A Bruxa da Cidade das Brumas escrita por Libellule penseuse


Capítulo 13
Um Túmulo à Beira do Mar


Notas iniciais do capítulo

Capítulo dedicado à leitora Muller (obrigada por me lembrar que eu já estava demorando demais para sentar e escrever) e a minha pentelha filha adotiva (que eu não tenho realmente idade para adotar, mas que ainda assim não deixou de me cobrar alguma atualização).
=)

Música recomendada para o capítulo: France 1184 e também Marry Sibylla ambas da trilha sonora do filme Kingdom of Heaven, por Harry Gregson-Willians.



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– Endireite a sua coluna! Jogue o peso da arma para seus calcanhares! – A voz rouca e grave do meu professor reverberava pelas paredes de pedra do arsenal apertado, eu temia me desequilibrar e derrubar todas as armas guardadas e organizadas metodicamente pelo cômodo. - É assim que você espera manejar uma alabarda? Há! Ridículo!

Eu suspirei ignorando o tremor dolorido dos meus braços fatigados, meus músculos se contraindo em pequenos e curtos espasmos involuntários em razão do esforço. A lança que eu maneja era pesada, grande e desengonçada em minhas pequenas mãos calejadas. Toda vez que eu a levantava o peso do meu corpo pendia para trás ou para frente como uma dança bêbada e confusa... E uma insegurança irritante e inoportuna tomava conta de mim. No começo todas as armas eram desconfortáveis ao toque, seu peso estranho e manejo desconfortável. Intermináveis horas de treino eram necessárias até que o instrumento de madeira e metal se tornasse como uma extensão do próprio braço, uma parte de seu próprio corpo além da prisão de carne e sangue.

Otho sempre dizia que eu tinha que conquistar a arma que carregava. Era meu dever como soldado provar a ela meu valor e trata-la com respeito até que ela estivesse confortável para me emprestar seu poder... Ele explicava com a voz carregada de um carinho que lhe era pouco comum, como se a espada e a adaga fossem celestiais donzelas as quais ele cortejava amavelmente com devoção. Eu seguia seu exemplo e, aos poucos, o metal frio e mortal das lâminas que manejava deixou para trás sua aparência dura e ameaçadora, adquirindo um ar delicado e até artístico...

Mas não a lança.

Nenhuma outra arma era tão desconfortável quanto a lança. Mesmo a menor delas era muito comprida e desengonçada para mim... Foram construídas para homens adultos. Mas era a arma mais próxima de uma alabarda que Otho permitia que eu carregasse. A alabarda que eu insistia teimosamente em manejar, mesmo Otho afirmando que era muito cedo em meu treino.

Não somente a escolha da arma me era estranha, mas eu não era capaz de me concentrar no treino... Meus terrores noturnos ainda muito vívidos em minha mente para que meus movimentos fossem precisos. Eu estava cansada dos pesadelos. Eu estava exausta de sonhar com a morte toda vez que as sombras do anjo mórbido entravam no meu campo de visão.

Tentei virar a lança, imitando um movimento que vira Otho realizar momentos antes, mas me desequilibrei novamente, batendo a ponta da arma comprida em uma espada na parede e fazendo-a cair no chão.

O som agudo e metálico do instrumento gritando machucou meus ouvidos.

Otho bufou e tomou a lança de minhas mãos. Ele não estava bravo... Pelo menos não mais bravo do que de costume.

– Não lute contra a sua arma. – Ele comentou secamente, alisando a madeira velha e gasta da longa empunhadura. – Lute com ela.

Torci meu nariz, deixando minha irritação aflorar. Eu estava dolorida e cansada.

– De que adianta? – Respondi sem me importar de estar sendo grossa e ríspida com meu professor. – Eu sou fraca! Não importa o quanto eu treine ou o quanto me esforce! Nunca vou ser tão forte quanto você ou qualquer outro homem...

Minha visão começava a ficar embaçada e senti vergonha dos meus olhos marejados com lágrimas que eu recusava deixar cair. Baixei minha cabeça para encarar o chão preferindo manter minha visão longe do olhar de reprovação de Otho.

Geralmente meu velho instrutor simplesmente gritava comigo, afirmando com vigor sobre meu talento para ser dramática e que eu deveria tentar minha sorte nos gloriosos teatros luxuriantes da Capital ao invés de fazê-lo perder seu tempo.

Para minha surpresa ele começou a equilibrar a lança com uma única mão, balançando a arma de um lado para o outro com uma disposição quase infantil e divertida.

– Está enganada se acredita que força é tudo que basta para dominar uma arma. – Sua voz era sóbria e séria, despida de qualquer irritação, o que soou estranho aos meus ouvidos tão acostumados com suas críticas amargas. – De nada adianta ter força se quem a empunha não tem destreza. – Ele começou a girar a arma sobre seu próprio eixo com facilidade, pontuando cada palavra com um movimento preciso. – Destreza. Agilidade. Habilidade. Inteligência. E sutileza.

Cada vez mais rápido ele girava a lança, passando-a de uma mão para outra. Pela frente de seu torso. Pelas costas. A arma cantava, o som de sua voz semelhante ao ruflar das asas das pombas... Girava e girava, sem nem ao menos esbarrar nos equipamentos que o rodeavam. Até que meu professor empunhasse a arma que girava com força e direcionasse um golpe certeiro para o espaço vazio ao meu lado.

Pulei com o susto do ataque repentino e minhas mãos involuntariamente tamparam meu rosto tentando oferecer alguma proteção.

Otho esperou que eu me recuperasse do susto antes de jogar a lança em minha direção com a mesma expressão impassível que sempre usava.

– Ache o ponto de equilíbrio da arma. Mantenha a coluna ereta e jogue todo seu peso para os calcanhares.

Balancei minha cabeça em um sinal de afirmação enquanto lutava contra meus pulmões para manter minha respiração estável. Meu professor se virou e começou a caminhar para fora do arsenal, dando a aula de hoje como terminada e pronto para voltar para seus outros afazeres.

Mas eu não estava pronta para deixa-lo partir...

– Otho!

Ele se virou e me encarou. Não gostava quando o chamava pelo primeiro nome.

– O quê você quer agora?

– Eu... Eu...

Ele bufou perante minha hesitação, mas não era fácil expor algumas feridas... Feridas que nunca cicatrizaram.

– Não tenho tempo para brincadeiras, Brianna! Eu te-

– O que aconteceu na noite do festival?! – Eu gritei surpreendendo-me com o som de minha própria voz. Era a pergunta que nunca tinha me permitido fazer. Nunca ousei reviver memórias que deveriam permanecer esquecidas.

Mas eu precisava saber.

– Como você nos encontrou naquela noite? Como...

As lágrimas começaram a escapar de sua prisão e tentei secá-las antes que caíssem de meu rosto. Meu peito parecendo explodir com toda dor contida, mas fui capaz de afogar os soluços antes que emergissem pela minha garganta. Otho suspirou e abaixou sua cabeça, os raios de sol refletiam em seus cabelos brancos e ele voltou a parecer um velho curvado pelo peso dos anos.

– Ah... – Ele suspirou pensativo. – É o segundo verão... O dia em que o segundo ciclo se completa e termina... É hoje.

Dois anos. Meu corpo estremeceu... Não só pelo cansaço físico, mas também pelo cansaço de minha mente.

– Foram aquelas malditas pombas... – Ele começou a murmurar, com a voz baixa e parecendo confuso, como se o próprio soldado tivesse tentado esquecer. – Apareceram do nada no meio da noite... Piando incansavelmente até eu sair da cama e gritar com elas. Mas só piorou... Elas entraram pela janela. Começaram a voar a minha volta, mergulhando e puxando minhas roupas... Malditas! – Ele começou a coçar a barba por fazer sobre a pele dourada e fina. – Sem pensar muito eu as segui... E o resto você já sabe.

Então ele foi embora e me deixou chorar... Derrubando em lágrimas toda a frustração, angustia e tristeza que guardei dentro de mim por dois anos.

.

.

.

Não deveria ter perguntado.

Já era difícil tentar ignorar as memórias... Difícil ignorar os pesadelos que me assombravam na calada da noite, quando nenhuma outra alma estava acordada. Sirona me entregava ramos de alecrim para colocar debaixo do travesseiro e, por algum tempo, meus sonhos foram um pouco mais doces. Mas meus fantasmas sempre encontravam o caminho de volta para minha mente perturbando as horas destinadas a descanso.

Eu adormeci no arsenal. Sentada no chão e apoiada contra a parede de pedra fria enquanto abraçava o cabo da lança.

O sol ainda estava alto, mas eu sabia que a manha já a muito passara, que o desjejum já fora esquecido e os pratos e talheres lavados. Eu não me importava com o tempo ou com os outros afazeres do dia e desejava, do fundo de minha alma, permanecer afastada de tudo dentro daquele arsenal poeirento e esquecido...

Mas fui despertada pelo som de asas de pombas.

Ao abrir meus olhos, dormentes e hesitantes, tudo o que encontrei foram pés descalços. Pés pequenos, delicados e sujos que eu conhecia muito bem...

Não ergui meu olhar, mas ainda assim Sirona entrou em meu campo de visão, ajoelhando-se diante de mim enquanto cantarolada alguma canção de sereia para suas pombas. Ela sorria... Aquele seu sorriso misterioso como se soubesse de todos os segredos do mundo, enquanto embalava Shams em seus braços.

O garoto moreno já estava muito grande para ser carregado, apesar de ainda ser tão jovem. Seus cabelos escuros formando mechas cacheadas caiam sobre seus olhos negros e seu sorriso infantil e inocente era muito diferente do sorriso de sua mãe adotiva.

Sirona delicadamente acariciou meu rosto, colocando uma mecha do meu cabelo atrás de minha orelha.

Eu queria ficar brava com ela, mas não conseguia...

– Venha comigo. – Ela falou interrompendo sua própria canção. – É o aniversário de Shams e quero te mostrar um lugar.

Shams deu uma risada de criança e estendeu seu braço em minha direção, tentando acariciar meu rosto da mesma maneira que a bruxa fazia. Eu balancei minha cabeça e engoli seco, minha garganta ressecada e dolorida pelas lágrimas que derramei.

– Para onde? – Perguntei com a voz rouca.

– Onde um segredo está guardado.

Ela continuou acariciando meus cabelos com um jeito maternal que me deixava sonolenta e confortável... Suspirando eu me levantei, deixando a lança para trás e ajudei Sirona a se levantar também, a bruxa arrumando seu filho adotivo nos braços antes de me guiar para fora do arsenal.

Shams e Sirona cantavam juntos, ignorando os olhares carregados de reprovação que as pessoas de Moebe lhe lançavam. Eu as encarava de volta, sustentando com ferocidade os olhares alheios até se desviarem intimidados.

– Bina! Bina! – Shams me chamava em um sorriso cheios de dentes de leite. – Canta com a gente! Bina!

Mas eu não sabia o que cantar e timidamente algumas meias notas escapavam de meus lábios. O suficiente para que Shams ficasse satisfeito.

Deixamos a cidade pelo portão Sul, desviando discretamente da estrada que levava em direção às praias de sal e caminhamos por horas subindo um morro e atravessando a vegetação rasteira. O som das gaivotas e das ondas se quebrando pela encosta se juntavam aos piados das pombas de Sirona em uma melodia dissonante. Não eram sons que combinavam... Mas pelo menos a brisa fresca vinda do oceano refrescava o calor incomodo do verão.

Sirona estava visivelmente cansada e ofegante e sugeri que parássemos para descansar, mas ela só sorriu.

– Chegamos... – Ela sussurrou quase sem fôlego e apontou para o final da colina que terminava em um abismo em direção ao mar aberto.

No final da colina se encontrava uma grande pedra, circundada por flores selvagens, velas apagadas semi-derretidas e potes de mel. O cheiro das flores e da espuma do mar eram inebriantes e eu caí de joelhos quando percebi que aquela pedra na verdade representava o marco de um túmulo.

Sirona colocou Shams sobre a grama que imediatamente saiu perseguindo uma borboleta.

– Esse... Esse é o túmulo dela?

Sirona se ajoelhou ao meu lado e fez um movimento com a cabeça em afirmação. Ficamos em silencio enquanto o vento açoitava nossos rostos... Enquanto Shams corria diante do túmulo da mãe que nunca conheceu no dia de comemoração do seu nascimento e da morte dela.

– Antes você não estava pronta para conhecer esse lugar. – Sirona começou a falar sem nunca afastar seus olhos atentos de Shams. – Carregava muita angustia dentro do peito e sua mente estava sempre enevoada por uma raiva imensa...

– E agora estou pronta? Agora não carrego mais nada disso? – Perguntei de maneira um tanto áspera e a bruxa me encarou com um meio sorriso.

– Não. Você ainda carrega angústia e raiva. – Ela respondeu para minha surpresa e eu só fiquei a encará-la confusa até que uma pomba pousasse em seu ombro e ela lhe acariciasse. – Mas você finalmente chorou e encarou os sentimentos que trancou com tanto cuidado dentro de você mesma. Você não está pronta para aceitar o que aconteceu ainda... Mas está pronta para começar a se abrir de novo e para entender que não está sozinha.

E dizendo isso ela jogou a pomba que estava aninhada em suas mãos para o alto, a ave levantando voo e se juntando às outras planando em círculos pelo céu sem nuvens.

– Por que aqui? Por que esse lugar?

A bruxa sorriu e tentou arrumar seus longos cabelos que o vento insistia em espalhar os fios negros e densos em todas direções possíveis.

– Por que ela nunca tinha visto o mar antes e ela ansiava por conhece-lo. – Sirona respondeu calmamente sorrindo até tomar minha mão nas suas, acariciando-a como fez com sua ave momentos antes. – Vou lhe contar uma estória... A estória de uma jovem que nasceu em uma terra coberta de areia e banhada pelo sol ardente. Uma jovem que você conheceu como Haniyya...


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Notas finais do capítulo

O próximo capítulo será como um capítulo extra. Será um pouco da estória de Haniyya... Depois vamos ter a Brianna começando a aceitar e superar seus traumas sem ficar se lamentando tanto! Já deu de angst pelo momento!
=)



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