A Bruxa da Cidade das Brumas escrita por Libellule penseuse


Capítulo 2
A Cidade de Moebe


Notas iniciais do capítulo

Música recomendada para o capítulo: Celtic Lore por Adrien Von Ziegler.



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Eu nasci na cidade de Moebe, no mês em que os campos encontravam-se cobertos de lavanda e flores selvagens. Nesses dias mais quentes e úmidos o ar fica carregado pelo perfume exalado pela flora, um aroma tão forte e enjoativo que aqueles pouco acostumados ficam com dor de cabeça pelo excesso de estimulação. Mas não eu. Eu nasci embalada por esses perfumes, eles se tornaram minha cantiga de ninar secreta e me carregavam para uma terra de sonhos doces e lúcidos.

A minha cidade não é considerada pequena, ao menos não no padrão das cidades do país de Gaillah, mas talvez minúscula para os padrões do Império, onde tudo é grandioso e os palácios adequados para hospedar gigantes.

O coração de Moebe é envolvido por um muro de pedras cinzentas e em seu centro se encontra o Palácio Azul. Não é uma construção grande ou imponente como os Palácios da Capital ou de outras cidades maiores de Gaillah. A construção pode até ser considerada precária por aqueles que conhecem arquitetura fina, e decadente, por conta dos longos anos de negligencia. Mas para nós, simples moradores de Moebe, que nunca conhecemos nada melhor, o Palácio Azul era uma fortaleza que irradiava poder de uma nobreza que não mais existia no Império. Lá residiam o Chefe da Vila, governante enviado da Capital para manter tudo dentro da ordem, seguindo as leis ditadas pelo Imperador, e alguns poucos soldados, lembrando-nos que não éramos senhores de nossas próprias terras.

Apesar da presença desses soldados, Moebe não necessitava de nenhum exercito. Exilada pelo mar, montanhas e uma floresta tão densa que os homens chegam a temer, estrategicamente era uma cidade protegida pelos elementos naturais à sua volta. Não temíamos nem mesmo um ataque de alguma marinha inimiga, ou mesmo de eventuais pilhagens piratas, pois o mar que a cercava possuía águas traiçoeiras. Águas conhecidas por arrastarem os mais impetuosos navios para o fundo do mar e superarem os mais experientes marinheiros. Lendas e mitos ditam que aquelas águas são o domínio de monstros, criaturas gigantes e maliciosas a muito tempo vivas e que não faziam parte do mundo humano. Eu nunca vi nada além de baleias e gaivotas.


As ruas não são de terra batida, mas das mesmas pedras que cobrem os pátios da Capital. Elas são tão largas que as carroças não apresentam dificuldade transitar por entre as estruturas que foram o esqueleto de Moebe. As casas não são grandes, nem numerosas, são construções sólidas de madeira com telhado coberto de palha seca quando mais simples. Os vidros nas janelas sempre apresentam um toque de azul, típico dos mestres vidreiros de Moebe, e frequentemente apresentavam desenhos representando um ramo de lavanda.

Mas nosso isolamento era como uma faca de dois gumes. Pois, assim como nos encontrávamos protegidos de quaisquer invasões, também apresentávamos dificuldades em receber provisões e viajantes. A necessidade moldou nossa cidade durante duros anos de inverno. Fomos forçados a produzir tudo aquilo o que precisávamos, pois esses recursos são o sinônimo de sobrevivência quando a terra está coberta de gelo ao mesmo tempo em que as carroças carregadas de cereais oriundos de cidades vizinhas não são capazes de suprir nossas necessidades. Hoje Moebe é capaz de se apoiar em suas próprias fundações e seus moradores não passam necessidade mesmo no mais vigoroso dos invernos.

Mas artigos de luxo, produzidos pela Capital e outras cidades distantes eram extremamente raros. Eventualmente uma caravana corajosa se aventurava pelas nossas terras, vendendo seus produtos tão avidamente procurados. Sempre partem enriquecidos, suas bolsas mais pesadas com nosso ouro e nossa prata, mas também levavam consigo nosso mel de lavanda, vidraria, cataplasmas e poções como produtos locais.

Notícias vindas da Capital chegavam pelas aves mensageiras, informações que eram mais pesadas do que pepitas de ouro e segredos mantidos a sete chaves que pertenciam ao nosso Governante do Império.

Eu não ligava para as notícias do mundo de fora, não sentia que necessitava delas na verdade... Meu pai, como dono da maior taverna da cidade, possuía uma posição privilegiada em seu conhecimento dos rumores circulantes. A língua do homem se solta quando bem banhada de vinho e hidromel, e ninguém presta atenção nas informações que escapam e se aventuram até caírem em ouvidos sóbrios.

Meu pai me ensinou a ouvir e estar atenta. A parecer estar ocupada em outras tarefas e a passar despercebida quando na verdade é a grande presença dominante do local. Eu queria correr pelos campos de lavanda, passar minhas tardes nadando em rios ou mesmo no mar, eu não era uma filha exemplar.

Com onze anos de idade as meninas da minha cidade já começavam a ser treinadas para desempenhar seu papel em nossa sociedade, o de esposa e mãe. Qualquer outra atividade exercida por essas mulheres era considerada algo secundário, fossem elas lavadeiras ou mestras apiárias. Minha avó tentou me transformar em uma dessas inocentes donzelas, mas a idade avançada tinha podado sua paciência e as dores em sua coluna esgotavam sua energia. Ela culpava o meu pai pela ausência de outra influencia feminina na casa, após a morte de minha mãe ele nunca voltou a se casar e, com uma taverna para administrar, ele não tinha tempo para me criar.

Apesar da ausência de uma figura materna minha infância foi repleta de pequenas felicidades e eu a considerava perfeita. Talvez por que nunca tivesse conhecido nada melhor, mas eu estava satisfeita.

Minha avó era considerada uma mulher instruída por ser capaz de ler e escrever e ela tentou passar esses conhecimentos para mim. Tenho que confessar que não fui a melhor das alunas e minha avó nunca foi muito insistente, mas conhecia de nossa língua o suficiente para escrever meu nome e algumas frases mais simples. Minhas tardes eram preenchidas por uma doce liberdade. Eu seguia por onde quisesse e fazia o que bem entendesse, o que pode não ser a escolha mais adequada para uma criança. Minha atividade preferida era explorar as redondezas da cidade, além dos apiários e dos campos de lavanda.

Foi durante uma de minhas explorações que avistei a primeira pomba.

Nunca havia encontrado nenhuma ave tão branca como aquela, mesmo as gaivotas que voam sobre o mar possuem as asas acinzentadas. Antes eu não havia dado muita atenção àquele animal, até que reparei outras aves semelhantes à primeira. Julguei que formassem um bando, mas nenhum bando de aves seguia um padrão de voo como aquele. As pombas não seguiam um percurso, mas rodeavam uma única área. Às vezes uma ave mais corajosa se afastava, somente para voltar para o mesmo ponto das outras. No começo achei que estavam paradas, rodeando uma carcaça da mesma maneira que aves carniceiras, mas não... Elas se moviam, aproximando-se da cidade vagarosamente, sempre em círculos.

Eu ainda não sabia que elas estavam acompanhando a Bruxa.

Eu avistei suas aves alguns dias antes de ver sua imagem caminhando pelo terreno cheio de pedregulhos pelo vale ao norte de Moebe.

Todos os dias eu ia observar as aves até que a imagem de um viajante que seguia a trilha para Moebe de maneira solitária surgiu. Depois de algumas horas aqueles animais exóticos atraíram atenção de outros moradores da vila que vieram observar quem chegava.

Rapidamente os rumores se formaram.

– Era o sobrevivente de um ataque! Devem ter queimado a cidade vizinha! - Um dizia.

– Não seja tolo! Teríamos avistado um sinal de fumaça pelo menos...

– É um encantador de animais!

– Como assim?

– Como mais explicar aquelas aves?

– Realmente...

Eu não dava ouvidos a nada, pois minha avó cuspiu na rua quando ouviu tais rumores.

Mas todos se silenciaram quando o viajante chegou até os portões da cidade e se revelou nada mais e nada menos do que uma garota. Ninguém barrou sua entrada, como poderiam? Ela usava nada mais do que um simples vestido branco e gasto, seus cabelos soltos lhe caíam até a cintura, mesmo na ausência de qualquer adorno além de uma gargantilha cheia de pingentes prateados, ela era a criatura mais bela que eu já tinha visto em minha vida. Comentaram na pouca bagagem que ela carregava e na ausência de sandálias, mas o que mais chocou os moradores foram seus olhos. Um tão azul quando o céu límpido, outro âmbar, como a seiva fresca de uma árvore velha.

As pessoas se afastavam dela, acreditando terem se deparado com um fantasma do Mundo do Outro Lado, mas eu me recusava a acreditar que ela era apenas uma sombra de um ser que já partiu dessa vida. Em minha inocência de criança eu acreditava que ela estava viva simplesmente pelo fato de que ela me pertenceria um dia, e eu ainda estava viva. Pois aquela criatura nunca poderia ser verdadeiramente minha se já não fizesse parte desse mundo. Minha avó sussurrou em meu ouvido que ela deveria ser uma fada do povo da floresta.

Era fácil acreditar que a menina que caminhava descalça pela cidade era um membro do Povo Antigo. Não era somente pela sua beleza, quase etérea, ou pela sua maneira de andar com uma leveza graciosa. Mas pelas suas pombas. Aquelas aves brancas e pomposas que a rodeavam, como abelhas circulando uma flor cheia de néctar, elas eram as culpadas por tamanho estranhamento. As pombas não são animais dessa parte do continente, muitos em nossa vila nunca viram tais criaturas antes da chegada da Bruxa. Atraídos pela beleza das ondas de seus cabelos negros, ou pela peculiaridade de seus olhos de cores desiguais, ninguém mais viu que seus pés descalços sangravam após sua jornada pelo terreno montanhoso. Ninguém mais reparou nas pegadas avermelhadas que ela deixava nas pedras da rua, que logo eram cobertas de penas brancas.

Vendo aquele rastro eu tive certeza que ela era humana.


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