A Bruxa da Cidade das Brumas escrita por Libellule penseuse


Capítulo 7
Sobre o Reflexo no Espelho


Notas iniciais do capítulo

Música recomendada para o capítulo: Dance with the Trees, por Adrian Von Ziegler.



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No dia seguinte aproveitei a primeira chance que tive de escapar e deixei minhas tarefas incompletas ao cargo de meu pai e minha avó, como uma criança egoísta e mimada.

Eu saltei para fora da cama logo antes do Sol nascer e, tão silenciosamente quanto um ratinho, troquei minhas vestimentas. Deixei meus aposentos antes mesmo de trançar meus cabelos, que caiam soltos pelas minhas costas ainda desarrumados das horas de descaso.

Desci as escadarias nas pontas dos pés, tentando minimizar o ranger da madeira velha das tábuas. Avistei minha avó trabalhando na cozinha, sovando com vontade a massa de pão como se as articulações de seus pulsos frágeis fossem fortes e saudáveis. Decidi que pediria a Sirona um pouco mais da casca de salgueiro e, quem sabe, uma emulsão de arnica e freixo, pois tinha certeza que vovó estaria reclamando das dores no final do dia.

Com cuidado contornei a cozinha e calcei minhas botas na entrada dos fundos da taberna. Tinha certeza que meu pai estaria no poço buscando água fresca, então caminhei parcialmente escondida pelos arbustos até chegar a rua principal.

Corri para a casa de Sirona e já subi as escadas de sua entrada abrindo a porta e entrando na cabana sem ser convidada. Eu sabia que Sirona lá se encontrava, pois suas pombas se aninhavam sobre o telhado de palha da cabana e sobrevoam o celeiro que agora servia de pombal.

A casa de Sirona sempre cheirava a flores e ervas, pois a garota das pombas possuía o costume de pendurar as plantas colhidas do jardim sobre a pequena lareira, onde secavam, tornavam-se quebradiças e exalavam seu perfume. Seu lar era pequeno e quase não possuía móveis, mas eu me sentia tanto a vontade no local quanto em minha própria casa.

A bruxa já me esperava.

Sobre a mesa se encontrava um prato com ovos de pomba cozidos e bolos de mel. Assim que me viu Sirona retirou a chaleira da lareira e despejou em um caneco de cerâmica o leite quente ainda soltando fumaça.

Quando a morena soltou a chaleira sobre um conjunto de panos eu tomei suas mãos entre as minhas e perguntei como ela estava, mas ela somente balançou a cabeça e se afastou de meu toque.

– Coma. – Ela apontou para a mesa posta. – Depois conversaremos.

Resignada eu bufei, mas obedeci.

Os ovos estavam macios e quentes, a gema amolecida escorria pelo meu queixo tingindo minha pele com um tom amarelado. Os bolos de mel estavam doces e melados e engoli tudo com vontade e uma fome que não sabia que estava. Sentada do outro lado da mesa Sirona trabalhava enquanto eu comia. Ela colocava algumas conchas brancas quebradas em um pequeno pilão de ferro, rústico porem bem cuidado, depois se punha pacientemente a tritura-las com movimentos repetitivos e delicados do almofariz.

Engoli todo o leite de cabra em um único gole e limpei os lábios com a manga do vestido. Minha avó teria puxado minha orelha se estivesse presente, dizendo que uma dama deveria ser delicada e ter bons modos a mesa. Afastei sua imagem de minha mente antes que me sentisse culpada por ter escapado de minhas tarefas.

– O que está fazendo?

– Pó de concha. – Ela comentou ainda imersa em sua tarefa.

– Para quê serve?

– Para alguns remédios... Quer experimentar?

Ela me ofereceu o pilão e eu encarei de maneira curiosa o pó branco que se acumulava no fundo do instrumento. Coloquei meu dedo melado em seu conteúdo e o levei até a boca. O gosto era salgado, mas desagradável.

Fiz uma careta e Sirona sorriu.

A bruxa colocou novas conchas no pilão e eu apoiei minha cabeça sobre a mesa a observando trabalhar. Ela parecia calma, qualquer traço de desespero e medo tinha se esvanecido de sua pessoa, ou ela sabia esconder muito bem o que sentia... Por mais que eu tentasse não era capaz de decifrar a bruxa silenciosa.

– Da próxima vez que for catar conchas me leve com você. – Reclamei como uma criança manhosa. Eu realmente queria ter a acompanhado até a baia. Podia imaginá-la com os cabelos negros soltos e esvoaçantes contra a brisa marítima. Imaginava as gaivotas juntando-se às suas delicadas pombas em uma dança bela e animalesca...

Sirona sorriu de maneira quase maternal.

– Levarei.

Por alguma razão pensei em Haniyya.

A esposa do mercador nunca poderia sair para caminhar a beira do mar com seus grilhões... Com uma prisão que só lhe permita dar pequenos passos, ela viajava por todos os lados do continente ao mesmo tempo em que estava confinada. E minha alegria momentânea rapidamente dissolveu-se em uma tristeza melancólica.

– Uma das esposas dos mercadores está grávida. – Comentei vagamente, batendo os dedos contra a beirada do prato vazio.

– Ela não deveria estar viajando. Faz mal para a criança que está crescendo dentro dela. – Aquilo pareceu prender a atenção de Sirona, talvez apelasse para o seu lado de curandeira. – Qual o tamanho da barriga?

Pensei um pouco e indiquei o tamanho aproximado usando os braços.

– Hum... Não deve demorar muito então... Ela não deveria mesmo viajar.

– Ela não tem escolha.

Narrei para ela meu encontro com Haniyya e descrevi suas correntes que lhe tomavam a liberdade. Mencionei também a conversa que tive com Otho, sobre os maridos nômades que cortavam os tendões das esposas para que elas não fugissem. Sirona fez uma careta e depois uma expressão de preocupação e raiva se estampou em sua face. Se ela sabia o que aquilo significava não me contou.

Então de maneira repentina ela se pôs a olhar a minha volta, franzindo o cenho com concentração. Ou seria insatisfação? A bruxa remexia nos pingentes de sua gargantilha com impaciência e murmurava curtas reclamações baixas que nunca chegaram aos meus ouvidos. Em um pulo ela levantou e correu para o outro lado do aposento e eu a segui.

Debaixo da sua mesa de trabalho, onde ela ficava horas a triturar ervas secas e a preparar cataplasmas, ela retirou um grande baú de madeira escura envelhecida. Mergulhou suas mãos pequenas dentro dele e puxou do fundo um pequeno espelho de prata envolto por um tecido fino e macio, tão branco quanto uma de suas pombas pomposas. O espelho era liso e rústico, do tamanho de um prato e sem adornos que tornassem o objeto em algo muito precioso. Mas, diferente dos espelhos vendidos nas feiras da cidade, as laterais desde se pronunciavam para um dos lados, como se o espelho na verdade fosse uma vasilha rasa.

Sirona manejava o objeto com cuidado, sem tocar com a pele em sua superfície. Ela parecia receosa, como se considerasse outras possibilidades e quase guardou de volta o espelho no baú.

Mas ela não o fez.

– Lá fora, do lado do pombal, existe um barril que armazena a água da chuva. – Sirona falou apressadamente enquanto colocava o espelho em minhas mãos. – Vá até ele e encha esse recipiente com a água.

Encarei meu próprio reflexo no espelho. Meus olhos castanhos me encaravam como se não reconhecessem a garota ruiva posta na sua frente.

– Ma-

Abri a boca para falar, mas rapidamente a jovem bruxa colocou um dedo sobre meus lábios me calando.

– Não fale nada. – Sua expressão era séria, a mesma expressão que minha avó usava quando discutia com meu pai. Mas quando Sirona a usava era diferente... Havia algo inquietante se passando pela superfície de seus olhos e eu era incapaz de identificar o que era. – Não pronuncie nenhuma palavra. Não até que eu lhe permita. Isso é muito importante, entendeu?

Assenti com a cabeça e caminhei até o pombal. Sem pensar sobre a tarefa, mas ao mesmo tempo imensamente preocupada em não cometer nenhum erro, eu mergulhei o espelho dentro do barril com água cristalina. As pombas começaram a voar baixo, circulando pelo ar a minha volta, como se perguntassem umas para as outras o que eu estaria fazendo. Segui de volta para a cabana com passos lentos e cuidadosos, esforçando-me para não derramar uma gota sequer.

Dentro da casa Sirona jogava algum pó na lareira acesa, levantando uma nuvem rosada e de cheiro amargo que me deixou tonta. Silenciosamente ela indicou para que eu postasse o espelho sobre o chão limpo em frente à lareira e para que eu me ajoelhasse.

Ficamos lado a lado, encarando o espelho com água e a lareira acesa. Não queria admitir, mas me sentia confusa e até mesmo um pouco perplexa. Parte de mim suspeitava que toda essa encenação era parte de um ritual, o qual eu desconhecia, mas que ainda assim fazia parte.

Sirona retirou uma pequena faca de cabo curto do cinto trançado em seu vestido, eu sempre reparei na arma singela que a bruxa carregava consigo, mas nunca antes a vira empunhando o instrumento, nem mesmo para cortar as raízes dos arbustos em seu jardim. Para essas tarefas Sirona usava outras ferramentas.

Sem nenhum aviso ela tomou minha mão e vez um pequeno talho em meu dedo. Mordi a língua para não soltar nenhuma reclamação, pois Sirona ainda não me dera nenhuma indicação de que poderia emitir algum som. Então engoli meus gemidos e suportei a sensação incomoda de queimação.

Apertando meu dedo ferido ela derramou três gotas do meu sangue sobre a água de chuva, mas depois beijou carinhosamente minha pele lacerada em um pedido silencioso de desculpas.

Mesmo com o corte dolorido eu senti minha face corar envergonhada pelo simples fato de que ela havia beijado minha pele. Secretamente eu ansiava por mais um beijo que não recebi.

No segundo seguinte Sirona voltou toda sua atenção para o espelho e imediatamente seu olhar tornou-se vago e enevoado. Fiquei encarando a água, mas nada acontecia... Tudo o que eu enxergava era meu sangue vagarosamente se diluindo e tingindo a água com um discreto tom avermelhado que nem ao menos parecia existir.

Não sei por quanto tempo a bruxa ficou parada naquela posição... Tão imóvel como se tivesse mergulhado em um transe profundo. Tentei me concentrar nas vozes das pombas que vinham do lado de fora, na dança das labaredas da lareira, no odor pungente que ainda residia no local... Em qualquer coisa que me distraísse.

Então Sirona fechou os olhos como se estivesse sentindo dor e seu corpo se dobrou. Ela gemeu e virou o espelho, derramando sua água pelo piso de madeira. Instintivamente eu a amparei.

– Pode falar agora... – Ela murmurou fracamente ainda com os olhos ainda fechados.

– O que você viu? – Perguntei enquanto afastava as mechas soltas de seu cabelo da frente da sua face

Sirona levantou o rosto e arregalou os olhos. Seu olhar assustado me inquietava.

Ela não me respondeu de imediato, parecia indecisa se chegaria ao menos a me contar. Suspirando ela retirou um dos pingentes de sua gargantilha e usou uma fina tira de couro para amarrar o adorno em torno do meu pescoço.

– Prometa-me que ficará longe do marido dessa mulher. – A bruxa falou preocupara. – Prometa-me que estará segura e que nunca irá tirar esse amuleto do pescoço... Por favor... Prometa-me.

Cada palavra que ela pronunciava era direcionada a mim, entretanto seu olhar continuava fixo em algum ponto por cima do meu ombro. Discretamente eu virei a cabeça para trás seguindo a direção dos olhos de Sirona. Não sei o que eu esperava encontrar, mas não havia nada atrás de mim... Somente sombras, muito densas para uma manhã tão ensolarada. Senti uma onda gélida percorrer pela minha espinha fazendo os pelos de minha nuca se arrepiarem. Eu senti frio.

E prometi a Sirona tudo o que me pediu.


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Notas finais do capítulo

E aqui terminados a segunda metade da metade de um capítulo!

Estar com o pé imobilizado resulta em um bocado de tempo para escrever, não é mesmo? Então estou aqui postando um novo trecho da história!

Enfim, espero que gostem, adicionei um pouco de magia por que estava sentindo falta. Mas ainda terá um bocado por vir.