A Bruxa da Cidade das Brumas escrita por Libellule penseuse


Capítulo 9
A Fuga Não Planejada


Notas iniciais do capítulo

Ufa... Quase que o capítulo dessa semana não sai! Estou numa fase de correria daquelas e com acesso a internet limitado à boa vontade de um modem temperamental.

Música recomendada para o capítulo: Fratres For Violin And Piano, por Beats Antique (remix de Arvo Part Remix).



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Eu me revirava em minha cama, meu corpo se recusando a encontrar uma posição de confronto e meu coração acelerado. Minha mente se negando em descansar por mais que eu estivesse exausta.

Encarava o canto do quarto onde as sombras se adensavam e se confluíam e me lembrava de Azrael. Quando a insegurança tomava meu corpo minhas mãos instintivamente buscavam meu pescoço, meus dedos suados envolvendo a prata enfeitiçada.

Minha avó ressonava na cama ao lado, embalada por sonhos pacíficos que não envolviam nenhuma sombra disforme e nenhum anjo da morte caçando por algum entretenimento. Após momentos de hesitação eu subi na cama da minha avó e a abracei.

Fazia anos que não buscava conforto em sua cama.

Eu já estava crescida. Já não era uma criança que gruda na saia da mãe quando se sente insegura ou se esconde por detrás de braços paternos quando tem um pesadelo. Mas ainda assim naquela noite eu me encontrava refugiada em suas cobertas pesadas e puídas.

Eu queria Sirona estivesse comigo. Não por que a presença da bruxa me acalmasse... Muito pelo contrário. Toda vez que eu a encontrava meu coração saltava dentro meu peito. Eu nunca sabia o que falar apesar de ansiar pela sua atenção da mesma maneira que uma pessoa faminta anseia por um pedaço de pão.

Desde quando passei a considerar os pios incessantes daquelas pombas como um sinal de tudo ficaria bem?

Mesmo estando longe de Sirona a presença de minha avó me reconfortava e eu me aninhei junto ao seu corpo magro em busca de um porto seguro.

Mas meu conforto durou pouco.

Um estardalhaço ressoou pela taberna, alto e imponente.

O som de moveis caindo e passos duros se seguiram.

Minha avó acordou assustada e me abraçou, assegurando-se que eu estava protegida junto a ela. Em seguida ela instruiu que eu ficasse na cama e correu para fora do quarto procurando meu pai.

Algo estava errado.

Sem pensar eu a segui.

Meu pai já estava de pé. Ele subiu correndo pela escadaria ainda usando as roupas de dormir enquanto gritava para voltarmos para o quarto. Vovó bufou irritada reclamando que ela já lhe tratara de situações piores quando ele ainda usava fraldas e seguiu atrás dele, até que ela reparou que eu também havia deixado o quarto.

Ela pareceu ponderar por alguns segundos, olhando para escada e depois se voltando para mim. Ela sabia que eu não voltaria para o quarto sozinha, mesmo se fosse instruída para tanto.

O som de algo se quebrando ecoou e vozes se elevaram na calda da noite.

Vovó tomou sua decisão e segurou minha mão, puxando meu corpo para nosso quarto. Fechou a porta firmemente e subiu na cama junto comigo. Com força ela me abraçou e tampou meus ouvidos.

Eu queria correr para fora. Queria saber o que estava acontecendo.

Mas também estava assustada.

Ficamos nessa posição por alguns minutos até que meu pai enfim retornou. Ele não disse nada, mas em seu rosto estava estampada uma expressão séria carregada de preocupação.

Minha avó beijou o topo de minha cabeça e descansou as mãos que tampavam meus ouvidos.

– Fique aqui. – Ela falou com a voz firme e seguiu meu pai para fora do quarto.

Esperei alguns segundos antes de pular para fora da cama e segui sorrateiramente os passos de vovó. O chão estava frio sob meus pés descalços, mas agradeci a Deusa pela madeira não ranger enquanto eu caminhava com passos leves.

Os segui até a entrada do quarto de meu pai e me abaixei silenciosamente ao lado do batente da porta.

– Não! Não é nossa vida! Isso não nos diz respeito... – Ouvi meu pai em uma luta interna consigo mesmo para manter sua voz baixa.

– Claro que nos diz respeito! – Vovó batia com o pé no chão, sua voz carregada com seu temperamento explosivo. – Estão sob nosso telhado... Debaixo do mesmo telhado que sua filha dorme. A segurança dela não lhe diz respeito?

– Não existe nada ali que ameace Brianna! – Meu pai respondeu rapidamente por entre os dentes. Ele estava irritado. – Não nos intrometemos nas vidas de nossos hóspedes! O que eles fazem não é problema nosso.

Um silencio gélido se seguiu.

Tinha certeza que minha avó o encarava transbordando insatisfação. Imaginava vovó com o peito estufado e esticando o pescoço para parecer mais alta, pronta para enfrentar um batalhão inteiro caso fosse necessário. Seu filho podia ser teimoso, mas por vezes ele cometia o erro de se esquecer de que a teimosia fora um traço que herdara da mãe.

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.

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No dia seguinte acordei atrasada.

Meu corpo havia enfim cedido à fadiga e ao cansaço poucos momentos antes do Sol raiar, eu ainda embalada pelos braços finos e frágeis de minha avó. Ainda assim fiquei surpresa por ninguém ter me arrancado de maneira brusca da cama, afinal de contas, esse era o dia do festival tão esperado.

Assim que me troquei corri até a cozinha onde a ajudante já suava diante do fogo enquanto preparava a carne para assar. Apesar das muitas tarefas a serem realizadas, vovó não se encontrava em nenhum local ao alcance da vista.

Perguntei pela minha avó e a ajudante bufou irritada enquanto limpava o suor que lhe escorria pela testa. Ela olhou para os lados antes de me responder com a voz baixa.

– Ela está ocupada. – Então a jovem me lançou um olhar de advertência. – Nem pense em sair procurando por ela! Tem muito o que ser feito nessa cozinha e mãos de menos. Vá buscar seu avental e venha logo me ajudar!

Com um gesto irritado ela me enxotou para fora da cozinha.

Eu queria gritar. Todos me tratavam como uma criança quando bem lhes convinham. Nunca esclareciam minhas dúvidas, nunca me contavam o que se passava e inutilmente tentavam acalmar meus anseios.

Arrastando os pés eu fui buscar meu avental, mas, antes que desse mais do que alguns passos curtos, observei a sombra do canto do salão se mover.

Foi um movimento tão suave que quase escapou de meus olhos. Como o bruxelar inseguro de uma vela quando uma meia brisa sopra pela janela entreaberta.

Mantive minha cabeça baixa e fiquei observando a sombra com o canto do olho, mas o que estivesse escondido naquele local sabia que eu estava a observar atenta. Mais do que isso.

A sombra queria ser notada.

Discretamente ela começou a se mover de um lado para o outro, como se estivesse envolvida em uma dança macabra de uma música silenciosa e muda. Vagarosamente ela serpenteou, subindo pela parede até alcançar o pé da escada, onde parou.

Meu coração acelerou involuntariamente, por mais que eu me esforçasse para manter a respiração compassada. Inalei uma lufada de ar gelado, enchendo meus pequenos pulmões até o limite e fechei os olhos.

Com uma mão envolvendo o colar de Sirona eu me aproximei da sombra.

Antes que eu pisasse sobre ela o negrume no chão estremeceu com animação e correu escada acima, arrastando-se sobre os degraus com uma desenvoltura quase líquida. Por vezes a sombra parava e esperava que eu me aproximasse novamente antes de voltar a se movimentar.

Degrau a degrau eu a segui escada acima.

No segundo andar ela se aventurou pelo corredor vazio, indo e voltando, guiando-me até a última porta do corredor. Guiando-me até a porta do quarto de Haniyya.

Engoli uma exclamação de surpresa e, quando pisquei, a sombra sumiu. Nenhum vestígio de sua presença permaneceu para trás.

– Ai!

Ouvi uma exclamação vinda do quarto e me agachei junto à porta, encostando meu ouvido contra a madeira escura.

– Shhh... Preciso limpar esse corte. Ou você quer ser atingida pela podridão verde?

Identifiquei a voz de vovó. Era impossível não reconhecer seu timbre de autoridade manchado por uma irritação discreta. Ouvi o som de água vindo do outro lado, mas passou-se um longo tempo até que as mulheres voltassem a falar novamente. As vozes eram baixas e as duas falavam rápido... Tão rápido que eu não era capaz de escutar as frases inteiras.

– Foi diferente... estava diferente...

– Não... sempre assim?

– ... medo... havia medo... seus olhos...

Apertei-me contra a porta procurando ouvir mais do que palavras entrecortadas.

– Um homem com medo é capaz de perder a cabeça... Mas mesmo assim... Errado.

– Mas medo de quê?

– Não importa... É errado. – A voz de vovó era autoritária. – Já pensou em fugir?

Haniyya não respondeu. Ou talvez tenha respondido, mas com uma voz tão fraca e tão baixa que não fui capaz de escutar nada além do barulho metálico de suas correntes.

– Posso ajudar...

– Como?

– Hoje. Tem que ser hoje. Durante o festival, enquanto todos estarão muito ocupados com os próprios afazeres para notarem os outros.

– Mas... Para onde eu iria?

Vovó hesitou.

Para onde levariam uma mulher acorrentada? Uma fugitiva que estava prestes a trazer uma criança ao mundo... Não era somente uma questão de encontrar alguém com um coração bondoso o suficiente para abrigar a mulher do mercador e vovó sabia muito bem disso. Precisavam encontrar alguém que auxiliasse no parto.

– Vamos levá-la até a Bruxa.

Naquele momento eu não aguentei mais esperar. Era fisicamente impossível permanecer em silencio por mais um segundo sequer.

Abri a porta com força e as mulheres dentro do quarto pularam assustadas.

Minha avó se encontrava com os olhos arregalados que, inicialmente, estavam repletos de apreensão. Mas assim que ela me reconheceu toda apreensão se esvaiu, dando lugar a alívio que logo foi substituído por irritação.

Haniyya estava sentada na cama com o corpo encolhido de medo. Marcas arroxeadas estavam espalhadas pelos seus braços pardos delicados, delineando os locais onde mãos maiores a agarraram com força em demasia. Um de seus olhos estava discretamente inchado, permanecendo somente entreaberto. Uma bochecha avermelhada e com um corte coberto de sangue seco.

– Eu posso ajudar! – Falei alto e claro, com a voz firme repleta de uma convicção que até o momento eu desconhecia possuir. – Eu quero ajudar!

Senti que minha avó continha o impulso de me agarrar e me arrastar para longe. Ela queria me manter segura, essa era sua prioridade. Mas ela manteve-se quieta, analisando-me em silencio com olhos certeiros.

– Sim. – Ela falou finalmente. – Você é a única com quem a Bruxa conversa e que esteve em sua cabana. Vamos precisar de sua ajuda.

Talvez não fosse certo, considerando-se a situação na qual nós nos encontrávamos, mas não pude deixar de sorrir.

.

.

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Após a pausa para o meio do dia todos os mercadores e a maioria dos moradores de Moebe correram para a praça principal. As barracas dos homens das caravanas e suas mercadorias exóticas já não era novidade, pois já se completava o oitavo desde a chegada dos mercadores.

Mas hoje era um dia especial.

Mercadorias antes guardadas eras expostas. Os preços antigos baixavam sob a influencia de barganhas maleáveis. O governante do Império colaborara contratando músicos e preparavam um novo banquete gordo.

Esse seria o primeiro ano que eu não participaria das festividades.

Quando os corredores da taverna se esvaziaram vovó ordenou que sua ajudante inventasse alguma desculpa qualquer que mantivesse meu pai ocupado na cozinha e longe de vista por algum tempo. Ela escorregou algumas moedas para a mão da jovem, certificando-se que suas instruções seriam cumpridas.

Eu caminhava na frente do grupo, assegurando que nosso caminho estivesse vazio antes que Haniyya e vovó se aventurassem por ele.

Por horas tentamos inutilmente abrir os grilhões dos pés de Haniyya, mas tudo o que conseguimos foi ferir a pele fina de seus tornozelos.

– Teremos que seguir com eles... – Vovó suspirava insatisfeita.

– Seremos pegas.

Haniyya balançava a cabeça veementemente, seus olhos brilhantes com lágrimas por cair. Vovó bateu de leve em sua face com a mão aberta.

– Esse não é o momento para isso. – Ela falou com a voz dura. – Se você decidiu deixar tudo para trás então trate de ser corajosa! Você sabe muito bem o que está se arriscando a perder.

Haniyya engoliu o choro e postou uma mão sobre a barriga avantajada. Depois disso não reclamou e seguiu todas as instruções de minha avó.

Cobrimos a esposa do mercador com uma capa comprida, cobrindo tanto o seu rosto como seus pés, para depois seguirmos por pequenas ruelas escuras e desconhecidas. Algumas pessoas passavam por nós. Ás vezes nos observavam com certa curiosidade, mas vovó continuava olhando em frente como se nada naquele mundo fosse capaz de abalá-la naquele momento e logo essas pessoas perdiam o interesse em nossa estranha trupe. Outras vezes não se dignavam a nos notar, como se fôssemos invisíveis.

Nosso avanço foi lento.

Tivemos que parar muitas vezes para Haniyya recuperar o fôlego que lhe fugia ao mínimo esforço da caminhada. Minha avó sempre a apressando de maneira rude enquanto eu tentava lhe oferecer palavras reconfortantes.

– Vamos... – Eu lhe sussurrava. – Falta pouco agora. Você está indo muito bem. Estamos quase chegando, já consegue avistar suas pombas?

Atravessamos a Ala Sul e seguimos em direção aos apiários. Não conseguíamos esconder nosso nervosismo que crescia a cada segundo, mesmo estando tão próximas de nosso destino. Qual garantia tínhamos de que a fuga terminaria ali? Com a gravidez avançada de Haniyya seria impossível deixar Moebe e tínhamos certeza de que uma busca desesperada se seguiria assim que notassem sua ausência.

Assim que avistei a cabana de Sirona notei como suas pombas estavam inquietas. As aves brancas voavam circundando o lar de sua dona batendo suas asas com tanta força que pareciam mergulhadas em desespero.

Em nosso passo vagaroso nos aproximamos da moradia e a porta da cabana se abriu, cessando o piar das pombas.

A bruxa já nos esperava.


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Notas finais do capítulo

Quem estava ouvindo a musica na parte da sombra? Sério mesmo, essa cena fica bem mais interessante com essa trilha sonora e vale a pena relê-la com a música de fundo.

A avó de Brianna não se assemelha em nada às minhas avós. Ela foi baseada nas histórias que minha mãe me contava sobre a avó dela, que era uma mulher forte e que tinha sua própria maneira de demonstrar seu carinho pelos outros.

É possível que o próximo capítulo demore um pouco... Estou avisando com antecedência por que não quero ninguém puxando minha orelha, mas estou numa fase super corrida e com uns problemas gritando para serem resolvidos para ontem. Então me desculpem caso eu me atrase...

Mas vou procurar um tempinho para desenhar a Brianna (tradução: antes da história acabar o desenho sai).