A Bruxa da Cidade das Brumas escrita por Libellule penseuse


Capítulo 12
A Décima Terceira Primavera


Notas iniciais do capítulo

Voltei! A mudança para uma cidade diferente está devidamente terminada e finalmente parece que estou me assentando na nova rotina...

E damos início a uma nova saga da estória e uma nova fase da vida de Brianna! Talvez fiquem um pouco frustrados que ela ainda não seja uma adulta, mas essa fase intermediária é essencial!

Música recomendada para o capítulo: Secunda por Jeremy Soule and Julian Soule (Trilha sonora do jogo Skyrim).



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/435237/chapter/12

Ainda hoje minhas recordações da noite que se passou a morte de Haniyya e o nascimento de Shams permanecem confusas e enevoadas... Afastadas para algum canto longínquo e inóspito de minha mente enfraquecida. Memórias dolorosas as quais prefiro afogar em um esquecimento obscuro... Mas, por mais que eu tente, elas insistem em emergir na superfície dos meus sonhos na forma de retalhos desconexos e sangrentos.

Ter sido beijada pela morte sem deixar o mundo dos vivos deixou um marco, uma cicatriz, em minha alma. Eu sentia a presença de Azrael pelos cantos, próximos de moribundos, de doentes, ou de idosos cujo tempo na terra dos vivos se esgotava. Eu passei a ver as sombras tomando forma, os rastros de penas enegrecidas como uma noite sem estrelas.

E toda vez que me deparava com o Anjo da Morte parte das lembranças esquecidas voltavam para me atormentar...

O que eu me lembro com clareza foi de ser arrastada pelas ruelas da cidade adormecida, pronta para despertar junto do Sol nascente. Lembro-me de Sirona me puxando apressada, cantando sem parar para manter Shams encantado em um sono superficial, para manter seu choro estridente silenciado. Naquela noite ela bateu em várias portas, cobrando favores de algumas, oferecendo serviços em outras.

Uma dessas casas abriu suas portas, convidando-nos até a cozinha abafada e esfumaçada. No cômodo quente uma mãe ofegante do parto recente recuperava seu fôlego enquanto sua cria rosada se prendia ao seio cheio, mamando com vigor. Discussões e brigas se seguiram e, não sei como, Sirona convenceu a mulher a doar parte de seu primeiro leite para uma criança desconhecida.

As velhas senhoras de Moebe estão sempre a repetir para qualquer um com ouvidos dispostos, ou desavisados, de esteja de passagem: “criança de mãe com o peito seco raramente vinga”. O leite da vaca, da cabra e da égua podem até nutrir o corpo frágil do recém-nascido, mas não transmitem a força materna, essência necessária para afastar os corvos da morte da cria mirrada.

Sirona não precisava de que nenhuma velha sábia lhe orientasse.

Dias se seguiram e, por mais que a bruxa usasse todo o leite de sua cabra magrela e ossuda, ela seguia batendo de porta em porta incansavelmente, buscando novas mães e as persuadindo a dividir do escasso alimento reservado para suas crias com o órfão.

Shams vingou.

Sua pele enrugada foi aos poucos perdendo o tom róseo e adquirido a coloração parda e dourada, como se o próprio Sol tivesse o beijado.

Não sei qual feitiço Sirona realizou, caso chegou a usar alguma magia realmente, mas nunca ninguém ousou ligar o sumiço da esposa grávida com a bebê de pele parda que a bruxa agora criava.

Gostaria de poder dizer que o fato de Sirona ter adotado a criança, tomando-a sob a asa como sua própria cria, não afetou em nada nossa rotina. Mas essa seria uma enorme mentira... Como não ficar ressentida com atenção dividida da bruxa que eu amava? Sendo ainda jovem e tendo crescido como filha única eu tive que aprender a dividir a mulher que detinha minhas afeições com um novo ser. Um novo ser que chorava o tempo todo, que estava sempre agarrado em seu seio e que possuía os olhos escuros como a sombra do homem que ainda me assombrava.

À medida que Shams crescia minha raiva aumentava.

Era uma fúria incontrolável, cuja origem eu desconhecia, mas que tomava conta do meu ser e ditava minhas atitudes. E era uma fúria sem dono, direcionada a todos que me cercavam.

Eu me recusava a ajudar meu pai em sua taberna. Eu fugia das aulas de minha avó sem lhe oferecer explicação alguma. Eu me recusava a carregar Shams quando ele estendia seus braços gorduchos em minha direção.

Também me sentia culpada quando recontavam pelas ruas o conto sobre o encontro fatal de um dos mercadores das caravanas no ano da Deusa da Colheita, Yvla, com um grupo de lobos ferozes e perdidos. Encontraram restos de seu corpo devorado pelas feras lupinas vários dias após seu desaparecimento. Nunca encontraram os restos da esposa grávida, que a Grande Deusa lhe tenha.

Mas a verdade era muito mais macabra.

Aquela culpa silenciosa me devorava por dentro de tal forma que eu não sabia mais como lhe dar com ela. E, de alguma maneira, aquela raiva conseguia crescer ainda mais... Raiva que eu transformava em fogo em minhas seções de treino com Otho.

Dias após encontrarem os restos mortais do mercador, roídos e carcomidos, eu procurei o velho guerreiro na sala do arsenal e pedi de joelhos para que ele me treinasse, que me tomasse como sua pupila e me ensinasse a me defender... Pois já estava cansada de me sentir indefesa e ter medo. Cansada de não ter força o suficiente para defender quem eu amava.

Foram necessários cinco ciclos completos da lua até que ele concordasse. Gosto de imaginar que ele tenha visto uma fagulha de potencial em meus braços de graveto... Hoje suspeito que tenha sido o desespero em minha voz e minha reclusão que crescia a cada entardecer. De certa forma nossas seções de treino auxiliaram que eu mantivesse minha sanidade. Que eu não me perdesse dentro de meus próprios pesadelos toda vez que eu me deparava novamente com as sombras que me assombravam.

– Não reclame quando as seções se tornarem muito duras para você. – Ele franzia o cenho e comentava com escárnio. – Não lhe tratarei diferente só porque é uma garota.

Mas, apesar de todo o seu mal humor... Apesar de todos os gritos furiosos lançados contra minha pessoa e dos deboches que suportei... Apesar de tudo isso era impossível para Otho fingir que não estava satisfeito em se sentir útil e necessário mais uma vez. De novamente possuir alunos e seguidores... Por mais que a classe de alunos fosse representada somente por mim, uma garota que mal começara a crescer.

Não importava o quão massacrantes fossem os treinos, eu não reclamava. A pele fina da palma de minhas mãos se desprendeu e se encobriu por bolhas ardentes... Que estouravam e deixavam a carne viva exposta a sangrar enquanto eu aprendia a manejar uma espada e um arco.

Eu não reclamava.

Eu corria para Sirona que cobria e lambuzava minha pele ferida com unguento de sálvia e camomila, anestesiando minhas dores, para depois massagear minhas palmas com um cataplasma de mel e babosa. Ela ficava preocupada e tentava conversar comigo, mas quanto mais ela tentava atravessar meus muros de defesa, mais eu me fechava em uma concha resguardada. Caso não a amasse tanto teria me afastado dela... Mas meu coração não permitia que eu a esquecesse. Não permitia que eu a deixasse. Não importa o que eu fizesse, ela ainda era a senhora de meus pensamentos.

A bruxa nunca pediu para que eu largasse meus treinos, por mais machucada que eu ficasse ou por mais que ela discordasse com os métodos de meu professor. Suas pombas sempre me acompanhavam durante minhas aulas, empoleiradas sobre as palhas da casa de armas, piando entretidas não importa o clima que estivesse.

Meu pai dava de ombros quando eu voltava para casa muito depois do sol ter se posto em seu leito. Nossa relação nunca mais foi a mesma depois do verão em que as caravanas chegaram mais cedo. Eu o via mais como um homem carregando seus defeitos e menos como um herói digno de canções de trovadores.

Minha avó torcia o nariz para meus ferimentos, reclamando com seu jeito ranzinza que eu “estava na idade difícil” e que esperava que aquela fase terminasse logo. Talvez ela tivesse razão... Talvez quando eu crescesse mais e olhasse para trás interpretaria tudo de maneira diferente... Mas agora eu estava perdida. Não sabia direito quem eu era...

Mas tinha certeza de quem eu queria ser.

E cegamente tracei meu caminho, como um touro teimoso e determinado cuja viseira rígida e enegrecida impede a visão dos pastos verdes que enfeitam as beiras das estradas. Com o passar do tempo minha pele não mais se rasgava e bolhas friáveis não mais emergiam pela superfície de minhas palmas. Minha pele engrossou e formou calos nos pontos que apoiavam o peso da arma. Otho palmava minhas mãos e balançava a cabeça branca em uma aprovação silenciosa.

Senti orgulho dos calos em minhas palmas, pois eles eram o sinal de que eu dera o primeiro paço em direção ao meu sonho de me tornar uma guerreira.

E nesse ritmo as luas foram se passando... E uma primavera. E outra...

Meus sapatos foram trocados, com o couro da sola tão gasto que meus pés sentiam todas as irregularidades dos terrenos por onde eu passava. Meus vestidos não mais me cabiam, meu busto e meu quadril enchendo e tomando forma de maneira desconfortável. Meus cabelos rubros clarearam por conta do Sol e o vermelho intenso mais se assemelhava ao alaranjado do céu durante o crepúsculo.

E quando vi eu já completara treze ciclos completos de idade.

Eu já não era mais uma criança, mas parte de mim ainda tinha certeza que um longo caminho se estendia a minha frente antes que eu mergulhasse na vida de uma adulta.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Eu sei que o capítulo está um tanto curto, mas na verdade ele é mais uma introdução dessa nova fase.
=)

E tentem não ficar tão frustrados com o Brianna, ela está entrando na "aborrecencia". Não foi uma fase fácil para mim nem para minhas irmãs. Particularmente acho que é uma fase difícil da vida de uma garota, essa de ter de se encontrar. De não ser menina direito, mas também não ser mulher ainda.
Vocês também se sentiram perdidas?