A Bruxa da Cidade das Brumas escrita por Libellule penseuse


Capítulo 5
A Arte da Curandeira


Notas iniciais do capítulo

A fic não foi abandonada, mas peço desculpas pela demora... Não só estive ocupada como esse capítulo foi bem difícil de sair. Eu o escrevi e reescrevi algumas vezes então me perdoem se não for uma leitura tão fluida como os outros capítulos. É um momento um tanto parado da história, mas necessário ainda assim.
Música recomendada para o capítulo: Das Tor, por Faun.



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Durante as semanas que se passaram estabeleci uma nova rotina. Ainda precisava ajudar nas tarefas de casa, ainda tinha aulas entediantes com a minha avó e também deveria estar de volta a minha casa ao por do Sol. Mas assim que as inúmeras tarefas enfim terminavam eu atravessava a cidade correndo, sempre atenta procurando um sinal do voo de alguma ave branca, ou de penas alvas sobre as pedras das ruas.

Não mais eu buscava a companhia de meus antigos companheiros. Amigos que cobraram de mim mais do que minha amizade, cobraram obediência a qual eu não estava disposta a ceder.

Eu passava as minhas tardes livres ao lado de Sirona, trabalhando em seu formoso jardim, repleto de flores cheirosas e ervas misteriosas. Preparávamos o solo remexendo a terra fofa e úmida, com cuidado deitamos as sementes em seu leito, algumas profundas e outras próximas da superfície. A bruxa revirava o solo de seu jardim com as mãos nuas, sujando suas unhas e os joelhos de lama sem se importar.

Alguns dias se passaram até que eu criasse coragem suficiente para iniciar uma conversa com ela. E mais alguns dias tiveram que passar até que Sirona começasse a me oferecer respostas e falar comigo.

A bruxa era sempre muito silenciosa apesar dos pios incessantes e barulhentos de suas pombas. Mas ela nunca me enxotou ou me evitou. Ainda era muito jovem para considerar que talvez minha presença fosse um incomodo, eu somente queria ficar ao lado do meu objeto de adoração.

Logo Sirona começou a responder algumas de minhas incessantes perguntas.

– Quantas primaveras você já passou?

– Quinze.

Parte de mim desejava que ela fosse mais jovem, pois quando se é tão pequena quanto eu era, quatro anos é o mesmo que uma eternidade.

– De onde você veio? Qual é sua cidade natal?

– Longe. Muito longe... – Ela respondia com o olhar vago enquanto colhia ramos de alecrim.

– É alguma cidade de Gaillah?

Ela hesitou por alguns segundos.

– É uma cidade de lugar nenhum.

Eu ficava confusa com suas respostas, não era capaz de compreendê-las. Mas ainda assim não parava de perguntar.

– E a sua família? Seus pais ainda estão na sua cidade?

Quando a bruxa se cansava de me responder ela somente suspirava e me ignorava, focando toda sua atenção em qualquer tarefa que encontrasse pela frente.

Aos poucos eu fui reparando e aprendendo a maneira que a bruxa cuidava de seu jardim.

Ela plantava arruda e louro em solo bem drenado, em áreas irradiadas pelo sol. Cavalinha no solo úmido e arenoso e artemísia a meia sombra. Plantava coentro ao lado do anis e longe da erva-doce enquanto espalhava mudas de cravo-de-defunto por todo herbário. Cultivava ervas de aparência estranha, as quais eu nunca antes vi em mercados ou jardins alheios.

– Qual o nome desta?

Eu perguntava apontando para uma planta rasteira de folhas pequenas e numerosas tingidas de verde escuro. Suas flores tinham um aspecto de cone avermelhado, que se abria repentinamente em pétalas delicadas e suaves, mas o que chamava atenção era seu fruto de aparência peculiar... Possuía um aspecto lenhoso, o corpo macio abrindo-se em várias ramificações recobertas por rebarbas pontiagudas, semelhantes a garras. Garras dignas de um monstro.

Sirona ajoelhou-se sobre a terra arenosa e contornou as pétalas avermelhadas delicadamente com a ponta dos dedos.

– De onde eu vim chamavam essa planta de “garra-do-diabo”. – Ela comentou contemplativa. – Pelo nome pode parecer que é uma planta venenosa, ou alguma que seja usada em rituais proibidos... Mas não é.

– Para quê ela serve?

A bruxa sorriu de maneira divertida, torcendo discretamente somente um canto dos lábios.

– Diga-me, a sua avó ainda reclama de dores nas juntas?

– Sim. – Balancei minha cabeça em sinal de afirmação. Minha avó estava sempre reclamando das dores, esfregando os pulsos e os joelhos, por vezes tendo até mesmo de parar no meio das tarefas mais simples em razão do incômodo.

– As dores são maiores pelas manhãs? Os movimentos dela são rígidos?

Repeti o sinal de afirmação um pouco intrigada. Tinha dias que as juntas da minha avó inchavam, discretamente vermelhas e com aspecto dolorido.

Sirona começou a escavar a terra por debaixo dos galhos rasteiros da garra-do-diabo, afundando seus dedos compridos e delicados no solo até encontrar as raízes da planta. Com uma pequena faca de lâmina curva ela separou um tubérculo bulboso e marrom, ainda um pouco pequeno.

Quando o Sol começou a se por eu fiz menção de voltar para casa, mas antes que eu partisse Sirona me entregou o tubérculo da garra-do-diabo, junto de um punhado de cascas secas de salgueiro-branco. A bruxa me instruiu a preparar uma infusão com o tubérculo e fazer minha avó beber da solução ainda quente a cada noite antes de se retirar para seus aposentos. Perguntei sobre a casca de salgueiro, ela respondeu prontamente.

– Para aliviar as dores nos dias mais frios. – Ela pegou um pequeno pedaço da casca seca e colocou na boca. – Masque e deixe debaixo da língua, sem engolir.

Cegamente segui suas instruções, da mesma maneira metódica que uma cozinheira inexperiente segue uma receita. Reparti o tubérculo lavado enquanto a água fervia na chaleira pendurada na lareira. Usei o próprio mel o qual a bruxa me presenteara semanas antes para adoçar o chá. Não saberia dizer se o gosto da erva era amargo ou forte, não cheguei a provar do líquido amarronzado e de cheiro estranho resultante da infusão.

Servi a solução para a minha avó, que sorveu todo conteúdo sem me perguntar antes o que seria, mas lambeu seus lábios rachados e murchos sem reclamar.

Demoraram algumas semanas até que ela sentisse os efeitos do tratamento. Suas dores ainda estavam presentes, ela movimentava os pulsos devagar e suas articulações reclamavam estalando alto. Mas diminuíram até tornarem-se suportáveis.

Não sei se foi resultado do alívio que tomou minha avó, ou se foi consequência do próprio tempo, mas silenciosamente ela consentiu e aprovou que eu passasse minhas tardes com Sirona. Por vezes quando eu voltava para casa no final da tarde a bruxa me entregava pequenos presentes, emulsões de arnica e folhas secas de freixo. Eu sabia, mesmo que ela não me falasse nada, que eram oferendas para minha avó, que os aceitava como se ambas possuíssem um acordo silencioso.

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Os habitantes de Moebe ainda observavam Sirona de longe, inseguros demais para se aproximarem daquela que chamavam de bruxa. Mas Sirona parecia indiferente diante da apreensão deles. Pelo contrário, a iniciativa de aproximação partiu da bruxa.

Ela sempre sabia quando alguém estava doente, mesmo que ninguém contasse a ela. Quem sabe suas pombas brancas fossem como mensageiras aladas, observando do alto todo o movimento da cidade para depois confinar seus segredos para sua dona. No recluso e segurança de sua cabana ela preparava seus remédios com ervas de seu jardim e da floresta... Ou talvez ela utilizasse algo a mais. Pois quem saberia que feitiços a bruxa utilizava-se em segredo?

Mas generosamente ela sempre oferecia a cura para quem necessitasse, sem pedir nada em troca. Nem todos aceitaram seus atos de boa fé tão facilmente como minha avó, somente os mais desesperados e que possuíam poucos recursos aos quais poderiam recorrer.

Frequentemente eu acompanhava minha companheira mais velha em suas andanças pela cidade. Eu sentia as palmas de minhas mãos pequeninas suando, mas me recusava a soltar a mão de Sirona.

Naquele dia quente a bruxa carregava consigo uma mistura seca de guaco, erva-doce, malva, alcaçuz e raiz de alteia que prepara um dia antes com minha ajuda.

Não perguntei aonde íamos, mas me surpreendi quando entramos na área de treinamento dos soldados. Moebe possuía poucos guardas, a maioria eram homens treinados enviados do Império, mas ainda encontravam-se alguns cidadãos de Gaillah servindo o Imperador estrangeiro.

Nenhum dos homens nos incomodou, apesar de observarem de longe, seus olhos carregados de suspeita e sempre atentos.

Ninguém ousou impedir nossa passagem.

Sirona seguiu suas pombas até a casa que utilizavam para guardar as armas e, quando nos aproximamos da pequena construção sólida e cinzenta, ouvimos o som de tosses violentas e úmidas.

Lá estava o guardião das armas, um velho soldado de pele morena e cabelos brancos. Apesar de sua pele possuir a coloração típica das pessoas que vêm do Império, ele parecia pálido, as bolsas debaixo dos olhos profundas e marcadas.

Otho o chamavam.

As histórias sobre aquele homem nunca deixaram de correr pelas ruas da cidade, apesar dele ser originário do Império todos em Moebe o conheciam. O antigo general filho de um assassino. O homem que, apesar de ter sido um guerreiro implacável quando mais jovem e um general imbatível, caiu na desgraça do esquecimento e empurrado para a simplória tarefa de guardar as armas.

– O que estão fazendo? – O velho reclamou rudemente entre uma tosse e outra. – Saiam já daqui!

Ele fez menção de nos enxotar, mas foi impedido por um acesso de tosse. Não sabia o que Sirona planejava, mas instintivamente me coloquei na sua frente como se pretendesse protegê-la de qualquer ameaça que surgisse.

A bruxa postou sua mão sobre o meu ombro e murmurou que estava tudo bem.

– Vim oferecer minha ajuda. – Ela murmurou baixo, mas confiante.

– Não preciso de sua ajuda! – O velho franziu o nariz em uma careta. – Agora saiam daqui e me deixem em paz!

Sirona nem piscou enquanto o homem gritava diante dela, a bruxa calmamente pegou minha mão e deixou o saco com a mistura de ervas no chão ao lado da porta. Delicadamente ela me puxou para que eu a acompanhasse para fora da cabana de armas, mas não pude deixar de olhar para trás.

O velho soldado respirava com dificuldade, como se estivesse se forçando a não tossir. Mas seu olhar era semelhante à de um animal amuado, carregado de orgulho ferido e amargura. Por um tempo ele observou o saco caído, como se estivesse se perguntando o que deveria fazer com aquilo, mas quando achou que ninguém o observava ele tomou a oferenda em suas mãos e a escondeu em suas vestimentas.

Rapidamente eu desviei o olhar e reparei que Sirona estava sorrindo.

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Alguns dias se passaram até que visitássemos o centro da cidade novamente. Em um dia de sol Sirona me levou consigo para o mercado e lá encontramos Otho. O velho do Império tinha adquirido uma aparência mais saudável, sua pele estava com uma coloração mais rosada e os olhos menos fundos. Já não tossia com a mesma violência do que antes e sua respiração apresentava-se mais compassada.

Nenhuma palavra foi trocada entre ele e a bruxa. Mas enquanto nos encarava com seus olhos escuros o antigo guerreiro abaixou sua cabeça em um cumprimento silencioso. Sirona sorriu e retribuiu o cumprimento, a garota sabia o quanto era difícil para um homem abrir mão de seu orgulho quando este era tudo o que lhe restava.

– Por que você o ajudou mesmo que ele sendo tão malvado com você? – Perguntei.

Mas a bruxa deu de ombros.

– Uma pomba me pediu para curá-lo. Ela me contou que o favor seria retribuído e que eu precisaria dele. – Sirona acariciou uma pomba que pousou em seu ombro. – Ademais... Não é certo negar ajuda a alguém doente.

Eu assenti, já tendo ouvido conselhos semelhantes de minha avó.

Antes que pudéssemos voltar para a cabana da Ala Sul uma comoção surgiu na entrada de Moebe. As pessoas gritavam e corriam animadas em direção ao grande portão principal, mães carregando seus filhos e os idosos acompanhados de seus cuidadores.

– Caravanas! São caravanas!

– Os mercadores chegaram!

– Uma festa! Preparem os banquetes!

Os moradores de Moebe gritavam animados com a visita inesperada e corriam para dar boas-vindas aos visitantes.

Eu queria correr também em direção ao portão, mas a mão de Sirona apertou a minha com força e impediu que eu a deixasse. Confusa eu me virei para observá-la.

Pela primeira vez desde que eu a encontrei a bruxa parecia assustada. Seus olhos, azul e âmbar, estavam arregalados e seus lábios carnudos formavam uma linha tensa e pálida.

Algumas penas brancas caíram do céu a nossa volta enquanto as aves piavam inquietas. As pessoas que corriam pela rua estavam muito distraídas em sua animação para reparar no comportamento estranho das pombas, elas continuavam a gritar com animação excessiva, imersas em suas próprias preocupações.

Foi então que uma pomba caiu morta sobre o calçado em um estalo alto e seco. Suas asas e pescoço dobrados em ângulos anormais enquanto o pequeno animal tremia imerso em espasmos involuntários.

No tempo de um suspiro Sirona soltou a minha mão e recolheu a pomba quebrada do chão. Desesperada ela levou o animal morto junto ao peito. Seu olhar era o mesmo de um filhote indefeso e assustado e sua respiração começou a tornar-se ofegante.

Sem me esperar ou se explicar a bruxa saiu correndo para longe mim.


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Notas finais do capítulo

Não vou fazer uma nota final imensa descrevendo a função de cada planta e seus efeitos colaterais, pois ninguém vai querer perder tanto tempo lendo minhas anotações amadoras sobre fitoterapia.
Prometo não demorar tanto com os próximos capítulos! =)



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