Guinea P escrita por Gaby Molina


Capítulo 3
Muay Thai, Conspirações e Britânicos Misteriosos




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Jess

A buzina maldita à qual James se referira como Sinal tocou naquela madrugada. Acordou-me tão repentinamente que caí da cama.

— Eles chegaram! Chegaram! Sarah! Damon! Hora de dar o fora! — berrei automaticamente.

E então me lembrei de onde estava.

— Quem são Sarah e Damon? — Kristen semicerrou os olhos, soltando um bocejo.

Ignorei-a.

— Essa porra de buzina não vai parar?!

Eu estava prestes a pegar um grampo de cabelo para arrombar a porta quando percebi que ela estava aberta. Quando saí, observei todos os Elegidos cujos dormitórios eram naquele corredor fazerem uma fila, encostados na parede.

James — vestindo apenas a calça cinza do pijama e os óculos — soltou um bocejo alto, o que fez com que os seguranças fortões que faziam a contagem o ameaçassem com um olhar.

James

— Você não tem camisa, não? — foi o cumprimento matinal de Jess.

— Cadê a sua moral?

— Eu estou usando uma camisa.

— "Eu estou usando uma camisa" — repeti, imitando-a. — A frase é só isso, mesmo. Ponto final.

Jess estava usando apenas uma camisa branca de botões que era pelo menos GG, enquanto eu duvidava que ela usasse algo maior que P.

— Isso não é verdade, acho que dá para ver meu sutiã.

Soltei um riso debochado.

— Grande diferença.

— Ei, eu fui pega de surpresa.

Mas ela simplesmente não estava dando a mínima. A indiferença dela fez com que a coisa toda parecesse extremamente aceitável e, enquanto os seguranças pensavam em mandá-la se trocar, ela preparava uma resposta que provavelmente seria incrível e perigosa.

— Admiro você por isso — ela comentou.

— Pelo o quê?

— Por não estar olhando para mim.

Dei de ombros.

— Já vi garotas mais gostosas com menos roupa.

— Bom para você.

Mas ela não parecia nem um pouco afetada. Eu teria que fazer muito pior se quisesse vê-la perder a cabeça.

Porém, naquele exato momento, eu só queria sobreviver. E isso queria dizer seguir para a sala de testes.

Jess

— Bom dia, srta. James — uma mulher de trinta anos abriu um leve sorriso ao me ver.

— Boa noite, só se for — retruquei.

— Queira sentar-se.

Sentei-me na cadeira em frente a ela.

— Dormiu bem?

— Não.

— Temos remédios para isso.

— Pode ficar.

— Como quiser. Vamos começar com alguns testes simples — ela apontou para a parede, onde havia um daqueles testes de visão cheios de letras de tamanhos diferentes.

— Eu não tenho problemas de visão.

— Queira repetir as letras, por favor.

Fiz isso sem dificuldade. Ela assentiu.

— E sua audição?

— Estou viva e inteira por causa dela. Sério, ela é muito boa.

Por algum motivo, não fui contestada.

— Quanto sabe de luta?

Arregalei os olhos, cética.

— Você está brincando, não está?

* * *

Ela não estava brincando. Acabei em um treino de Muay Thai.

O que eu sabia de luta? Merda nenhuma.

— Temos uma novata — o suposto professor, Richard, ergueu um de meus braços. — Jessica James. Quem se oferece para ser dupla dela?

Fez-se silêncio por um minuto. Alguém bufou no fim da sala.

— Que seja — James caminhou até mim e me puxou pelo pulso até o tatame. — Você trocou de roupa.

Depois do encontro com a mulher, tive algum tempo livre, que usei para comer, dormir e vestir uma das roupas que eu havia trazido: blusa, shorts jeans e tênis Converse de cano médio.

— Não precisa soar tão decepcionado — provoquei. Ele revirou os olhos e pegou uma garrafa d'água. — James — chamei enquanto ele tomava metade da garrafa de uma vez.

— Que é?

— Por que vamos aprender Muay Thai?

Você vai aprender Muay Thai — ele corrigiu. — Eu sei Muay Thai.

— Está bem, então, fodão.

Ele revirou os olhos e me chutou.

Ou quase. Desviei no último segundo, quase caindo de bunda no chão.

— Reflexos bons — ele aprovou, sorrindo. E então mirou outro golpe.

Eu era uma garota. Eu provavelmente era mais nova. Eu não sabia porra nenhuma de luta. Eu era novata. Eu era legal. Eu não tinha feito nada para James. Ele não ligava.

E eu também não. Em um de seus chutes maravilhosos, eu segurei o pé dele no ar com uma rapidez que eu nem sabia que possuía. E então soltei-o no ar, fazendo James voar um pouco. Mas o tatame era fofinho, então duvidei que tivesse feito algum estrago.

— Bom — ele elogiou, tirando o cabelo escuro do rosto. — Agora vamos à técnica.

— E o que estávamos fazendo até agora era...?

— Eu tentando descobrir se valia a pena tentar te ensinar alguma coisa. Vou ter que começar do básico do básico — ele suspirou. — No Muay Thai, usa-se os punhos, os cotovelos, os joelhos, as canelas e os pés. É um esporte de contato total.

— Nem percebi.

— Você não aprende muito quando sua boca está se movendo — ele me encarou. Fiquei quieta. — Obrigado. Todo golpe de Muay Thai tem o intuito de acabar com a luta. Vamos começar com Dteh.

— Minha língua, por favor.

E então ele me chutou. Abaixei.

Dteh — ele repetiu.

Dteh — falei, e então chutei-o.

Ou quase, porque ele segurou meu pé.

— Eu deveria fazer você voar agora.

— Mas não vai, porque é legal demais para isso.

— E você?

— Eu não sou legal.

— Exatamente — e então ele soltou meu pé, me fazendo desequilibrar, mas me segurou para que eu não caísse.

— Valeu — consegui dizer.

— Agora, chutes circulares. Para aplicar um chute circular, você tem que fazer um movimento rotatório com o corpo todo. Mas não vai me acertar com o pé, e sim com a canela. E para se defender, quero que use o antebraço.

Coraline

— Eu odeio aquele Quatro Olhos filho da mãe! — Jess invadiu o quarto, bufando, e se jogou na própria cama.

— Quem?

— James — disse ela, como se isso explicasse tudo. — Ele decidiu que é um instrutor bonzão de Muay Thai.

— Ah, é aquele que a Kristen fica falando sobre como é bonito?

Jess bufou.

— Tipo isso.

— Ele é realmente bonito.

— Ele é a versão com óculos do Shrek, e eu não me refiro à aparência. Ele passou uma hora e meia me chutando de todas as maneiras em que conseguiu pensar, e até encontrou um nome tailandês pra isso — ela fez uma pausa. — Algum nome que eu não lembro, mas isso não vem ao caso.

Dteh?

— Isso aí. Mas, como eu dizia, ele é totalmente rude, presunçoso e irritante.

Foi quando bateram na porta. Corri para abrir.

— Jess, o Shrek está aqui — falei.

Jess

— O que você quer? — franzi o cenho para James.

— Eu trouxe uma Coca — ele mostrou a lata de Coca-Cola. — Para você.

— Eu sou bem capaz de conseguir minha própria Coca.

— Tudo bem. Mas imaginei que estivesse com sede, depois do treino puxado.

O olhar dele parecia tão inocente que a única coisa que pude fazer foi lançar-lhe um olhar frio e pegar a Coca rapidamente.

— Sente-se — ordenei, calculista.

Ele ergueu uma sobrancelha.

— Estou bem em pé.

— Eu estava mesmo falando com Cora sobre como você é um mimadinho presunçoso — resmunguei.

— Cora — Coraline repetiu. — Gostei. Ninguém nunca me chamou assim.

Sorri.

— Eu gosto de como soa.

— E então, Pocahontas? Vai me dizer o que está acontecendo ou não? — James provocou, como que para me lembrar de que ele ainda estava ali.

— Sente-se na porra da cama.

Ele se sentou. Sentei-me ao lado dele.

— Por que aprendemos Muay Thai? — repeti a pergunta que ele havia desviado no treino.

— É comprovado que ajuda na concentração e nos reflexos.

James

Jess ergueu uma sobrancelha para mim.

— Eu não pedi a versão do Google.

Fitei-a.

— Quer a versão conspiratória dos Elegidos?

— É a versão em que você acredita?

— Por que o que eu acredito importa?

Ela bufou.

— Você enrola demais.

— Certo. É o seguinte...

— Posso ouvir também? — Coraline nos fitou, hesitante.

Jess assentiu e deu dois tapinhas num espaço do colchão ao lado dela. Coraline sentou-se e as duas me fitavam atentamente.

— Sabemos que os EUA são a maior potência mundial, certo? E toda a coisa patriota nos rendeu muitos inimigos. Tristan quer acabar com qualquer ameaça à segurança da população americana.

— Isso soa protetor. Mas extremista — comentou Jess.

— Exatamente. E como vão acabar com uma ameaça? Com um exército. E quem é o exército?

Um surto de entendimento transpareceu em seus olhos.

— Nós.

— Isso é o que alguns dos caras mais velhos aqui dizem. Mas eu tenho outra teoria: — fitei-a. — Quem é o maior inimigo dos EUA?

— O Oriente Médio.

— O que tem de financeiramente rentável no Oriente Médio?

— Petróleo?

— Sim, podemos usar o petróleo como um exemplo. Então... Os Estados Unidos não querem guerrear. Querem ameaçar. E nós somos a ameaça. Um exército tão melhorado que é quase não-humano. Fariam, então, um trato: nos deem uma fonte de petróleo no Oriente Médio e nós não vamos matar todo mundo com nosso exército X-Men.

— Soa justo — ela zombou.

— E se não servirmos como arma de guerra, eles podem comercializar os soros e tecnologias. Mas não acho que vão. Tem muita coisa aqui, Jessica. Você não faz ideia. Tecnologia que o governo mantia em segredo por anos. Coisas que imaginávamos que demoraria mais um século para serem desenvolvidas, mas que na verdade já existem. Por enquanto, são melhorias de reflexos e sentidos. Mas quem sabe o que vem depois?

Ela mordeu o lábio.

— Não gosto disso.

Estreitei os olhos.

— Eles não estão pedindo a sua opinião.

Kristen

Era um pouco covarde ouvir a conversa toda do banheiro, mas não pude me conter ao ouvir o nome de meu pai. Se pelo menos 20% do que James estava dizendo fosse verdade... Tudo aquilo poderia tomar proporções que eu jamais imaginaria.

E ainda dizem que você não pode ser bonito e inteligente.

Jess

À tarde, fui encaminhada ao terceiro andar, onde injetaram alguma coisa que me faria enxergar melhor no escuro.

— Demora no máximo dois dias para agir — disse a... enfermeira? Eu esperava que sim. — Um teste será feito à noite com os outros Guinea do Setor Três daqui a dois dias.

— Guinea?

Ela me ignorou.

— Está dispensada, srta. James.

* * *

O dia do teste chegou rapidamente. Como via muito pouco a luz do dia, era difícil saber quanto tempo se passara. Mas me tiraram da cama à noite.

— Dessa vez, eu vou me trocar! — cerrei os dentes, impassível.

Vesti uma blusa de manga curta e jeans, além de coturnos pretos. Penteei meus cabelos escuros e fiquei esperando Kristen acabar de passar batom.

Eu, ela e Cora nos dirigimos ao Térreo, onde três seguranças fortões nos encaminharam até uma espécie de "quintal" do prédio, que na verdade era basicamente um campo gramado enorme.

E escuro.

— Ei — ouvi uma voz atrás de mim.

Mesmo que não conseguisse vê-lo, sabia que era James. Primeiro porque era a única pessoa que falava comigo, com exceção de minhas colegas de quarto, e segundo porque eu reconheci o cheiro de amaciante e perfume Calvin Klein.

— Fique aqui — pedi. — Eu não enxergo nada.

— Enxerga, sim — insistiu ele. — Onde estou?

— Do meu lado direito.

— E como sabe disso?

— Pela direção da sua voz, idiota.

— Exatamente. Existem outras formas de se orientar no escuro. Só não deixe que eles descubram que o soro não funcionou em você, a não ser que tenha certeza de que não funcionou em ninguém.

Assenti.

— Consegue me ver?

— Sim.

— Legal, me ferrei. Como o teste funciona, exatamente?

— Não sei.

Boa noite, Setor Três — ouvi uma voz masculina jovem com sotaque britânico carregado. Sabia que ela vinha de algum lugar em frente a mim.

James soltou um palavrão.

— O que foi? — perguntei.

Ele me ignorou.

— Estarei realizando o teste de vocês. O primeiro a apresentar-se é o número 1124.

Fez-se silêncio.

— James. Que número é esse? — sussurrei.

— Cada um de nós tem um número de registro. Está na pulseira em seu pulso. O Rastreador.

— Eu não enxergo o número na pulseira.

— Sempre chamam os novatos primeiros.

Ele pareceu sentir meu pânico, porque acrescentou:

— Relaxe e raciocine.

Uma vaga lembrança invadiu minha mente. O Grandão Número Um falara meu número quando eu estava no carro. Logo que ele disse, pensei...

Sarah e Damon. 11 e 24. 1124.

— Sou eu — anunciei bem alto e caminhei cegamente até uma lanterna que se acendera.

— Você demorou — disse o Garoto Britânico à minha direita.

Pensei. Eu não sentia sua respiração, então ele provavelmente era mais alto do que eu. Olhei, então, para cima, à direita.

— Estou aqui — retruquei.

— Consegue me ver?

— Como acha que cheguei até você?

Com a pouca luz da lanterna, vi uma mão alva apontando para ela.

— Só me diga o que tenho de fazer — disparei.

Uma risada baixa ecoou.

— Relaxe. Já assistiu a talk shows?

— Odeio talk shows.

— Essa não foi a pergunta.

Suspirei.

— Sim, já assisti.

— Ótimo, siga-me.

Dei graças a Deus novamente por ter ouvidos tão competentes e segui o garoto pelo som de seus sapatos no chão de cimento. Uma trilha. Os passos pararam. Parei também.

— À sua frente há um tabuleiro 5X3, como você pode ver. Ele é eletrônico. Há apenas um quadrado correto para pisar em cada linha.

Tentei visualizar. Cinco linhas. Três quadrados por linha.

—... Se pisar no quadrado errado, aquele visor ali à direita vai mostrar um X, e você deve voltar tudo.

Eu não via visor nenhum, mas assenti.

— Muito bem. Pode começar.

Pisei no quadrado em frente a mim.

— Tente novamente — debochou o garoto. Voltei e pisei no quadrado à esquerda.

Silêncio. Pisei em frente.

— Pêêêê — soou ele, como uma campainha quando alguém falava a resposta errada em um programa.

Voltei, cuidadosamente, dois quadrados para trás. Avancei um. Andei na diagonal direita um quadrado.

— Sua sorte realmente não está cooperando.

* * *

Depois de um tempo que pareceu infinito, eu consegui passar. O Garoto Britânico de certo não fazia ideia do quanto ajudara com suas provocações.

A lanterna caminhou até mim e vislumbrei um sorriso muito branco.

— Acabou? — indaguei.

— Sim. Vamos voltar.

Passos. Segui os passos.

— Cuidado com o buraco — aconselhou ele.

Desviei, mas ele me puxou para trás, grudando minhas costas em seu peito.

— Você é lerda para seguir ordens — comentou ele.

— Geralmente apenas não sigo.

Ele riu. Uma risada rouca e baixa, mas que de alguma forma me arrepiou (e não foi de um jeito ruim). Senti sua respiração perto de meu pescoço.

E então ele me soltou.

Por algum motivo, não consegui raciocinar, então fiz o que sempre fazia no escuro (que eu nunca gostara) quando estava perto de alguém: segurei a mão dele.

Ele não disse nada, apenas me puxou de volta para onde o resto do Setor estava.

— Cerca de quinze passos para frente, e então direita, aí mais alguns passos e você vai ver as luzes do prédio — sussurrou ele em meu ouvido.

Ele sabia.


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