Guinea P escrita por Gaby Molina


Capítulo 4
Capítulo 4 - Jess atinge o bom humor




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Coraline

Quando voltamos do teste, Jess passou a noite toda calada olhando para o teto, o que só podia significar que havia algo muito errado naquilo tudo.

— Jess — chamei. — Tudo bem?

— Ele está mexendo com a minha cabeça, e eu nem sei quem ele é.

Ele? — a palavra interessou Kristen.

— Vocês passaram no teste? — perguntei.

— Tecnicamente. — respondeu Jess, e começou a falar mais consigo mesma do que conosco. — Esse é o problema.

— Cara, você é pirada — Kristen revirou os olhos.

Jess

Coraline percebeu que eu tinha uma resposta malcriada na ponta da língua, porque logo se apressou em mudar de assunto. Não me importei. Eu só conseguia pensar no tal garoto. Se ele sabia o tempo todo que eu não conseguia ver nada, estava me ajudando? Ou apenas esperando que eu desistisse?

Talvez por isso estivesse fazendo piadas sempre que eu pisava no quadrado errado. Se não fosse isso, por que ele me dissera como chegar ao prédio? Talvez não soubesse que eu não conseguia ver, e eu entreguei tudo quando não contestei as direções que ele deu. Mas se não queria me ajudar, por que me dera as direções certas?

E por que diabos ele iria querer me ajudar?

* * *

Eu não conseguia dormir. Todas aquelas perguntas me atormentaram durante horas, então apenas arrombei a porta com um grampo de cabelo antes que pirasse de vez. Fechei-a cuidadosamente e arrombei a porta de James.

James estava esparramado em uma das camas espaçosas, completamente apagado. Um pequeno filete de baba escapava de sua boca, e eu passei um tempo apenas admirando o quão angelical ele parecia quando estava calado. E então apenas gritei:

— James!

Ele soltou um berro e caiu da cama. Muito másculo, James. Muito másculo.

— Jess...? — ele se levantou, piscando diversas vezes. — Isso é um pesadelo ou o quê?

— Não, eu arrombei sua porta com um grampo. Precisamos conversar.

— James, tem alguém aqui? — Michael perguntou, sonolento.

— Não, não tem ninguém — respondi. — Volte a dormir.

James me encarou do tipo Sério, mesmo?

— Jess? — Michael indagou, franzindo o cenho.

— Isso é só um dos seus sonhos tarados. Volte a dormir.

— Não é um sonho tarado. Você está vestida.

— Mais ou menos — James percorreu os olhos pela camisa enorme que eu estava vestindo. — Afinal, qual é a da camisa?

Abracei a mim mesma, protetora.

— Era do meu pai. Enfim. Tem algumas coisas que eu quero entender.

— Fique à vontade — ele apontou para um espaço ao seu lado na cama.

Estreitei os olhos, desconfiada.

— Se tentar alguma coisa...

— Certo, como se isso fosse acontecer — ele revirou os olhos. — Vai me deixar dormir ou vai dizer logo o que está acontecendo?

Suspirei e sentei-me ao seu lado.

— É sobre o teste. Você acha que tem como o cara que estava aplicando o teste saber que eu não conseguia enxergar?

— Sim.

— E ele não me diria nada?

— Não.

— Por quê?

— Eu tenho essa teoria — ele me fitou, sério. Acho que eu nunca o havia visto sem os óculos. O visual Dois Olhos ficava bem nele. — De que eles não estavam testando a sua visão.

— E como você sabe?

Ele sorriu.

— Porque eu também não estava enxergando porra nenhuma.

Dei um tapa nele.

—... Ai! Louca!

— Mentiu para mim!

— É claro que menti para você! Me agradeça por isso! Como você se guiou, já que não estava enxergando?

— Audição. O cara que estava aplicando o teste parecia estar sempre me dando dicas audíveis.

— Exatamente. Por que acha que eles testariam sua audição?

— Porque... Naquela reunião com uma mulher, eu disse que minha audição era muito boa.

— Então. Não é estranho? Provavelmente injetaram vitamina C em você ou algo do tipo. Por que eles fingiriam estar testando um soro para testar a sua audição?

— Eu... não sei.

— É aí que entra a minha teoria — ele me fitou por um minuto. — Eles não estão testando os produtos. Estão testando a gente.

* * *

Eu odiava admitir que James era brilhante às vezes, mas ele era.

Voltei para meu quarto antes que o alarme da madrugada soasse, mas ele não soou. Acordei (apesar de não ter exatamente dormido), então, para o café-da-manhã. Vesti as primeiras roupas que encontrei e corri com Kristen para o refeitório.

Na mesa onde geralmente comíamos estavam James, Michael e uma garota de cabelos escuros lisos com franja reta que eu não conhecia. Sentamo-nos com eles.

— E aí? — James me fitou, ainda com aquela droga de imitação. — Oi, Kriss.

— Oi! — ela sorriu, visivelmente feliz por ter sido chamada de Kriss.

— E aí? — repliquei, roubando o pão dele e passando mais manteiga (dele) com a faca (dele também).

— Bem confortável para uma novata — comentou a garota que eu não conhecia.

— É um dom — sorri. — E você é...?

— Valerie Rivers — apresentou-se ela.

— Rivers?

— Irmã desse babaca aqui — ela apontou para James.

— Seus pais devem realmente odiar Tristan Beaurenberg — comentei com a boca meio cheia.

Pensei ter visto Kristen se mexer desconfortavelmente no banco, mas provavelmente era só impressão.

—... Por que não acordaram a gente de madrugada hoje?

— Nunca acordam depois dos testes — respondeu Valerie. — Dizem que é para demonstrar a benevolência deles, mas acho que eles precisam de mais tempo para analisar os resultados. Temos reuniões individuais depois do café.

Foi quando percebi um garoto sentado no canto do refeitório com um homem mais velho. O garoto parecia ser da minha idade — talvez uns dois anos a mais —, com cabelos louros curtos e olhos verdes brilhantes que estavam completamente cravados em mim, e não se desviaram quando encontraram os meus. Eu queria perguntar a James ou Valerie quem era aquele cara, mas não queria parecer interessada.

O Louro sorriu como se tivéssemos uma piada interna só nossa. Tinha cada esquisito naquele lugar.

Foi quando o Louro levantou-se e foi para um corredor cheio de salas nas quais eu nunca havia entrado. Eu não sabia por que, mas me levantei também.

— Já volto — falei, e então o segui.

O tal garoto estava encostado na parede, mexendo no celular como se estivesse esperando por mim. Seus olhos sorriram ao me ver.

— Oi — ele abriu um sorriso de canto. — Consegue ver melhor agora?

Sotaque britânico. Um sotaque que reconheci instantaneamente.

— Você.

— Você — ele repetiu, sorrindo, e se desencostou da parede. — Foi muito esperta ontem à noite.

— Aparentemente, não esperta o suficiente.

Ele riu.

— Acontece que eu também sou muito esperto.

— É mesmo? Afinal, onde diabos conseguiu um celular?

— Como se você não soubesse que dá para contrabandear coisa muito pior aqui embaixo.

— Tem sinal?

Ele pareceu surpreso com a pergunta.

— Aqui tem. Afinal, eu não quero chamar você de 1124. Posso saber seu nome? — seus olhos verdes me fitaram por um minuto.

— Jessica.

— Jessica — ele repetiu. — É um nome interessante de pronunciar. Eu sou Derek.

— Prazer.

Foi quando o sinal que indicava o fim do café tocou.

— Deveríamos voltar — ele deu um passo à frente, esperando que eu me movesse também.

Encarei-o.

— Ainda não fiz nem metade das perguntas cujas respostas você me deve.

Derek riu.

— Voltaremos a nos falar. Talvez antes do que você imagina.

— Vai me perseguir, ou algo do tipo?

Ele estreitou os olhos.

— Não.

E então desapareceu de vista.

* * *

— Você parece dispersa — notou Valerie, erguendo uma sobrancelha para mim quando voltei à mesa.

Dei de ombros.

— Um pouco nervosa porque vamos ver o resultado dos testes. Falando nisso, quem os apresenta?

— Normalmente o Woopert Jr. — disse ela, com a boca meio cheia. — Ele é filho de um dos maiores sócios dessa coisa. Normalmente chama os Elegidos individualmente. Exceto no caso de James, porque os dois não conseguem trocar duas palavras sem voar no pescoço um do outro. Então os resultados dele vêm por escrito.

A ideia de James numa briga era um pouco estranha para mim, mas então me lembrei de como ele não hesitou em me acertar com seus golpes precisos de Muay Thai, então eu não queria nem imaginar o que ele faria com um cara de quem desgostava.

— Por que tanto desgosto? — indaguei.

— O cara é um babaca — respondeu James, simplesmente.

* * *

— Jessica?

Deus, eu odiava meu nome, mas soava tão bonito quando ele o pronunciava que eu estava quase relevando a ideia. Eu sempre pedia que as pessoas me chamassem de Jess, mas ele seria a única exceção.

— Oi, Derek — escondi um sorriso, evitando olhar para ele. — Escuta, eu tenho que ir para a reunião agora.

— Tudo bem. Podemos nos falar depois? — Eu sentia seu olhar em mim. — No gramado atrás do Alfa em uma hora?

— Não posso sair do subsolo, Derek.

Ele sorriu.

— Claro que pode. Diga que eu a convidei.

Tive de fitá-lo. Estreitei os olhos.

— O que, exatamente, você faz aqui?

— Vou explicar tudo. Você tem que ir agora.

Assenti e me encaminhei à sala de reunião.

* * *

— Srta. James — um homem na casa dos 25 anos encarou-me e fez um sinal para que eu me sentasse.

— Você deve ser o Woopert.

Ele fez que não com a cabeça.

— Woopert não pôde vir. Estou cobrindo o turno dele. Meu nome é Dylan Tender.

Era cômico que o sobrenome de alguém que trabalhava no Alfa significasse "delicado", mas tentei não rir. Muito.

—... Porém, me passaram os resultados. A senhorita alcançou a nota máxima, parabéns.

Arregalei os olhos.

— Sério mesmo?

Ele assentiu.

— Encaminhe-se à sala de testes às 21hrs de hoje, haverá outro teste daqui a dois dias, de um novo soro aprimorado para visão noturna.

— E vocês planejam realmente injetá-lo em mim dessa vez?

Dylan Fofinho estreitou os olhos.

— O que disse?

— Nada! Estou dispensada?

Ele assentiu e eu me retirei, com minha cabeça simplesmente cheia de Derek, Derek, Derek. Eu precisava urgentemente de respostas.

Mas, ei, sem expectativas.

Como eu prevera, havia um segurança na porta do elevador. Um segurança que reconheci.

— Grandão Número Um! — eu abracei meu velho segurança, sem dar a mínima.

Ele pareceu muito surpreso, mas não me afastou no primeiro segundo. É.

— Srta. James! É bom ver que está tudo bem com a senhorita. Tem apreciado as refeições?

Sorri.

— Bastante! Escuta, preciso ir ao Térreo.

— Não posso deixá-la passar.

— Tenho uma reunião com Derek no gramado atrás do Alfa.

Grandão Número Um ergueu uma sobrancelha.

— Isso é novidade. Ele nunca faz reuniões lá em cima. Espero que não esteja encrencada.

Fiz que não com a cabeça.

—... Tudo bem. Suba.

Entrei no elevador e o Grandão observou-me apertar o botão T. Logo eu estava ao ar livre. Era a melhor sensação do universo. Imaginei que ainda teria de esperar uma boa meia hora até que Derek chegasse, mas encontrei-o vagando pelo gramado.

— Ei! — chamei.

Ele abriu um grande sorriso ao me ver.

— Jessica!

Ergui uma sobrancelha.

— O sr. Fofucho me deu o resultado do teste — falei. — Érrr... E com sr. Fofucho, quero dizer Dylan. Sabe, porque o sobrenome dele é...

— Tender — Derek riu um pouco. — Isso é o máximo.

— Enfim. Você me deu nota máxima no teste?

— Você mereceu.

— Derek, eu não estava enxergando nada.

— Mas isso não impediu você de completar o desafio. E esse era o objetivo.

— O objetivo não era testar o soro? Derek sorriu, parecendo satisfeito com o meu raciocínio.

— Às vezes me esqueço de que você é bem esperta.

— Afinal, o que você faz aqui?

— Estou preso aqui — ele deu de ombros. — Como você. Pense nisso como um estágio obrigatório do qual não posso fugir. Apesar de poder ficar aqui no gramado o tempo que eu quiser enquanto não estiver trabalhando, o que, na verdade, não é muito tempo.

— "Trabalhando"?

— Aplicando testes. Preparando café. Extremamente divertido — ele suspirou.

— Pelo menos você pode escapar aqui para cima às vezes.

— É meio solitário — ele torceu o nariz.

— Nenhuma estagiária bonitinha para escapar com você?

Ele riu um pouco. Sua risada era baixa e sincera.

— Não. Nenhuma estagiária bonita.

O jeito que ele disse isso, combinado com o olhar que me lançou, me deixou imaginando se ele era simplesmente charmoso sem perceber ou se estava realmente flertando comigo.

— É permitido que eu fique aqui em cima com você? — perguntei.

— Não — ele deu de ombros. — Mas quem liga?

Sorri. Ele estava definitivamente flertando comigo.

— Tenho aula de Muay Thai daqui a dez minutos.

— Isso nos dá mais 600 segundos, não é?

James

Era um conceito um pouco surreal, mas realmente parecia que Jess estava de bom humor quando entrou na sala para a aula de Muay Thai.

— Ah, olá James! — ela sorriu sem nenhum motivo aparente.

Ergui uma sobrancelha.

— Você está chapada?

Ela revirou os olhos.

— Não. Vamos praticar mais Dteh hoje?

Jess

Eu tinha quase certeza de que tinham injetado o soro que melhorava a visão noturna em mim naquela noite. Um arrepio percorreu meu corpo, juntamente com uma sensação que certamente não era causada por proteínas.

Fui dispensada logo depois. Vesti um moletom e jeans, e então apenas fiquei deitada em minha cama, ainda no projeto de serrar a grade da janela. Acabei cochilando em algum momento.

Eram perto de seis da manhã quando ouvi uma batida na porta. Kristen estava dormindo, mas Coraline me fitou atentamente. Supus que eu deveria atender. Acabei indo.

Quando abri a porta, aquele par de olhos verdes sorriu para mim.

— Quarto certo. Graças a Deus.

Fechei a porta atrás de mim antes que Cora o visse.

— Derek. O que está fazendo aqui?!

— Pensei em um piquenique — ele abriu um leve sorriso.

— Muito cedo?

— Nunca é cedo demais para comer — eu ri levemente e acompanhei-o até o térreo.

— Então, tem algo que eu quero lhe mostrar — ele fez um tom de suspense. — Só para, sabe, você entender onde estava no Teste de Visão. Eu encontrei você aqui — ele caminhou alguns passos. — E então pegamos aquela trilha — ele me puxou pelo pulso pelo caminho de pedra. — Ali estavam os quadrados e o placar, só que eu os retirei no dia seguinte.

Fitei-o por um minuto, com um leve sorriso de divertimento nos lábios.

— Você retirou o buraco onde eu quase caí também?

Derek enrubesceu quando percebeu que havia sido pego.

— Érrr... Meio que... não tinha buraco nenhum.

— Por que mentiu?

— Para ter certeza de que você não estava enxergando.

— Ou...?

— Cuidado, um buraco! — ele me puxou para trás, envolvendo-me como havia feito no teste. — Ou talvez eu tenha mentido para fazer isso. Pareço um sociopata?

Olhei para cima e sorri levemente. — Um oportunista, talvez. O que eu apoio. Se você tem uma oportunidade, deveria agarrá-la. Algumas pessoas não têm tantas oportunidades assim. — tentei não soar muito nostálgica ou melancólica, mas era um pouco complicado.

— Enfim, não foi por nada disso que eu acordei você a essa hora — ele me puxou para longe das árvores.

Derek colocou uma toalha no chão, onde nos sentamos. Ele me estendeu pão, geleia, manteiga, frutas e esse tipo de coisa.

— O que estamos esperando? — ergui uma sobrancelha.

— Lá vai — ele sorriu e apontou para o céu. — Achei que pudesse estar com um pouco de saudade do nascer-do-sol.

Uma camada de preto onde o sol ainda não havia atingido, seguida de uma sequência de tons do amarelo mais claro até o laranja mais vibrante, gradativamente iluminando o lugar onde estávamos. Eu costumava assistir ao nascer-do-sol todos os dias antes de ir para o Alfa, o que me fez ficar muito nostálgica, mesmo que não houvesse muita coisa para sentir nostalgia.

Fechei os olhos e apenas deixei a luz do sol me atingir. Aquela poderia ser uma bela cena de um filme, com um clichê como Here Comes The Sun tocando atrás.

— Aposto que não há um nascer-do-sol assim lá de onde você vem — provoquei.

— De fato.


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