O Filho do Conto escrita por Matheus Nascimento


Capítulo 6
Sombra, magia e sangue


Notas iniciais do capítulo

Neste capítulo conto mais sobre a infância de Max.



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CERTA vez, quando Max era menor, sua mãe lhe fez uma pergunta:

− Querido, por que aquelas montanhas são conhecidas por Montanhas da Plenitude?

Sua voz meiga juntava-se num sorriso brincalhão.

− Porque são cheias de penas! – disse o menininho Max, balançando os braços pra cima e pra baixo, imitando asas. Sua inocência divertia a mãe. Ela começou a rir. Uma risada gostosa que logo virou uma gargalhada alta. O menino riu junto, mas sem saber direito por quê.

− Não, meu bem! – explicou ela, enxugando as lágrimas de riso do rosto enquanto afagava seus cabelos louros e já longos naquela época – Plenitude, não “penitude”. Plena e não pena. – Deu um risinho carinhoso e colocou Max no colo. Ele também afagou os cabelos negros compridos da mãe. – As Montanhas da Plenitude – continuou – têm esse nome por causa do lugar pleno que lá é. Da paz que envolve aquelas montanhas. Lá não precisa mais de desenvolvimento. É mágico! Seria perfeito... – disse, incompleta, pensativa, imaginando n coisas que Max nem imaginava o quê.

De quando em quando, Mary fazia esse tipo de pergunta a Max. Era uma forma de explicar o mundo que os rodeava e ao mesmo tempo lembrá-lo de que existe um mundo além das Cercanias.

Ele interrompeu o silêncio depois da longa pausa, mudando subitamente de assunto.

− Onde está Moz, mamãe?

Ele olhava com aqueles olhos grandes e azul-acinzentados pelo quintal grande e gramado daquela casa, procurando o companheiro raposa. A mulher voltou a si sacudindo a cabeça.

− Não sei, amor. Deve estar brincando com aqueles corvos novamente. Não sei – ela deu um largo sorriso e colocou Max no chão. Levantou da cadeira e abriu a porta. Quando ia entrando parou e virou: – Você não vem? Vou colocar um filme – deu um sorriso malicioso.

Max arregalou os olhos de excitação. O sorriso de orelha à orelha.

− Qual? Qual? – disse, dando pulinhos de alegria.

Planeta Gelado, o seu preferido – respondeu ela. Seu sorriso irônico mais uma vez estampado no belo rosto.

Planeta Gelado era muito, muito antigo. Era o filme predileto de Max até a fita estragar tanto de velhice quanto de tanto ser assistida. Fazia algum tempo que não o assistiam − e Max nem percebeu isso. Na verdade era mais um documentário do que um filme em si, mas não perdia sua essência, já que todos os filmes do mundo se perderam na Grande Guerra dos Dias Fatídicos (ao que se sabe) sobrando apenas dois, que Max e sua mãe tinham com eles: Planeta Gelado e Dançando na Chuva − que Max não gostava muito, pois não entendia direito o que o filme queria passar. Além de ser todo em preto e branco. E tinha medo do protagonista e seu bigode estranho também... Enfim, ele preferia animais. Mas sua mãe adorava, sempre cantando a letra da música do filme com maestria.

Max entrou disparado direto para a sala. Lá um único sofá grande de couro bege com três lugares ficava no meio do cômodo em frente à TV, ou pelo menos o que parecia ser uma TV. O aparelho era... diferente. Uma placa de vidro de 42’ polegadas pairava no ar, imóvel. Sob ela, um disco de metal do tamanho de um CD e da espessura de dois dedos gordos, como uma bolacha de hóquei, descansava em cima de uma pequena estante de madeira. No centro do disco um círculo de luz azul brilhava.

Sua mãe sentou ao seu lado no sofá e disse: “Ligar”, e a placa de vidro brilhou toda branca e pequenos feixes de luz fraca saíram do disco em direção à placa, dançando irregularmente como um holograma, o som feminino robotizado e uniforme soou talvez vindo do disco: “Voz reconhecida. Programa de visualização ligado. O que deseja, Sra. Mary?”. A voz robotizada provocava estáticas na tela flutuante. E Mary respondeu: “Planeta Gelado”. E instantaneamente o filme começou.

O garotinho Max ficou fascinado com aquele aparelho. Não estivera lá há duas horas, provavelmente era o que estava numa caixa no sotão. Sua mãe tinha achado uma caixa velha e empoeirada no sótão e tinha trazido-a para a sala. Max nem se incomodara com o fato mesmo estando muito curioso, era melhor ter cautela, como sua mãe sempre dizia.

Antes, a TV era apenas uma caixa grande de madeira batida com uma antena (inútil, inclusive) torta em cima. Colocavam a fita no VHS e esperavam começar e depois, quando terminavam, pegavam a fita e rebobinavam-na, agora até a fita VHS sumiu.

Era uma espécie de ritual. Todas as quartas-feiras e sábados (alguns sim, alguns não, é claro) eles faziam aquilo. Só que dessa vez Moz não estava presente, talvez brincando com os corvos. Max sentia falta do amigo, que sempre deitava em seu colo e dormia durante o filme.

O filme começou com o narrador dizendo alguma coisa sobre o Polo Norte e sobre os seres vivos que nele habitam. Max sabia as palavras de cor. Mary sorriu vendo o filho fazer o que sempre fazia, mas no final acabou não resistindo à tentação e começou a repetir as palavras do narrador junto com o filho, mesmo que Max de quando em quando se atrapalhava com palavras difíceis. Depois, imagens da vastidão branca, de ursos polares, pinguins, praias congeladas, geleiras desabando, seguiram o filme e Max não piscava.

− Vou buscar a pipoca, tá? – disse Mary, se levantando e indo em direção à cozinha.

− Ahãm – respondeu ele, distraído. Não tirava os olhos do visor. As perninhas cruzadas e a cabeça apoiada nas mãos. Quando um urso polar ergueu-se sobre as duas pernas traseiras pra dar um golpe em outro urso, Max exclamou baixinho: − Uau!

Ela voltou quase imediatamente com as pipocas. O cheirinho bom já inundava o ambiente. A mãe carregava um pote prateado com pipocas cor azul. Não pipocas com corante azul, eram naturalmente azuis. Max amava essas pipocas! Eram docinhas, com leve gosto de morango-das-colinas e amoras-ventanias. E Mary colocava, ou melhor, elas já vinham com açúcar caramelizado por cima direto da cozinha. Como se a própria cozinha adivinhasse o gosto de Max. E, além de tudo, eles só comiam pipoca azul nas quartas-feiras, pois poderiam fazer mal a Max. Era melhor não arriscar. Certa vez ele quase desmaiou durante o filme por causa de tanto açúcar ingerido (e olha que não era muito). Mary controlava a dose, sempre colocando um punhado na mãozinha dele. Logo depois ela dava um remédio a ele. Um comprimido da cor das pipocas. Max não questionava, sabia que era o melhor pra ele.

Moz apareceu do nada de trás do sofá, mas nenhum dos dois se assustou, afinal, ele sempre fazia aquilo. Max ficou feliz com a chegada, logo dando o espaço da raposa ao seu lado. Moz pulou no sofá e sorriu para os dois.

− Estava com os corvos, Moz? – perguntou Max, fazendo carinho na cabeça da raposa.

− Ah! Sim! Estava sim – respondeu Moz, dando uma olhada significativa a Mary – São bons amigos, os corvos. Hum, Planeta Gelado,legal – mudou de assunto −. Mary, querida amiga, podemos conversar um pouquinho? − Perguntou, virando os olhos para fora e para o cachecol listrado.

− Claro – ela se levantou dando um beijo na bochecha de Max – Não se importa, não é, querido?

Max balançou a cabeça em negativa. Ele realmente não se importava. Confiava neles mais do que a si mesmo. E sempre faziam isso; conversavam na varanda a sós. Algumas vezes ele conseguia ouvir, às vezes não, mas de todo jeito ele não compreendia.

− Não vai demorar?

Ela sorriu.

− Claro que não, amor – respondeu, erguendo-se de novo do sofá e indo com Moz para a varanda. Pelo que parecia a noite de quarta-feira de filmes foi por água abaixo, pois sempre que Moz interrompia alguma atividade dos dois pra conversar sozinhos, Max sempre pagava o pato. Ou teria que ir dormir ou inventar algo pra fazer sozinho. Às vezes a conversa demorava mais do que ele esperava.

Max olhou de esguela para os dois lá fora pela janela, sem muita importância. Viu Moz tirando algo de dentro do cachecol com a patinha negra e entregando a Mary. Max não viu o que era no crepúsculo se densificando cada vez mais, só uma coisinha pequena e brilhante. Ela disse algo. Ele rebateu. Agora pareciam discutir. Quando ela ia dizer algo, parou e desistiu, disse mais uma coisa enquanto entrava. Moz tentou impedi-la, mas ela já ia entrando. Quando abriu a porta Max pôde ouvir a mãe sussurrando: “Ele ainda não precisa disso. Só tem quatro anos... Conversemos sobre isso depois.” e algo mais que Max não compreendeu.

Eles iam sentando quando Max perguntou:

− Tudo bem, mamãe?

− Tudo sim, querido. Como está o filme? – Moz sentou ao lado de Max.

O menininho bocejou.

− Muito legal – respondeu ele, os olhos começando a se cansar.

A mãe percebendo, disse:

− Hora de dormir.

− Mas eu nem comi a pipoca! – protestou. Um novo bocejo estava a caminho, mas tentou impedir. Fracassou – E o filme nem acabou! E está tão cedo, e...

− Vamos – interrompeu ela, sorrindo. Pegou Max no colo.

Ele resmungou baixinho, mas já começou a cochilar no ombro da mãe. Moz seguiu os dois pela escada larga de mármore bege em direção ao quarto. Quando chegaram à porta pararam diante do desenho do cervo entalhado nela. Moz deu outro olhar significativo à Mary. Ela ignorou e entrou, colocando Max na cama, fechando a cortina e cobrindo-o com o edredom, era verão, mas fazia um frio considerável na casa. Moz deitou na cama e já ia dormindo quando disse, ainda com os olhos fechados e a cabeça entre as patas:

− Depois pode ser tarde de mais.

Mary parou diante da porta, virou a cabeça e olhou para o quadro do cervo entre as três árvores, mas logo continuou o caminho sem responder.

...

O dia amanheceu claro, já esquentando. O verão não castigava tanto, talvez pelas Cercanias que envolviam a casa e arredores, eles não sabiam ao certo. As cigarras cantavam sua música impossível. Nenhum sinal de ventos, apenas as brisas dançavam nas folhas dos salgueiros e pinheiros da densa floresta.

Max acordou numa grande espreguiçada.

− Bom dia, Moz.

Moz o observava antes de ele acordar. A cabeça apoiada na perna do menino.

− Dia ótimo, meu caro amigo.

Tomaram o café da manhã que já estava posto na mesa sem Mary. O que era estranho. Geralmente, ela nunca os deixava só à mesa. Max perguntou a Moz o porquê disso e a raposa só respondeu que não precisava se preocupar.

Daí em diante o dia correu como um guepardo-do-vale. Max e Moz brincavam e corriam pelas árvores, gritavam gritos de batalha, riam até a barriga doer, Moz pulava em cima de Max e o derrubava na grama macia (que era misteriosamente modificada pra ficar dez vezes mais macia). Almoçavam rapidamente (sem Mary novamente) pra logo voltarem a brincar. Moz se transformava em raposa cinzenta e escalava uma árvore pra pular em cima de Max como uma branca raposa do ártico pra logo em seguida se transformar num feneco pequenino com orelhas grandes e pelos cor de areia e correr pra Max tentar pegá-lo. Como sempre, Max não conseguia alcança-lo e Moz sumia dentre as árvores e reaparecia na sua frente como a boa e velha raposa-vermelha de sempre. Claro, Moz sempre fazia no maior cuidado possível, tentando não machucá-lo e nem assustá-lo. E sempre com Mary por perto pra vigiar.

Mas alguma coisa aconteceu naquele dia que Max nunca esqueceria.

Eles brincavam de esconde. Max procurava o amigo quando viu. Dentre as árvores um brilho fraco azul pintava os troncos em contraste com o sol laranja do entardecer. Curioso, o menino foi verificar. Uma bola de fogo-fátuo dançava numa pequena clareira. Pulsava uma energia azul revigorante que fazia Max feliz, que fazia Max querer tocá-la. Ele se aproximava do fogo-fátuo com a mão erguida, cada vez mais perto da bolinha de fogo azul e não sentia calor algum, pelo menos não o calor comum, mas um calor aconchegante que abraçava a alma. A poucos centímetros de tocá-la um barulho forte veio do outro lado da clareira. Um rugido de urso logo em seguida. Som de lança-chamas depois. Um clarão vermelho-alaranjado ergueu-se no céu de dentro da floresta bem próximo de onde Max estava.

− Max! – gritou Moz. Ia correndo na direção do menino quando reparou no fogo-fátuo dançando ao lado dele. Parou bruscamente, impressionado. O barulho de chamas seguiu-se de destruição. Árvores queimavam ali perto. O urso rugiu novamente e agora parecia correr, pois o chão tremia. Moz percebeu e voltou a correr em direção a Max. Quando chegou a seu lado o fogo-fátuo já havia sumido.

Antes mesmo de Moz ter a chance de levar Max pra longe, Ewller Mo’gul apareceu bruscamente dentre as árvores na clareira. Gigante, o urso erguia-se sobre as patas traseiras e rugia fogo, como um dragão. Seus cotovelos, joelhos e costas flamejantes lembravam-no uma bola de fogo gigante ambulante.

Mo’gul ficou sobre quatro patas e olhou furioso para Moz e Max.

Instintivamente, Moz saltou sobre o garoto, ficando em sua frente para protegê-lo.

Rosnou entre dentes:

− Não ouse se aproximar, Mo’gul – Moz parecia rugir feito um leão. Os olhos cravados nos do urso de fogo. – Já fez seu trabalho nos protegendo, agora volte para sua toca suja. Vá! Suma!

O urso rugiu e deu uma cusparada de fogo no ar em desaprovação, mas voltou de onde veio obedientemente deixando um rastro de fogo no caminho.

Max estava chorando, apavorado. Palavras presas em sua garganta, engasgadas devido ao susto.

− Venha cá, meu filho. Está tudo bem – disse Mary, que Max nem Moz viram de onde viera. Aparentemente estava assistindo a tudo aquilo desde o início. Ela o envolveu num abraço e ele enterrou a cabeça em seu peito soluçando convulsivamente. – Shh! Está tudo bem. Tudo bem. Mamãe está aqui agora. Nada vai acontecer a nós. Mo’gul está aqui para nos proteger, ele não irá fazer nada de ruim a você, querido. Shh!

Max ia se acalmando aos poucos no peito da mãe. Seus olhos tão fechados quanto ele podia.

...

− Como você explica aquilo, Moz?! – berrava Mary. − Como?!

− Eu bem gostaria, Mary, minha ama, mas não posso. O que acabou de acontecer não tem explicação ainda. Ainda. Ewller Mo’gul foi trazido para dentro das Cercanias para reforçar a nossa proteção, não para nos atacar. Isso é antinatural. – Deu uma pausa para respirar e prosseguiu: − Eu pressenti algo. Eu e Max estávamos brincando de esconde quando senti.

Os dois ainda estavam na clareira. Max tinha sido levado para casa dormindo. O pobre garotinho ficara exausto e dormira enquanto chorava. Mary tinha pedido a Moz que ficasse e esperasse para assim conversarem. E foi o que ele fez.

O fogo-fátuo desaparecera junto com Mo’gul, que não dava sinal de vida. Provavelmente enfurnado em sua caverna.

− O que você sentiu? – perguntou Mary, dissipando aos poucos sua fúria. Moz não respondeu, mas ela insistiu: − O que você sentiu?

Moz, não vendo alternativa, mas percebendo que era a coisa certa, respondeu:

− Não sei ao certo, querida Mary. Parecia se tratar de um ser voador. Era negro e exalava podridão.

− Um... – hesitou. − Um ceifeiro?

− Talvez. Pouco provável. Isso pareceu confundir Mo’gul. Como se a criatura tivesse minipulado a mente do urso.

− Porque diz isso? – perguntou Mary, trocando a fúria pela inquietação.

− Pois, logo quando pressenti a presença podre da criatura, Mo’gul apareceu quase que por imediato lançando chamas em direção a ela, mas logo parou e correu em direção a Max, que estava admirado com outro ser em sua frente. Um ser brilhante e azul que exalava calma e paz.

− Era sobre isso que eu queria que você dissesse. Eu estava vigiando Max enquanto brincavam, caso acontecesse alguma coisa, quando vi. Era uma bola de fogo azul dançando na frente dele. Próximo o bastante para queimá-lo. Fiquei desesperada, mais ainda quando vi que ele queria tocá-la. Tentei sair de trás da árvore em que estava escondida, mas por algum motivo não consegui. Era como se meu corpo virasse pedra. Segundos depois Mo’gul apareceu e em seguida você. Vi a bola de fogo desaparecer no ar. Até parecia que estava assustada com o urso gigante. Depois você expulsou-o e, enfim, consegui me mexer novamente.

Eles deram uma pausa, como se pensassem no assunto que juntaram agora, analisando a situação. Depois de um momento Mary cortou o silêncio:

− Max não pode ficar levando sustos, Moz, você sabe disso. Até aquele momento ele desconhecia a existência de Ewller Mo’gul e não sei como explicarei isso tudo a ele... Por outro motivo que desconheço você é o único que ele não leva sustos e é por isso que confio você. Ele quase teve um ataque. Se eu não estivesse aqui ele provavelmente mo... – Não conseguiu terminar a frase. – Moz, não sou capaz de cuidar de Max o tempo inteiro, você tem que me ajudar nisso. Ele é frágil, muito frágil.

Moz endireitou-se e olhou ferozmente para Mary, mas manteve a calma na voz:

− É por isso que tem que dar o anel a ele, minha amada. É o único modo de protegê-lo de si mesmo.

− O único modo de protegê-lo é estando ao meu lado dentro das Cercanias – cuspiu.

Desta vez Moz não aguentou, explodiu.

− Ah, é?! Acredita mesmo nisso? Onde você estava quando ele mais precisou? Presa atrás de uma árvore. Acha que as Cercanias são o suficiente? Diga isso a Mo’gul, aquele inútil. Uma hora as Cercanias se dissiparão e Ewller Mo’gul ficará velho e morrerá (se não nos matar antes). Assim como você também morrerá. Mas eu vou ficar. Eu serei o único ao seu lado quando ele mais precisar...

− Como ousa? Eu sou a mãe dele, enquanto você é só um bichinho de estimação.

Moz perdeu a paciência. Pulou no ar numa cambalhota e se transformou num lobo-guará.

A transformação de lobo-guará é rara em Moz. Dificilmente faz isso, principalmente por ser muito difícil, mais ainda do que em lobo ou lycaonte. Moz limita-se apenas em transformações das espécies Vulpes, das raposas, e quando realmente necessário, em lycaonte, o grande lobo-monstro. Mas o lobo-guará não pertencia nem a classificação Vulpes, a das raposas, e nem a Canis, a dos lobos, mas sim uma distinta a que ele mesmo e só ele é classificado, a Chrysocyon.

Ficara muito maior, o dobro ou mais, com grandes pernas e um corpo esguio. A pelagem ficou praticamente a mesma (vermelho-dourada), assim como as características anteriores. Lembrava um coiote, ou um lobo, ou um cachorro, ou uma grande raposa.

Rosnava furioso, os olhos fixos nos de Mary.

− Nunca mais diga isso de novo – guinchou ele. Sua voz estava áspera e cortante.

Mary ficara imóvel, sem esboçar expressão alguma, nem sinal de arrependimento ou de sequer de um pedido de desculpas.

Falou:

− Vai me matar? – sua voz soava calma e desafiadora – Está esperando o quê? Sabe que não pode. Precisa de mim tanto quanto precisa do garoto, tanto quanto eu preciso dele e dele de você. Estamos interligados de qualquer forma.

O olhar furioso de Moz foi se esvaindo.

− Não pedirei desculpas – continuou ela −, nem vou ficar com raiva de você. Nada aconteceu aqui e agora. Vamos tentar resolver o que aconteceu como uma família que sempre fomos – depois de uma pausa, continuou: − Vamos entrar, está ficando tarde. Continuemos depois.

Moz suspirou, conformado, e voltou à forma de raposa.

− Como quiser, minha ama.

...

O dia seguinte foi mais calmo.

As horas se passaram devagar. Mary lia um livro para Max no sofá e Moz “dormia” com a cabeça apoiada nas pernas do menininho. Nenhum deles tocara no assunto da tarde anterior. Ficaram calados o dia inteiro, principalmente Max. Comentários como: “Vamos jantar?”, “Vamos dormir?”, “Hoje não tem filme”, “Nada de pipoca azul nem brincar lá fora”, “Com licença”, e outros comentários chatos eram as únicas palavras trocadas que quebravam o silêncio incomodo.

Mary fez suas coisas de casa enquanto Max e Moz conversavam baixinho no sofá. Mary não ouvia um risinho sequer do filho. Moz era quem puxava assunto com perguntas animadoras para o amigo.

Em um dado momento, quando Mary se afastou para fazer algo, Moz fez uma pergunta um pouco fora do comum em comparação das que haviam soltado o dia inteiro:

− Está triste pelo que aconteceu ontem, querido Max?

Max, tristonho, estava de pernas cruzadas brincando com um boneco de madeira malfeito. Respondeu sem erguer o olhar com um “Ahãm” baixinho.

− Por que? – perguntou Moz.

− Porque o urso mal queria me matar. E ele assustou meu amiginho.

− E quem era seu amiguinho?

− O foguinho azul. Ele era bom. Dizia coisas bonitas.

− O que dizia?

− Que eu era um menino especial e que um dia faria algo grandioso. Disse que um cervo me vigiava, e que isso era bom.

− Cervo... – Moz sussurrou pra si mesmo.

Moz ia dizendo outra pergunta, mas interrompeu-se quando Mary chegou até eles.

− Vamos, querido. O banho já está pronto.

Max foi correndo pelas escadas. Mary olhou significativamente para Moz. Ele devolveu o olhar.

...

Moz estava inquieto.

Não conseguia dormir. Algo estava muito estranho, mas não sabia o quê. Sentia uma presença, uma presença maligna naquele quarto.

Já era tarde da noite e o céu estava estrelado. Anteontem Ewller Mo’gul tentara atacar Max misteriosamente e um fogo-fátuo se comunicara com ele dizendo coisas que não conseguia compreender. Talvez a sensação ruim se deva conta por causa disso, mas Moz nunca errava, quando sentia algo ruim, algo ruim acontecia. Como quando naquela tarde, antes de Mo’gul tentar atacar Max, Moz tinha pressentido e saiu correndo em disparada pra ajudar o amigo.

Outras coisas inquietavam Moz. Mary teimava em não dar o maldito anel mágico a Max. Era o único modo de ajudar o garoto. Ficara várias noites em busca desse anel, escondido para que Max não percebesse sua ausência. Acabou encontrando o anel nas Montanhas da Plenitude, o último lugar que Moz acharia que estivesse. Mas não foi fácil persuadir o deus de pedra pacífico que lá guarnecia seu castelo onde se encontrava o anel, que por sua vez ficava nas masmorras guardadas por um monstro de madeira que cuspia fogo. Moz tivera de lutar e quase matar o monstro para enfim conseguir passar pelas masmorras e encontrar o anel na mais escura das celas.

O anel fora forjado pelo antigo rei daquele castelo antes de ser retomado pelo antigo dono, o deus de pedra. O anel fora forjado com o intuito de resguardar os monstros malignos no âmago do ser do individuo que o possuía, mas não saiu como nos planos do rei (que não sabia usar muito bem sua inteligência). O anel capturava o sentimento mais maligno da pessoa e aprisionava em si enquanto o usasse. Depois da expulsão do rei do castelo, o deus não vira utilidade para o objeto e jogara-o nas masmorras, mas sabia que era um objeto de grande poder, por isso colocara o monstro de madeira para guardar os portões das masmorras.

Esse anel ajudaria Max, e Mary sabia disso, mas Moz não compreendia o porquê dela não aceitar de o menino usá-lo. Era teimosa como uma mula!

A sensação ruim tomou conta de Moz e o mesmo resolveu averiguar o quarto.

Olhou por todos os cantos, mas quando chegou debaixo da cama viu. Um ser horrível agarrava-se a cama como uma aranha. Era enorme, totalmente negro e extremamente magro. Sombras emanavam de seu corpo. Girou a cabeça para olhar para Moz. Os olhos brilhavam num vermelho intenso.

Moz rosnou e ia se transformando quando o ser desapareceu nas sombras. Mas não por muito tempo. Num instante estava atrás de Moz e o agarrou com mãos com garras enormes. Despareceu novamente levando Moz consigo.

A raposa não tivera tempo nem de se transformar e já se encontrava perdido no meio da floresta e sem sinal daquele monstro negro.

...

O ser feito de sombras estava novamente no quarto de Max, que dormia tranquilamente.

Encarava Max com uma expressão ilegível, tão próximo que poderia abocanhar-lhe a cabeça ali mesmo – bem seria capaz. Abriu a boca até então escondida em sombras. Era enorme, cheia de dentes grandes e pontiagudos. Mas em vez de abocanhar a cabeça, num movimento muito rápido, cortou o bracinho de Max que estava pra fora do cobertor. Cortou com uma das garras da mão.

Max acordou num sobressalto, gritando. Sangue esguichava do corte profundo em seu braço. Demorou pra entender o que estava acontecendo. E quando percebeu o corte, o sangue e o ser horrível feito de sombras e olhos que brilhavam vermelho na sua frente, começou a chorar e gritar desesperadamente clamando pela mãe ou por Moz.

Dois segundos depois a maçaneta da porta com desenho de um veado começou a tremer bruscamente. Alguém tentava inutilmente abrir a porta.

− Max? – gritou Mary – Max!

− Mãe! Socorro, mãe!

Max chorava loucamente. Sua mãosinha tremia tentando estancar o sangue, mas estava com muito medo pra tentar tocar o ferimento. Uma dor aguda e angustiante tomava conta do menino, que não sabia o que fazer.

A porta tremia. Chacoalhava como num terremoto. Mary gritava sem parar. Max começou a sentir uma sensação estranha, diferente daquela dor horrível. Algo se contorcia dentro de si, querendo sair de qualquer forma. Algo estranho iria acontecer.

O monstro saltou e quando ia dar outro golpe foi surpreendido com outro. Não viera de Moz e nem de Mary. Viera de Max.

O sangue que jorrava de seu braço se contorceu, revirou-se, condensou-se, cresceu, e num golpe de chicote mandou o ser de sombras para longe, quebrando boa parte do guarda-roupa com a queda brusca. O golpe do sangue cortara ao meio o corpo do ser de sombras num buraco enorme tão profundo que o outro lado era visível. Mas não durara muito, logo o grande corte começou rapidamente a se fechar.

O sangue movia-se como se estivesse vivo. Fios de sangue moviam-se em câmera lenta no ar.

Max já não chorava mais. Na verdade não tinha expressão nenhuma no rosto. Seus olhos mudaram. A conjuntiva que cobre a esclerótica ficara de branca pra totalmente negra, a íris contraiu-se e a córnea tornara-se vermelha, como a do ser de sombras.

Max levantou-se e ficou de pé em cima da cama olhando sem expressão para o homem de sombras caído nos destroços do guarda-roupa. O sangue, impossivelmente, espirrava do ferimento como cachoeira vermelha.

− Max?! O que ouve, meu filho?! MAX!!

Mary tentava bruscamente abrir a porta com chutes, socos e esbarrões. Tentou arrombá-la com todas as suas forças, mas não conseguia, a porta encontrava-se enfeitiçada pelo ser. Nada que fizesse iria abri-la.

A não ser mágica...

O sangue dançava em volta de Max como cobras. Um novo chicote se formou ainda maior que o anterior – parecia até brilhar −, mas quando ia atacar o ser sombrio, a porta se abriu com um baque estrondoso. A maçaneta emanava um fraco brilho azulado.

Mary tinha os olhos cheios de lágrimas e suas mãos brilhavam um estranho poder azul. Ficou estupefata ao ver a cena a sua frente. Mas só reparou no ser de sombras caído no chão depois, ai sua expressão mudou de susto e descrença para intensa fúria.

Touruth! – conjurou ela, impensante, por puro instinto. Uma intensa bola de fogo que parecia ser composta de faíscas e purpurina soltou-se de suas mãos. A bola de fogo explodiu no ser e o desintegrou instantaneamente, lançando fagulhas e cinzas fumegantes por todo o quarto.

A mulher correu apressadamente até Max, que por sua vez, subitamente, chicoteou-a e a arremessou longe. Mary bateu contra a parede e caiu no chão, derrubando quadros e caindo poeira do teto. Por sua sorte, na mesma hora, num movimento muito rápido, tinha conjurado um escudo e não sofrera tanto com a queda. Não sofrera tanto. Aconteceu muito rápido e não tivera tempo de proclamar nenhum feitiço em particular, sendo assim, Mary conjurou um escudo com magia-não-nomeada, que contém menos poder do que as nomeadas.

Ergueu-se com dificuldade, arquejando e tossindo. O golpe acertou em cheio. Pegou o anel de prata do bolso e conjurou:

Riorkh inn

Max – que já formava outro chicote, esse ainda maior parecia brilhar vermelho − voou na direção de Mary num movimento brusco, como se tivesse sido agarrado por uma corda e puxado por alguém muito forte. O sangue de Max dançava e corria pelo quarto cada vez mais e cada vez em maior quantidade em paralelo com o grande chicote que se formava, e isso é ruim, Mary sabia disso. Max parou em sua frente, a expressão ainda imutável. Sua pele pareceu mais pálida, seus cabelos cor de areia estavam em um tom de amarelo morto e cinzento, as veias na área em volta de seus olhos escureceram e sobressaltaram-se levemente, fazendo-o parecer estar com uma máscara. Sua mão direita ergueu-se involuntariamente. As pontas dos dedos ficaram escuras e, assim como nos olhos, as veias de sua mão e pulso escureceram. Mary colocou o anel em seu dedo mindinho. O anel de prata ajustou-se ao dedo de Max imediatamente.

O sangue se contraiu e voltou ao corpo de Max num movimento rápido e surpreendente no exato momento em que o anel encontrou seu dedo. O anel brilhou um símbolo diferente e os olhos de Max voltaram ao normal, em seu azul-cinzento. O garotinho tombou no colo da mãe que o agarrou em seus braços num abraço forte e protetor, murmurando:

− Me desculpe. Me desculpe. Me desculpe... Por favor...

Depois de um longo tempo, que pareceu uma eternidade, Moz chegou arfante. Sujo de terra e folhas, os pelos desgrenhados e a língua pra fora pingava.

− O que... – começou a perguntar, ofegante, mas Mary interveio num tom sério de arrogância:

− Você estava certo.


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Notas finais do capítulo

Max é pior do que você imagina, rs.



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