A Bruxa da Cidade das Brumas escrita por Libellule penseuse


Capítulo 4
O Nome da Bruxa


Notas iniciais do capítulo

É bem difícil ficar sem acesso de internet na vida.

Música recomendada para o capítulo: Atonement por Austin Wintory, parte da trilha sonora de um jogo chamado Jouney. Eu nunca joguei, mas a trilha sonora é bem interessante.



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Meu castigo por ter aceitado o pote de mel oferecido pela Bruxa não tardou a chegar.

Não veio de meu pai, que pouco se importou com o presente. Não foi da minha avó, que sorriu satisfeita diante do ingrediente doce e rico que usaria para encorpar seus chás.

Meu carrasco foi ninguém mais do que meu amigo.

Dyston resolveu me punir. De acordo com o filho mais velho do padeiro, ele era o líder de nosso pequeno grupo, assim sendo suas ordens eram absolutas. O fato de eu ter dado um passo adiante perante sua hesitação foi traduzido como insubordinação pelos seus olhos infantis.

Estávamos amontoados no beco atrás da padaria e o perfume de pão fresco exalado pelos fornos nunca me pareceu tão ameaçador. Dyston mandou que eu me sentasse sobre uma caixa de madeixa vazia, ele sempre fora um garoto grande para a idade, mas parecia muito maior naquele momento enquanto me encarava com um ar de superioridade mantendo seus braços cruzados.

– Você tem que provar sua lealdade se quiser continuar a ser nossa amiga!

Nosso autoproclamado líder declarou. Engar estava parado ao lado do irmão, calado e sério, me perguntava o que o mais jovem achava da situação... Provavelmente ele não se importava, ele faria tudo o Dyston pedisse. Briehl roía as unhas, como sempre fazia quando estava nervoso, meu amigo mirrado parecia apreensivo e a sua vontade de sair correndo estava estampada em sua face. Mas Briehl tinha medo de Dyston, por isso não iria para nenhum lugar.

Eu não respondi nada nem baixei o olhar. Não me assustava com desafios, mas quando Dyston continuou falando para proclamar meu desafio eu senti meu coração parar.

– Traga para mim uma pomba branca.

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A casa da bruxa ficava no extremo da Ala Sul de Moebe, próxima aos portões que levavam para os apiários e para os campos de lavanda. Era uma casa pequena, maltratada pelo tempo e pela negligência. Por muitos anos a singela construção se manteve vazia após a morte de seu antigo dono em razão de um ataque de um enxame de abelhas perdido.

O grande estábulo estava caindo aos pedaços, a luz entrava na construção pelas falhas do telhado, iluminando diversos ninhos recém construídos e cobertos de penas. O cheiro forte do esterco das pombas invadiu minhas narinas, eu estava acostumada a cheiros fortes, mas esses consistiam no aroma embriagante da lavanda... Contive minha vontade de tapar o nariz. O som de asas e o canto das aves me revelaram que a Bruxa não deveria estar longe então decidi que seria rápida. Pegaria uma ave e a levaria para Dyston, mas a soltaria na primeira oportunidade.

Subi nas caixas abandonadas e escalei as vigas quebradiças. A cada passo que eu dava a madeira rangia e as aves voavam para longe de mim. Tirei meu avental e tentei usá-lo como uma rede para capturar uma pomba, mas minha falta de experiência e pressa me tornava uma caçadora atrapalhada. Faltava-me a agilidade do gato e a destreza da coruja. As pombas pulavam de viga em viga, seus pios graves zombando de minhas tentativas inúteis de capturá-las.

Cansada e frustrada eu desci das vigas.

– O que você está fazendo?

Meu coração acelerou.

A Bruxa estava parada na entrada do estábulo, sua saia amarrada no alto de suas coxas, expondo seus joelhos sujos de terra, seus cabelos estavam presos numa trança firme que passava sua cintura. Ela não parecia brava por eu ter invadido sua propriedade e incomodado seus animais... Não! Ela continuava envolta em sua serenidade, mas pensei ter visto também uma sombra de curiosidade passar pelos seus olhos.

Eu queria fugir, mas minhas pernas não me obedeciam, silenciosamente eu me amaldiçoava... Pois essa era a primeira vez que a Bruxa falava comigo e eu estava tentando roubar um de seus animais após ter recebido um presente seu.

Uma ave gorda voou até a Bruxa e pousou em seu ombro. A garota aninhou a ave delicadamente enquanto o animal piava em seu ouvido, ela fechava seus olhos desiguais e acariciava as penas da pomba que lhe revelava animadamente os meus segredos.

Ainda com os olhos fechados a Bruxa caminhou em minha direção.

– Você quer uma das minhas pombas... – Ela abriu seus olhos quando se rosto estava a palmos de distancia do meu próprio. – Mas por quê?

Ela virava delicadamente seu rosto para o lado enquanto me perguntava. Não queria responder, mas também não era capaz de desviar o olhar. Seus olhos pareciam revirar todo meu ser e tentavam ler minha mente. Engoli seco e procurei minha voz.

– Eu preciso dela... – Respondi após um momento de hesitação.

Os olhos da Bruxa se encheram de tristeza e melancolia.

– Você tem certeza?

Sua voz era baixa, mas firme, eu assenti. Ela fechou os olhos como se sentisse dor e se afastou. Ergueu uma mão no ar, chamando suas aves e uma pomba voou em direção ao seu abraço. Pontas de dedos finos e delicados corriam suavemente sobre as penas até que em um movimento brusco a Bruxa destroncou o pescoço da pomba.

Dei um pulo assustada, mas não fugi. Ao invés disso observei as lágrimas roliças que escorriam pela face da garota enquanto ela beijava a ave morta.

Ainda chorando a Bruxa me presenteou uma segunda oferenda.

– Mas por quê? – Minha voz tremia hesitante.

A Bruxa colocou uma mão sobre seu coração e depois levou a mesma mão sobre o meu, que respondeu palpitando sob seu toque.

– Por que ela iria morrer de coração partido no momento que você a levasse... Assim ela não sofreu, pois partiu para o Mundo do Outro Lado junto de quem amava.

Com essas palavras a Bruxa depositou a ave morta sobre minhas mãos e saiu do estábulo. Eu olhava para a sua cabeça pendendo em um ângulo anormal e me sentia culpada pela sua morte.

.

.

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Levei a ave para Dyston, mas ele não teve coragem de tocar naquele animal morto, nenhum dos meus amigos teve. Todos me olhavam assustados, não esperavam que eu trouxesse um animal desprovido de vida, uma criatura que já não lhes servia mais para nada.

Mas a tarefa havia sido cumprida e de acordo com Dyston eu estava perdoada pela minha insubordinação. A carcaça vazia da ave em minhas mãos foi rapidamente esquecida e ignorada...

Eu senti raiva.

A vida daquela ave inocente valia a companhia daqueles garotos?

Naquele momento eu tomei uma decisão que mudaria toda minha vida. Eu não seria a subordinada de ninguém. Não abaixaria minha cabeça para Dyston, para nenhum governante ou mesmo para algum imperador.

Eu decidiria o meu próprio caminho.

Não obedeceria a ordens vazias de terceiros... Não tomaria ideais alheios como meus. Eu traçaria meu caminho.

Sentiria falta deles... De Briehl principalmente, com suas manias nervosas e seu amor por cavalos. Mas não deixaria que mandassem em mim... Não mais.

Caminhei sozinha até a praça, o corpo da ave esfriando e endurecendo em minhas mãos e o peso de sua morte recaiu sobre meus ombros jovens. Com meus singelos onze anos eu não conhecia nada sobre a morte. Eu sabia que minha mãe estava morta, mas nunca cheguei a conhecê-la, a tocar em seus cabelos, ou sentir sua pele pálida esfriando sob as pontas de meus dedos.

Eu comecei a chorar.

Percebi que o sol se punha quando a luz amarelada se refletiu sobre as pedras da rua, logo teria que voltar para minha casa. Mas não tinha vontade de me levantar.

Uma sobra se projetou sobre meu corpo e quando me virei encontrei a Bruxa me observando.

– Por que chora? – Ela se agachou ao meu lado.

– Ela morreu e é minha culpa... – Minhas lágrimas escorriam, mas minha voz se mantinha controlada. – Eu achava que precisava dela. Mas o motivo não valia sua vida... E agora ela se foi.

A Bruxa continuou me observando com uma expressão séria, ela tomou a carcaça da ave morta de minhas mãos e tirou um punhal que estava amarrado em sua cintura. Com destreza ela abriu a pele do peito da ave, expondo sua musculatura rosada. Ela se levantou e levou o corpo da ave aberto para uma cadela de rua, um animal magro, com o pelo arrepiado e as tetas inchadas.

Secando minhas lágrimas eu segui a Bruxa. Observei com curiosidade a cadela prender o corpo da ave morta com seus dentes e levar a carcaça para longe.

– A morte não é o fim do ciclo. – A Bruxa começou a falar acompanhando a cadela com seus olhos atentos. – Não existe um fim definido, ninguém sabe onde o começo se esconde... Mas a morte daquela pomba não foi em vão. Ela agora é o alimento que nutre outra vida. E aquela cadela usará esse alimento para produzir o leite que sustenta seus filhotes. – Nesse momento a garota das pombas olhou para mim. – Você pode não ter necessitado daquela ave... Mas aquela cadela necessitava e por isso sua morte não foi em vão.

De longe eu podia ver a cadela mergulhando seu focinho ressecado dentro das vísceras coloridas da pomba, o movimento de sua mandíbula quando ela arrancava e engolia pequenos nacos de carne. O brilho de satisfação em seus olhos diminuiu a dor em meu coração.

Olhei para a Bruxa que sorria em minha direção. Ela era tão bela... Eu queria ser como suas pombas, voaria sempre para seus abraços. Mesmo que um dia um de seus abraços se tornasse minha última lembrança deste mundo...

– Qual é o seu nome?

Perguntei novamente e ela continuou sorrindo.

– Sirona.


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