A Bruxa da Cidade das Brumas escrita por Libellule penseuse


Capítulo 11
O Círculo da Morte e da Vida


Notas iniciais do capítulo

Capítulo dedicado à querida Cherry por sua recomendação maravilhosa! Ela me presenteou de maneira tão adorável quando tudo o que eu merecia eram puxões de orelha! E nem tenho palavras para descrever minha felicidade quando só fico encarando a tela do comutador com o coração transbordando de um carinho cálido!

Muito obrigada Cherry... E muito obrigada também a todas leitoras(es) que deixaram comentários, favoritaram e acompanharam essa fic. Já disse uma vez que continuo escrevendo essa história para vocês e continuo sempre afirmando isso!

Música recomendada para o capítulo: Skrun por Ulvens Döttrar.

P.S.: Sangue, violência, morte.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/435237/chapter/11

A morte não é confortável.

Não é aconchegante ou mesmo oferece um descaso tenro.

Tampouco é fria e dolorosa, apesar de ser acompanhada por uma amargurante angústia de deixar o mundo.

A morte é vazia.

Vazia tão quanto um vácuo sufocante ou vestígios de um coração quebrado que à muito já se esqueceu de como bater... Pois isso era tudo o que eu sentia quando Azrael se debruçava sobre meu corpo e pousava seus lábios pálidos sobre minha testa.

Eu esperava que esse fosse o fim, por mais que eu fosse ignorante dos mistérios encobertos pelo véu que guarda o Mundo Vindouro, achava que minha alma estava pronta para deixar meu corpo quebrado e ser arrastada para longe pelos dedos ossudos do Anjo da Morte.

Mas o beijo tinha sido incompleto e eu estava viva.

Quando o Anjo se afastou meus olhos voltaram a se focar no homem que envolvia suas mãos em meu pescoço e usava toda sua força para obstruir o ar que passava em minha garganta. Seus medos, sua raiva e seu desespero escorriam de sua face na forma de gotas rústicas de suor...

E então seu corpo foi puxado para longe do meu.

O tempo se desdobrava, passando lentamente ao meu redor e todos se moviam devagar demais para que seus movimentos fossem naturais. Diante de mim Otho jogava o corpo do mercador no chão, o velho guerreiro acompanhado pelas pombas portava uma adaga curta e trajava ainda suas vestes de dormir.

Quando minha visão começou a escurecer novamente chamaram meu nome. Uma voz melódica e conhecida que naquele momento soava tão distante como se eu estivesse mergulhada dentro da água... Mas o chamado funcionou.

A primeira sensação que retornou foi o frio do pingente de prata preso em meu pescoço machucado. A segunda foi a dor.

Meu corpo se dobrou sobre si mesmo quando um ataque de tosse me possuiu violentamente, ao mesmo tempo em que minhas costelas lutavam para aumentar o espaço de meu peito e puxar ar para meus pulmões. Um gosto metálico de sangue tomou minha língua, mas eu não conseguia prestar atenção nele... Sirona estava sobre mim, tomando meu rosto em suas mãos e tocando nossas testas.

O rosto da bruxa estava manchado por lágrimas e sujo de sangue. Seu rosto contorcido em uma careta de choro enquanto ela soluçava, vestindo suas emoções tão à flor da pele de uma maneira que em tudo diferia de sua máscara inabalável de indiferença. Ela parecia mais humana do que bruxa e eu decidi que gostava da Sirona que mostrava suas emoções.

Pisquei e levantei minha mão para tocar em seu rosto, a bruxa sorriu com o toque e se pôs a me abraçar com braços trêmulos.

Mas nosso momento durou pouco.

O grito de Haniyya mais parecia um clamor à dor e nos chamou de volta para nossa batalha ainda não terminada.

Fora do círculo protetor as sombras que se mantiveram longe já não mais encontravam obstáculo algum e se aglomeravam sobre o corpo da mulher grávida, cujo sangue e outros fluidos lhe escorriam por entre as pernas, manchando o tecido fino de sua saia.

Sirona correu para ela gritando palavras em uma língua que eu desconhecia, sua presença tentando empurrar o negrume informe para longe, mas a sombra relutava e se prendia fortemente à Haniyya.

Minha vontade era me juntar à Sirona em sua tarefa de socorrer a grávida enfraquecida, mas plumas suaves roçaram sobre a pele de meu rosto. Um toque delicado e frívolo da morte que estava se encrustando em todo o meu ser, sua presença respirando pesadamente sobre meu ombro.

Quando me virei Azrael não mais se encontrava às minhas costas... Ele estava ao lado dos dois homens que lutavam em um emaranhado de músculos tensos e sangue escorrido, sua figura altiva e escura observando com interesse os dois corpos, suas centenas de olhos piscando com curiosidade fúnebre.

Otho tinha derrubado o mercador no chão, socando-o até enguiçar sangue do nariz quebrado. Mas o homem das caravanas ainda não estava pronto para se entregar, pois, assim como eu, ele enxergava o Anjo da Morte... Ele sabia muito bem o que lhe esperava caso fraquejasse.

O guerreiro de Romae pode ter sido incrivelmente poderoso em sua juventude, até mesmo invencível em batalha, mas o tempo é um tirano indestrutível e cobra sem pestanejar seus impostos de todos, marcando o corpo humano com fraqueza e fragilidade.

Em um piscar de olhos o mercador conseguiu inverter sua sorte, girando os corpos e ficando por cima de Otho enquanto golpeava o mais velho.

Nesse momento Arzrael se moveu, revelando a adaga perdida de Otho sob seus pés. Suas asas se viraram para mim com seus olhos me encarando e ele voltou a sorrir indicando com o dedo a lâmina prateada.

O preço da vida era a morte.

Esse era o seu jogo. Duas almas marcadas, somente uma sobreviveria ao custo da morte da outra... Quem ficaria na terra e quem seria levado ao Mundo Vindouro? Essa era a aposta, a peça de teatro que a entidade secular escolhia para se divertir.

Minhas mãos tremeram quando tocaram no metal frio da arma e as penas negras do Anjo ruflaram em animação contida.

Otho viu meu pequeno corpo se aproximando, seus olhos passando pela adaga que eu carregava e ele entendeu o que eu pretendia fazer. Em um esforço brutal o guerreiro idoso prendeu ambas as mãos do seu atacante, mantendo-as entre seu próprio corpo e seu braço. Ele usou sua mão livre e empurrou o queixo do mercador para cima, forçando-o a esticar seu pescoço troncudo, expondo suas veias pulsantes como uma oferenda irrecusável.

Eu já vira nos festivais a maneira que sacrificavam os cordeiros, sangrando-os até que morressem asfixiados pela sua própria essência de vida, ou em decorrer da fraqueza oriunda da falta desse líquido essencial. Ou mesmo a minha avó, degolando as galinhas e escorrendo seu sangue em uma tigela, para depois usa-lo para temperar a carne do animal morto.

Eu não tinha tempo para hesitar. Em um segundo estaria tudo perdido, todo aquele momento desfeito...

Então segui em frente, colocando meu corpo logo atrás do homem pardo e minha mão levando a adaga afiada à sua garganta exposta.

Suspirei. O simples ato ainda me machucava em razão de minha traqueia ferida, mas ainda assim eu o fiz, logo antes de correr a lâmina, trêmula e insegura, pelo pescoço do mercador, lacerando sua carne e cortando seus vasos.

Os cabelos brancos de Otho se tornaram escarlate, tingidos pelo líquido quente e viscoso que gorgolejou sobre ele.

Comecei a chorar assustada, mas ainda assim consegui puxar os cabelos do mercador, mantendo aberto e exposto o rasgo em sua garganta, o sangue viscoso alternando-se entre cascatear e esguichar da ferida aberta. O Anjo da Morte surgiu na sua frente, beijando os lábios pálidos com pressa até que nenhum vestígio de vida restasse naquele corpo, que tremeu em uma onda de espasmos agonizantes antes de se tornar inerte e pesado.

O Anjo sumiu.

Eu soltei o mercador e Otho o jogou para o lado, cuspindo o sangue que não lhe pertencia na grama.

Comecei a chorar e gritar, encarando minhas mãos que estariam eternamente manchadas com o sangue que não era meu.

.

.

.

Não posso recontar com certeza o que se passou durante o restante daquela noite... Em meu estado de choque minha mente foi capaz de guardar somente alguns fragmentos quebrados e, por vezes, incompletos daquelas horas escuras.

Ainda assim me recordo fielmente da sensação dos braços de Otho em minha cintura, carregando meu corpo para longe do homem morto e da grama empapada.

Recordo-me de Haniyya gritando e de Sirona ajoelhada ente suas pernas abertas. A bruxa gritava para Otho, pedindo que ele buscasse tantas coisas de sua cabana que seriam impossíveis de se listar agora.

O sol já se insinuava pelo horizonte quando nosso pesadelo terminou... Quando minhas lágrimas secaram. Quando o último suspiro de Haniyya escapou por entre seus lábios rachados e seus olhos vítreos encaravam a sombra que se prendeu a ela. Quando Sirona puxou o recém-nascido silencioso de dentro do corpo da mulher morta... O sol já nascia.

Assim como sua mãe, a criança não respirava. Não se movia. Não vivia.

Otho grunhiu insatisfeito, mas Sirona não desistiu. Algo contou a ela que o coração da criança batia.

A bruxa colou seus lábios contra a boca diminuta e o nariz do bebê e sugou, aspirando o líquido da placenta que obstruía suas vias aéreas até encher sua boca e então engoliu. Ela tossiu um pouco engasgada, mas logo voltou sua boca para o rosto do recém-nascido, dessa vez assoprando. Uma, duas, três vezes o peito da criança subiu... Até que uma pequena voz aguda rompeu ao sol nascente, afastando quaisquer sombras que ainda se atreviam pelos campos de lavanda.

– Ela lhe pertence agora... Essa criança. – Otho murmurou, muito assustado com a ação da bruxa e ainda coberto de sangue que adquiria a coloração típica de ferrugem.

Essa era a verdade. Mesmo em meu estupor pude distinguir que Sirona consumiu parte da placenta da criança, incorporando aquilo que a sufocava... Para depois lhe encher os pequenos pulmões com o sopro da vida. Parecia um ritual improvisado, mas ainda assim carregado de um poder imenso e pesado que a ligava eternamente àquela criança.

A bruxa abraçou o bebê que chorava, levando-o consigo para junto do tronco de Haniyya. Ela fechou os olhos vazios da mulher morta e beijou seus lábios. Haniyya nunca teve nenhuma chance de escapar de seu próprio Anjo da Morte, ela não estava marcada para um jogo macabro, ela estava marcada porque seu tempo chegara ao fim.

– Ele se chamará Shams, como o Sol que afasta a escuridão do mundo. Eu o amarei e o ensinarei a amá-la também... – A bruxa sussurrou para a mulher morta.

Sirona me puxou para dentro de sua cabana, com a criança chorando junto ao seu peito, enquanto Otho puxava os cadáveres para longe. Nunca soube o que aconteceu com os corpos, nenhum dos dois me contaram, mas Sirona pelo menos me garantiu que Haniyya teve todos os ritos fúnebres necessários para que sua alma descansasse.

A bruxa cantou uma música e Shams dormiu, entregue à sonhos que uma mãe morta de pele parda e seios pesados com leite. Eu queria que sua canção também tivesse algum efeito sobre mim... Mas eu ainda me encontrava completamente anestesiada de qualquer pensamento ou qualquer sensação.

Devagar Sirona começou a me limpar, retirando o sangue sujo de minha pele. A todo momento ela murmurava para mim, com uma voz baixa e acalentadora como se tentasse encantar minha consciência e fazê-la voltar para a concha vazia na qual eu me tornara. O que, de alguma forma, realmente ajudou.

Eu tinha onze invernos de idade e não era mais uma criança. Não importa o que ela dissesse para mim, minhas mãos seriam para sempre as mãos de uma assassina e minha inocência infantil tinha sido manchada. Eu poderia até tentar culpar os jogos de Azrael, mas no fundo de minha alma eu sabia que, a mão que empunhou aquela adaga, foi a de ninguém senão a minha própria.

E o pior de tudo... Eu não me sentia culpada por isso. Pois estava viva.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Saga da Infância terminada.

Não me matem pelo o destino da Haniyya, por favor! E também por esse marco violento que representou o final da infância da Brianna! Ninguém deveria ser obrigado a passar por isso...

Eu queria descrever toda a cena do parto e colocar as técnicas de obstetrícia antiga que pesquisei (além de um toque de magia também, pq não?). Mas vamos concordar que Brianna estava em choque...

E sobre Otho! Alguém se lembrava dele? As pombas avisaram que ele acabaria por retribuir o favor e que seria necessário...



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Bruxa da Cidade das Brumas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.