A Bruxa da Cidade das Brumas escrita por Libellule penseuse


Capítulo 8
A Sombra de Azrael


Notas iniciais do capítulo

Gostaria de agradecer a querida leitora Joyce pela sua adorável recomendação. Eu realmente não esperava nenhuma nesse ponto da história e não tenho palavras para descrever o quão feliz ela me deixou.

Também agradeço imensamente por todos os inestimáveis comentários que deixaram!

Espero que me perdoem, mas no final desse capítulo coloquei um desenho que fiz da Sirona. Cada um criou uma imagem própria dela, mas eu gostaria de dividir com vocês a minha versão.

Música recomendada para o capítulo: Equinox, por Omnia.



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O pingente de Sirona pesava em meu pescoço. Era um peso que de nada tinha de físico ou que fosse real, mas ainda assim eu sentia a força sutil daquela joia puxando meu corpo para baixo, em direção a terra. O pequeno adorno de prata era circular e do tamanho de uma moeda, pequeno e gelado contra minha pele.

Queria vê-lo.

Era uma vontade desesperadora, como uma coceira decorrente da picada de um inseto, que torna a pele irritadiça, inchada e vermelha. Contudo a tira de couro que envolvia meu pescoço era demasiadamente curta para que eu pudesse satisfazer minha curiosidade. Dessa forma meus dedos contornavam repetitivamente os entornos do pingente, como se minha pele fosse capaz de absorver os minúsculos detalhes em relevo da prata.

Cheguei à taverna no meio do dia, enquanto o Sol ainda estava alto e imponente, formando sombras tão pequenas e discretas que mal satisfaziam os camponeses trabalhando nos campos de lavanda.

Quando entrei meu pai me lançou um olhar que gritava insatisfação e desapontamento. Nenhuma desculpa que eu inventasse, por mais palpável e palatável que fosse, iria me ajudar a escapar da bronca que viria.

Eu deveria me preocupar.

Mas a verdade é que pouco ligava para meus castigos. Qualquer punição imposta por meu pai parecia não ser de grande importância. Ao menos não em vista dos acontecimentos que me cercavam como abutres rodeando uma carcaça apodrecida.

Na cozinha minha avó parou o que estava fazendo, deixando ao encargo da jovem ajudante vigiar o fogo que assava a carne gordurosa. Ela puxou minha orelha sem dizer nada, colocou um avental manchado sobre meu vestido e beijou minha testa. E dessa maneira eu estava perdoada.

Ela avistou o pingente de prata que eu usada e ergueu uma sobrancelha perguntando-me a origem do adorno, por mais que nenhuma palavra tivesse deixado seus lábios murchos. Ela tomou o apetrecho em seus dedos tortos o observando com curiosidade para depois me lançar um olhar inquisidor e sério.

– Foi um presente...

Olhei para o chão sabendo que rapidamente minha face tornara-se rubra como uma fruta do verão. Minha avó não me perguntou de quem viera a prenda, ela sabia.

Corri para servir o almoço.

Sentia falta da liberdade que possuía antes da chegada dos mercadores. Geralmente não me importava em ajudar meu pai em seu trabalho, mas a cada ano que se passava as tarefas que me eram entregues aumentavam. À medida que eu crescia também cresciam minhas responsabilidades e isso me fascinava na mesma medida que me aterrorizava.

– Esse ano a caravana chegou mais cedo.

No balcão meu pai conversava com um dos mercadores que já terminara seu almoço e agora bebericava tranquilamente uma caneca de chá. Era um homem velho. Pelo menos mais velho que meu pai... Talvez não tão velho como Otho. Era difícil dizer. Sua pele enrugada era do mesmo tom das castanhas doces que vendia, seus cabelos da cor da terra começavam a esbranquiçar junto à testa.

– Sim. – O mercador comentou enquanto soprava a fumaça do seu chá, sua voz melosa carregada com o sotaque das terras do Sul. – Dias antes chegamos... Muitos dias. Nova rota, tivemos de tomar...

Meu pai não se importou com a fala entrecortada do velho. Muitos dos mercadores já estavam acostumados a usar a língua do Império como principal meio de comunicação, mas ainda assim alguns traços de sua língua-mãe permaneciam incrustados no diálogo de alguns.

– Sim. Eu soube que tiveram que desviar do caminho principal. Behruz e Javed comentaram quando chegaram... Disseram algo sobre algumas cidades destruídas. Foram ataques bárbaros?

Papai reparou que eu estava próxima e indicou uma mesa vazia. Eu deveria tirar os pratos sujos deixados. De mau gosto eu realizei a tarefa rapidamente, voltando a me aproximar do balcão discretamente. Não queria ser enxotada para longe enquanto ouvia mais da conversa alheia do me era permitido.

– Ataques... Bárbaros? Soldados do Império? – O mercador comentava aborrecido. – Qual diferença fazer? Muito destruído. Vidas perdidas. – O senhor balançou sua cabeça veementemente. – Em Kiruna, nos contar... Nos contar que Avesta ser totalmente destruída. Que nada dela restar.

Meu pai fez uma expressão carregada de pesar e preocupação.

– Avesta? – Ele pareceu chocado por um momento, sem saber como continuar servindo chá. – A cidade que era devotada às sacerdotisas da antiga religião? A Cidade das Brumas?

– Sim. Avesta, cidade das brumas e de névoa. – O mercador continuou. – Dizer que o Grande Templo tombou. Dizer que todo gado no pasto foi morto, plantações queimar, campos salgados, sangue nas ruas... Ninguém ficar.

Com olhares tristes, ombros encurvados e corações pesados, nada mais falaram sobre Avesta ou sobre o desvio da rota das caravanas. Eu própria sentia o pesar da nova informação e tinha certeza que era uma questão te tempo até que toda Moebe estivesse comentando sobre as cidades destruídas. Silenciosamente eu me perguntava quanto tempo mais o clima festivo seria capaz de encobrir o temor resultante da notícia tétrica...

Não muito.

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Já era a tarde do sétimo dia desde que os mercadores atravessaram os grandiosos portões de Moebe quando Haniyya veio falar comigo novamente. Na noite seguinte ocorreria o festival dedicado à visita das caravanas e, dentro de mais sete dias, os estrangeiros deixariam a cidade para trás com seus bois de carga levantando a poeira seca pelas trilhas do vale.

Eu prometi a Sirona que ficaria longe do marido de Haniyya. Após ter visitado a bruxa passei a evitar também a esposa grávida, mesmo sentindo na língua o gosto da amargura de não saber o quê fazer para ajudá-la.

Haniyya caminhava pelo corredor com passadas curtas e demoradas. Seus movimentos limitados não só pelo estado avançado da gravidez, como também pela corrente que unia seus tornozelos, cada meio passo que dava acompanhado pelo ruído do metal sendo arrastado contra o piso. Suas pernas fracas suportavam com dificuldade o peso da criança em seu ventre baixo e arredondado, fazendo o seu caminhar lento parecer desengonçado e desequilibrado.

– Brianna do cabelo de fogo. - Ela sorriu ao me avistar, mas seus olhos continuavam vazios, da mesma maneira que estavam em nosso primeiro encontro. – Poderia ajudar-me, por favor?

Sem pensar eu corri para o seu lado e amparei seu braço. Meu corpo, pequeno e magricela, suportou parte do peso da mulher grávida. Parte de mim desejou arrastá-la de volta para o quarto, onde ela poderia descansar em segurança, como seu estado bem requeria. Mas minha outra metade relutava, repudiando a ideia de trancar a mulher de pele parda e feições delicadas.

– Para onde quer ir?

Haniyya pareceu surpresa com a pergunta e teve que refletir sobre ela por longos segundos. Ela suspirou cansada e me ofereceu um sorriso triste... Tão triste que eu tinha certeza que possuía um toque de amargura.

– Para onde ir? – Ela olhou para o teto como se estivesse perguntando para si mesma. – Tantos lugares... Gostaria de ver o mar. Sonhava visitar a majestosa Capital. E meu coração anseia retornar para a imensidão de areia, que um dia chamei de lar... – Então a mulher de cabelos negros voltou sua atenção para mim em um sorriso enigmático. – Mas por ora, pequena Brianna, gostaria de ir até a cozinha para beber uma xícara de chá.

Com cuidado e de maneira copiosa guiei Haniyya até a cozinha da taberna. Nosso avanço foi lento e demorado e eu temia a todo momento que minha companheira mais velha tropeçasse. Um passo em falso. Somente isso bastava para que um desastre se seguisse. Mas Haniyya seguia em frente firme e decidida, demonstrando certa felicidade na simples tarefa de poder buscar o próprio chá.

Suspirei aliviada quando não encontramos meu pai pelo caminho. Ele demandaria explicações as quais estavam além de minha capacidade elaborar.

Ofereci uma cadeira a Haniyya, mas ela recusou dizendo que gostaria de ficar de pé por mais um tempo. Deixei o assento de madeira do seu lado enquanto buscava uma chaleira para esquentar água. Os olhos escuros de Haniyya acompanhavam todos meus movimentos com certa curiosidade.

– Dizem que és amiga de uma bruxa.

Ela perguntou de repente, me surpreendendo no processo. Engoli seco pensando no que responder.

Sirona nunca dissera em voz alta o que era. Nunca pronunciara uma única palavra sobre as artes esquecidas e certamente nunca mencionara os segredos do povo da floresta.

Não precisava.

A garota de olhos estranhos era capaz de falar a língua dos animais. Bastava o toque de suas mãos carinhosas e as plantas cresciam fortes e saudáveis, para enfim florescerem em uma explosão de cores e perfumes inebriantes. Ela conhecia a arte da cura melhor do que qualquer cirurgião treinado pelo Império e era capaz de prever o tempo com tanta certeza que eu me perguntava se na verdade não era capaz de controlá-lo.

Ela era uma bruxa.

Encarei Haniyya com seriedade. Perguntei-me se meus olhos castanhos estariam brilhantes e se minha testa estaria franzida.

– Sim. Eu sou.

Coloquei um pouco de camomila na água fervente e Haniyya voltou ao seu estado contemplativo. Postei uma xícara de cerâmica em suas mãos e ela se pôs a girar o pequeno objeto delicado, sentindo sua textura rústica com as pontas dos dedos compridos e ossudos.

– Minha avó contava que era filha de uma bruxa. – Ela falou sem me encarar, sempre olhando para a xícara. – Minha mãe dizia que era mentira. Que os contos nada mais eram além de devaneios vazios de uma velha caduca... Mas minha Jadd gostava de contar-me histórias. Ela se sentava encurvada ao pé de minha cama e passava horas a narrar-me segredos sob a meia luz do crepúsculo.

Quando Haniyya finalmente levantou seu olhar da xícara pousou seus olhos escuros no pingente em meu pescoço. Vagarosamente ela levantou sua mão e vez menção para que eu me aproximasse... Menção a qual concedi de maneira automática, arrastando meus pés pesadamente. A verdade era que minha curiosidade superava qualquer receio que meu coração albergasse. Eu precisava saber.

A esposa do mercador tocou o pequeno adorno de prata com tanta suavidade que seus dedos quase não roçaram sobre a superfície metálica.

– Minha Jadd ensinou-me a ver por detrás dos símbolos. Ensinou-me a ler, ao menos um pouco, dos significados escondidos. – Haniyya murmurava, ainda dedilhando os entornos de minha gargantilha. – Seu colar, por exemplo... É uma proteção contra Azrael.

Minhas próprias mãos procuraram envolver a joia em minha garganta e o metal frio subitamente pareceu queimar minha pele. Corri a língua pelos meus lábios ressecados de maneira nervosa.

– Azrael?

– Sim... Azrael. Assim o chamamos nas terras onde nasci, mas cada local que visitei em minha vida o batiza com um nome distinto. – A mulher grávida envolveu sua barriga de maneira protetora. – Azra’il minha avó o chamava. Malach HaMavet. Ankou nas Ilhas do Norte. Os pequenos países do Nordeste o chamam por vezes de Giltinè. Entre outros...

– Mas o que significa Azrael?

Haniyya ergueu suas sobrancelhas. Ela hesitou um pouco antes de responder, mas por fim me encarou com seus olhos negros e encheu seus pulmões de ar.

– É o nome do Anjo da Morte.

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.

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Com o estômago embrulhado ajudei Haniyya a voltar para seu quarto.

Em minha cabeça repetia para mim mesma que não tinha medo, esperando que, em algum momento, essas palavras se tornassem realidade. Mas a verdade é que meu peito doía com meu coração se retorcendo repleto de receio.

Ainda assim eu afirmava para mim mesma que seria feroz e corajosa. Afinal de contas, Sirona estava me protegendo.

Ao anoitecer os mercadores retornaram à taverna, cansados e satisfeitos após um longo dia de trabalho. Certamente contariam suas moedas quando estivessem trancados na segurança de seus quartos.

No momento em que pisaram na entrada do salão uma sombra negra pareceu descer sobre o aposento tornando-o frio. A sombra cresceu e diminuiu, como se tivesse vontade própria e não temesse nenhuma luz, ela passava de uma parede para a outra, correndo na frente dos homens sem ser vista. Quando finalmente se cansou encontrou um canto onde se postou confortavelmente a observar o resto do ambiente.

Ninguém parecia notar aquela sombra gélida e disforme. Ninguém parecia sentir o peso de sua presença mórbida ou seu cheiro de flores murchas.

Ninguém além de mim e um homem de olhos cansados e cabelos negros.

Ele não me parecia velho com seus cabelos ondulados caindo-lhe sobre o ombro e a barba rente por fazer no queixo retangular. Suas vestes estavam um pouco gastas, mas o tecido era de boa qualidade e os anéis em seus dedos eram grossos e dourados, assim como as pulseiras de Haniyya.

Diferentemente de seus colegas ele encarou o canto do salão onde a sombra se postava e seus olhos se arregalaram, transbordando medo e receio.

Naquele momento eu compreendi o que Sirona havia visto...

O Anjo da Morte residia agora em Moebe, vigiava suas presas com olhos famintos e certamente não deixaria a cidade de mãos vazias. Era impossível saber quantas vitimas carregaria consigo, quantas almas estariam marcadas para serem clamadas. Mas no fundo de minha consciência eu sentia Azrael sorrindo e fazendo suas próprias apostas em um jogo macabro que criou para o próprio divertimento, um jogo cujo desfecho seria inevitável.

Um de nós dois iria perecer.

Mas quem?

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Notas finais do capítulo

Alguém reparou na referencia a Brumas de Avalon? Preciso mencionar que sou fã de carteirinha de Marion Z. Bradley?

Estamos chegando ao final da primeira parte da história, a infância de Brianna. Mais uns três capítulos até ela começar a crescer?

Quanto ao desenho, essa é uma versão mais velha da Sirona (se a Brianna vai crescer a bruxa também vai). Então eu sei que ela não tem quinze anos nem aqui nem na China nessa imagem (é com você mesmo que eu estou falando, Srta. Abacaxi!). Gostariam de um desenho da Brianna?