David Becker. Estava trabalhando com a hipótese de que não era o assassino. Seguia um instinto que se transformava em uma teimosia. Tinha a sua frente, afinal, peças embaralhadas de um quebra-cabeça. Todas aquelas situações, aparentemente extraordinárias, que pareciam não manter relação alguma entre si, formavam uma única e simples figura. Sua tarefa era trazer a ordem para o caos, juntar as peças e montar a figura. "Se eu soubesse pelo que procurar, seria tão mais fácil". Suspirou. Acomodado na confortável poltrona, Lucchesi pensava novamente na ampulheta, com seus grãos de areia aos poucos caindo. "Tenho um mistério insolúvel em mãos... Aparentemente insolúvel", lembrou-se. Finalmente se rendeu ao cansaço.


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Notas finais do capítulo

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