A Bruxa da Cidade das Brumas escrita por Libellule penseuse


Capítulo 6
Quando As Caravanas Passam


Notas iniciais do capítulo

Música recomendada para o capítulo: Dancing on water, por Finjan.



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As caravanas de mercadores costumavam passar por Moebe no final do verão, época em que as estradas estavam mais seguras em razão da pouca chuva e ausência de gelo. A chegada daquelas carroças pesadas com mercadorias exóticas sendo puxadas por bois de carga era inesperada naquela época do ano, ainda início da estação do Sol.

Sempre que os mercadores de fora chegavam era motivo de festa em Moebe. Os governantes do Império auxiliavam o povo a organizar um festival improvisado as pressas, soldados ajudavam os carpinteiros a montar barracas de vendas e os cozinheiros do palácio colaboravam com o grande banquete. A taberna ficava viva e cheia, cheirando a comida pronta e repleta de um calor aconchegante emanando da grande lareira. O vinho, a cerveja e o hidromel escorriam constantemente dos barris abertos enquanto no campo um cordeiro gordo era escolhido para ser sacrificado em prol do banquete de boas vindas.

Quando voltei para casa meu pai não teve tempo de me repreender, somente gritou para que eu colocasse o avental e me apressasse em servir os clientes.

Alguns dos mercadores já haviam se instalado e, com risadas pesadas, demandavam comida farta e bebida alegre. Alguns dos homens possuíam a pele parda originária das terras ao Sul do Império, outros possuíam o cabelo claro como o trigo recém-colhido dos homens das Terras de Gelo. Havia pessoas de todos os cantos do continente, com cabelos de todas as cores e carregadas de traços exóticos.

Eu corria de mesa em mesa carregando canecas pesadas e cheias, cujo conteúdo respingava sobre o chão e molhava minhas mãos.

Normalmente eu adorava as festividades de boas-vindas, mas esse ano era diferente. Não conseguia afastar minha mente de Sirona... Não ousava me esquecer do desespero estampado em seu rosto enquanto abraçava uma de suas pombas morta.

O que ela teria visto refletido nos olhos vibrados e sem vida do animal?

O que suas aves brancas lhe confidenciaram numa língua secreta que ninguém mais entendia?

– Preste atenção, menina! Acorde antes que comece a derrubar os pratos! - Meu pai gritou me repreendendo por detrás do balcão. – Venha aqui!

Com cuidado para não esbarrar em nenhum cliente eu corri até meu pai que me entregou um prato com pão, carne e sopa ainda quentes.

– Leve isso aqui para o quarto de hospedes no final do corredor no segundo andar. – Ele me instruiu. – E, pela Deusa, tome cuidado para não derrubar nada pelo caminho!

Assenti prontamente, peguei o prato e devagar me pus a subir as escadas. O cheiro da comida era forte e gostoso, quase se podia sentir o gosto das especiarias usadas como tempero, minha avó era uma cozinheira com muitos talentos... Meu estômago vazio roncou de fome e me esforcei para ignorá-lo.

Equilibrando o prato com uma mão eu bati na porta do quarto e esperei.

Ninguém atendeu.

Será que eu tinha batido na porta errada? Bati mais uma vez, usando mais força.

– Entre!

Uma voz veio de dentro do quarto apesar da porta continuar fechada. Sem fazer cerimônia eu invadi o aposento com passos seguros. O lado de dentro era simples, como todos os outros cômodos da taverna do meu pai. Possuía uma cama grande, uma cômoda, uma mesa e cadeira em um canto e uma bacia com água fria. Era um lugar onde os viajantes poderiam descansar da estrada sórdida, mas não oferecia muito conforto além do necessário.

Uma mulher estava sentada na cama. Ela era bonita, mas parecia demasiadamente cansada da jornada. Ela estava parada tão imóvel quanto uma estátua, imortalizada com suas mãos delicadas descansando de maneira protetora sobre seu ventre inchado. Sob as várias camadas de tecido colorido era impossível disfarçar sua gravidez avançada.

Uma mulher naquele estado não deveria estar viajando...

Silenciosamente eu me perguntava se todos os mercadores carregavam suas esposas e filhas consigo, ou se suas famílias possuíam um pedaço de terra para chamar de lar.

Ela sorriu tristemente com olhos negros e vazios.

– Trouxe sua comida...

Falei um pouco sem jeito enquanto colocava o prato sobre a pequena mesa do outro lado do quarto. A mulher estendeu uma mão, cheia de anéis pesados e pulseiras douradas, e fez menção para que eu me aproximasse.

– Venha, criança. Eu não mordo. – Seu sotaque era pesado, como se ela enrolasse a língua para pronunciar palavras as quais estava pouco acostumada a usar.

De perto pude reparar que ela era mais jovem do que julguei inicialmente, talvez as pesadas olheiras sob seus olhos deixassem a impressão de anos vividos que nunca chegaram realmente a se passar. Sua pele era dourada e beijada pelo sol, seus cabelos eram compridos e negros como as penas de um corvo graúdo. Pareciam lisos, mas estavam presos em uma trança elegante que lhe caía sobre um dos ombros. Os olhos amendoados e escuros lembravam pequenas frutas silvestres que cresciam em arbustos no final do outono, suas pálpebras estavam pintadas de khol que ressaltava ainda mais o vazio em seu olhar.

Ela me observou com atenção e tomou uma mecha do meu cabelo entre os dedos.

– Você tem cabelo de fogo... – Ela comentava pensativa. – Tão raro é encontrar madeixas como essas em minha terra.

Se a esposa do mercador esperava uma resposta não obteve nenhuma. Eu pouco sabia o que deveria responder, nunca gostei dos meus cabelos ruivos como sangue e nunca pensei neles como um traço especial. O comentário havia me deixado incomodada e queria encontrar qualquer desculpa para partir daquele local.

– Desculpe. – Falei dando um passo para trás. – Devo voltar lá para baixo, meu pai precisa da minha ajuda.

– Não és muito jovem para trabalhar, não?

A moça falou com um sorriso brincalhão, mas seus olhos ainda pareciam vagos e ocos, como se algo estivesse errado com ela.

– Preciso ir. – Repeti olhando para a porta.

– Haniyya.

Ela falou com pressa antes que eu saísse do cômodo.

– O quê?

– Meu nome. Haniyya. – Ela se remexeu na cama com cuidado com sua barriga pesada e eu ouvi um som metálico. – Qual é o seu?

Foi nesse momento em que eu vi os pés dela.

Circundando seus delicados tornozelos pardos se encontravam dois grilhões grossos e pesados de ferro, grilhões unidos por uma corrente curta que deveria impedir que ela andasse livremente.

Engoli seco e tentei desviar o olhar para qualquer lugar que não fosse a corrente ou o rosto de Haniyya.

– Brianna... Meu nome é Brianna. – Falei e rapidamente sai do quarto.

.

.

.

No dia seguinte eu continuava inquieta, alheia a animação da cidade resultante da chegada dos mercadores. Não conseguia tirar a imagem das correntes de Haniyya de minha mente. Por alguma razão elas me deixavam enjoada.

Na noite anterior quando perguntei para o meu pai se aquela mulher grávida era uma prisioneira ele somente balançou a cabeça negativamente.

– Não nos intrometemos nos assuntos que não nos dizem respeito.

Ele respondeu curtamente e voltou a trabalhar, ignorando-me o restante da noite. Assim que os clientes deixaram o salão da taverna e se retiraram para os seus aposentos eu ouvi minha avó discutindo com meu pai na cozinha. Eram sussurros baixos, mas ainda assim era possível distinguir a insatisfação, quase palpável, em sua voz cansada.

De alguma maneira suspeitei que a razão daquela discussão estivesse relacionada à Haniyya. Mas os adultos eram adultos, não se dariam o trabalho de explicarem para uma criança como eu os motivos de suas preocupações e seus temores.

Pela manhã minha avó estava mais mal-humorada e ranzinza do que o normal. Não haveria aulas. Não enquanto a taberna estivesse repleta de clientes demandando refeições quentes e camas limpas. Meus parentes me mantiveram ocupada durante todo o decorrer do dia. Eu corria de um lado para o outro pela taberna carregando pratos, limpando mesas e por vezes arrumando camas.

Assim que os suplementos da cozinha começaram a rarear minha avó colocou uma cesta em minhas mãos e me mandou para a praça principal onde os fazendeiros e artesãos vendiam seus produtos ao ar livre.

Realizei a tarefa de bom grado. Qualquer pequeno momento longe da taberna era bem vindo.

Infelizmente não encontrei Sirona pelo caminho e não pude deixar de ficar um pouco desapontada, mesmo sabendo que a bruxa possuía seus próprios afazeres para ocupar seu tempo. Mas avistei um soldado velho e orgulhoso.

Otho estava na praça comprando óleo, provavelmente para a limpeza das armaduras de aço.

O cumprimentei esperando ser enxotada, pois Otho era conhecido pelo seu comportamento ranzinza e pelos seus modos grossos, mas, inesperadamente, o velho senhor retribuiu meu cumprimento com um semblante sério e me ofereceu um doce.

– Para a pequena companheira da bruxa. – Ele falou enquanto me oferecia a guloseima açucarada.

Eu sorri e aceitei a pequena prenda, colocando-a inteira na boca e engolindo apressadamente.

– O senhor gostaria de me acompanhar até a taberna de meu pai?

– Não. – Ele respondeu cruzando os braços voltando a assumir sua postura carrancuda de sempre. – Você possui suas tarefas a cumprir. Eu possuo as minhas. Então seguiremos por caminhos diferentes.

– Mas minha cesta está pesada. – Isso era verdade, apesar de eu ser bem capaz de carregá-la sozinha, mas eu gostaria de conversar com o soldado veterano. – O senhor poderia me ajudar a carregá-la, por favor?

Ele bufou e reclamou, mas ainda assim tomou meu fardo de minhas mãos e se pôs a caminhar em direção a taberna sem ao menos me esperar.

Por todo o caminho eu fiz as mais variadas perguntas que ele respondia com poucas palavras ou evitava me oferecer uma resposta direta. Perguntei sobre o seu tempo no exercito, sobre suas vitórias e sobre as batalhas que testemunhou. Por vezes ele respondia, tentando constantemente ocultar o quanto sentia falta dos tempos que se passaram e do prestigio que perdeu durante o processo do envelhecimento.

Mas esses sentimentos eram nítidos em seu olhar cansado e o brilho da nostalgia sempre emergia a superfície enquanto ele pensava antes de responder.

Contei a ele sobre Haniyya e ele não me pareceu surpreso quando descrevi seus grilhões de ferro.

– É um antigo costume Rymeeno, dos nômades originários de países muito distantes. Diziam que antigamente os maridos cortavam os tendões do tornozelo das esposas que tentavam fugir... Não sei se esse ato bárbaro foi proibido ou não, mas esses grilhões devem ser remanescentes desses hábitos.

Por um momento imaginei Haniyya com os pés sangrentos e tornozelos lacerados. Em minha mente vi o tecido banco rompido no meio da carne brilhante e avermelhada.

Fiz uma careta de espanto. Não fazia sentido em minha mente um homem ser capaz de ferir a esse ponto a mulher que ama, de aleijá-la para garantir sua constante presença ao seu lado.

Eu podia ser jovem e inexperiente. Eu podia ainda desconhecer o real significado do ciúme e ser alheia ao mundo dos homens.

Mas aquilo me fazia querer gritar.

– Nunca vi nenhuma dessas esposas com os tendões cortados, nem mesmo na capital de Romae.

Otho comentou notando o meu desconforto e tentei mudar de assunto.

– Romae?

O soldado ergueu uma sobrancelha esbranquiçada e, pela primeira vez desde que eu o conheci, ele sorriu com certo divertimento.

– Desconhece o nome do país que conquistou o seu próprio, pequenina?

Dei de ombros.

– Sempre me falaram que era o “Império”. Então achava que esse era o nome.

– Sim... – Ele ponderou antes de continuar com a resposta, mas continuou com passos firmes pela calçada. – É de fato um Império.

Quando chegamos à taberna ele me devolveu a cesta e foi embora sem se despedir ou esperar algum agradecimento.

O salão estava cheio, as mesas ocupadas pelos mercadores estrangeiros que almoçavam tranquilamente enquanto conversavam entre si. Observei cada um deles com atenção, delineando com destreza os traços de cada um, seus olhos e mesmo a postura que adotavam.

Eu procurava reconhecer um mostro em algum deles, pois, para mim, uma criatura que se ache no direito de aleijar e confinar a mãe de seus filhos não deveria possuir um coração.

Mas não enxerguei nenhum monstro.


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Notas finais do capítulo

Hum... De novo estou parando na metade do capítulo. Na verdade em um quarto de capítulo, pois quando a metade estava pronta ficou tão extensa que tive que dividi-la novamente.
Céus, acho que se seguisse o planejamento de acontecimentos por capítulo cada um teria por volta de 10.000 palavras! Então vou me contentar com capítulos mais curtos e menos acontecimentos.