O Portal escrita por Star


Capítulo 6
Capítulo 6




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A casa do meu tio não fica cheia desse jeito desde que Marcela vinha comigo pra cá nas férias de verão pra comer espigas de milho com manteiga e brincar de alienígenas-duendes-robôs-perdidos na plantação, antes que aparecessem esse olhar arrogante dela e os peitos turbinados pra onde Vini desvia o olhar nove vezes em cada minuto — eu já contei. Em uma linha cronológica livre de ressentimentos e inveja, basta dizer que faz tempo à beça.

Ninguém fala muito. Somos como sobreviventes de guerra. O pacote de velas está em cima da pia, também, mas ninguém quis acender. O pior do escuro ficou lá fora e nós tínhamos certeza disso.

Vinicius anda pela casa como um lutador romano, usando nada além de uma minissaia amarela amarrada nos quadris. Ele buscou por roupas esquecidas no armário velho do meu tio, mas disse que todas fediam demais e pediu emprestada a cortina amarela da cozinha. Ofereci os lençóis velhos para ele fazer um casaco, por causa do frio lá de fora, mas ele respondeu com um “Não tem problema, baby. O meu corpo é bem quente” e me sorriu com os dentes maravilhosos que quase arrancaram o meu braço mais cedo.

Passando pelo corredor vi pela porta aberta do banheiro Eduardo ajudando Yasmin a se livrar da sua falsa pele humana e cor-de-rosa. A cena pareceu esquisita demais pra querer me envolver, então só peguei um punhado de algodão velho e me retirei pra cozinha.

É difícil de acreditar agora, que tudo parece seguro e real, que o que aconteceu na floresta negra foi mais do que um pesadelo. A lembrança de bolas de fogo feitas de pássaros e o relógio da cozinha que ainda não chegou nem em meia-noite ainda que uma eternidade parecesse ter se passado fazem tudo parecer só uma fantasia absurda. Mas havia aquele sentimento dentro de mim, e, eu acredito, dentro de todos eles também. O sentimento de alguém que venceu algo horrível. A sensação cheia de alívio e adrenalina de sobrevivência.

Isso, e, claro, meu nariz quebrado, meu braço mastigado pelo Vinicius lobo que, por acaso, ainda dói feito o inferno, e Yasmin completamente azul saindo de toalha do banheiro do meu tio ajudava a espantar o resto das dúvidas.

Eu abro a torneira e ela chia, com o barulho de canos velhos e enferrujados, até finalmente jorrar água fresca do poço. Molho um pedaço de algodão e por alguns segundos fico escolhendo qual dos machucados eu deveria limpar primeiro.

— Está se sentindo melhor? – Eu escuto a voz de Eduardo e o vejo entrar na cozinha, com as mãos pingando algo gosmento e transparente, como saliva. Eu faço uma careta de nojo que dói meu rosto e ele sorri um pouco. – É gosma de Yasmin – diz, ficando do meu lado para poder se lavar na pia.

Imagino se ele viu a mesma coisa que eu quando estávamos fugindo.

— Acho que consigo aguentar as pontas até o final da noite – respondo.

Foi ele quem me carregou para dentro da casa depois que a minha pressão baixou e eu desmaiei como uma frágil donzela, e eu fico grata por isso. Não que eu nunca tenha sonhado em ser carregada como uma princesa pelo Vini másculo e viril, mas não estou muito confortável com a ideia de ele me levar por aí nu e com aquela coisa balançante e enrugada encostando em mim.

Eduardo se inclina pra pia e afunda o rosto várias vezes na água, esfregando bem. Eu quero perguntar se ele também viu aquela criatura com chifres, se também não consegue parar de pensar nos seus olhos de sangue, se está tentando se livrar disso. Mas a hora não parece ser a certa. Talvez nenhuma hora seja a certa.

— Quer ajuda pra limpar as feridas? – Ele oferece, voltando-se pra mim com os cabelos loiros pingando água. A verdade é que eu gostaria de não ter que enfrentar mais dor nenhuma, mas como a outra opção é deixar tudo apodrecer, aceito a ajuda. Eduardo molha outro chumaço de algodão.

— Você provavelmente deveria tirar a camisa – ele diz, baixinho, pra não incomodar a paz da casa.

Eu o encaro de sobrancelhas franzidas até ele parecer muito, muito desconfortável, e ele se corrige, ficando vermelho.

— É só pra eu poder dar uma olhada. N-nas feridas. Dar uma olhada nas feridas. Só pra isso. Ou, ou não. O-ou não precisa tirar, foi o que eu quis dizer. Não que ou não era pra outra coisa. Você sabe. Não sabe?

Ele cora cada vez mais e é óbvio que não está mais no seu modo de batalha de Capitão. Eu até gosto dessa sua versão também.

— Relaxa, Eduardo – eu digo. – Hakuna Matata.

Eu tiro a camisa e a onda de dor que vem do meu braço é absurda. O tecido gosmento e encharcado de sangue deixa à mostra uma ferida profunda de três buracos onde os dentes de Vinicius se enfiaram e manga da camisa faz um rastro de sangue quando se arrasta pelo meu antebraço.

Está escuro, mas posso perceber Eduardo engolir em seco, tentando fingir que não está tendo um vislumbre sedutor do meu osso e que está tudo ótimo e que meu braço com certeza não vai cair. Ele treme um pouco com a mão que segura o algodão.

— Precisamos limpar a ferida – ele assegura, tomando coragem.

— Deve ser uma boa ideia.

— Ok, eu vou...

O algodão molhado encosta de leve em um dos buracos que Vinicius abriu na minha pele e é impossível eu não me encolher e gemer de dor. Eduardo recua imediatamente, assustado.

— Desculpa.

Fica bem claro pra nós dois que ele não vai conseguir encostar em mim nem com uma vara de dois metros com algodão na ponta. Eduardo pode se tornar um ótimo Capitão quando em tempos difíceis, mas com certeza não suportaria a pressão de praticar prontos-socorros. Nesse momento Marcela entra na cozinha, marchando decidida como se estivesse desfilando pelos corredores da escola com todas as garotas assistindo e guardando as lágrimas para chorarem mais tarde por não serem tão legais quanto ela.

— Me dá isso aqui – ela manda, já tirando o algodão das mãos de Eduardo. Como se fosse a coisa mais natural do mundo, ela cospe na bola branca, da mesma forma que fez com o sal quando estávamos dentro da floresta.

Os olhos felinos de Marcela encaram os meus e ela ordena, com o tom de irritação habitual da Srta Eu Sou Melhor Que Vocês.

– Me dá o seu braço.

Eu continuo imóvel e dura como uma estátua de pedra. O encanto, ou seja lá o que Marcela fez antes, nos salvou, é claro, mas quem pode me garantir que agora ela só não quer esfregar cuspe em mim e rir muito disso depois? Quer dizer, você confiaria em uma ex-melhor amiga bruxa raivosa com o seu braço despedaçado, por acaso?

— Isso é pra te ajudar, sua molenga – ela ralha. Vendo que não causa efeito, ela revira os olhos e então fala em uma voz mais normal: — Eu estou falando sério, Júlia.

O meu nome parece estranho na sua boca e só então percebo que talvez seja a primeira vez em anos que Marcela me chama de Júlia e não de “mosca morta”, “molenga”, “ameba” ou coisa parecida. Ofereço meu braço, pouco confiante. Marcela fala, baixinho:

— Só vai doer um pouco.

Dói pra caralho. Ela encosta o pano no primeiro buraco do meu braço e sinto arder como se o tivesse enfiado no fogo. Ela continua, com frieza e precisão, ignorando minha agonia. Pressiona o pano por todo o machucado e aquilo dói tanto quanto a mordida. Quando a sensação diminui para um formigamento, me atrevo a olhar para meu braço, fungando e com o nariz escorrendo, certa de que deve estar preto e murchando prestes a cair, mas as feridas estão fechadas e com uma cicatrização tão boa que todo o sangue parecia ter vindo de outra pessoa.

— Certo. – Marcela dá outra cusparada no pano. – Agora o rosto.

— Socorro – murmuro pra Eduardo, que me olha com pena.

O processo ortodoxo e nojento de cura continua, alheio ao meu desespero. Vini passa comendo uma lata de alguma coisa que provavelmente foi esquecida aqui há dez anos atrás, Marcela ralha com ele enquanto enfia algodão dentro do meu nariz com unhas perigosamente compridas – um contato tão desconfortável e íntimo quanto perder a virgindade, eu imagino -, e todos paramos de falar quando uma pessoa azul surge na porta.

É Yasmin, eu sei que é, mas não se parece em nada com Yasmin. A garota meiga, baixinha e loira agora tem a pele toda de um azul profundo coberto por veias roxas que parecem mudar toda vez que pisco. Seus olhos antes azuis e alegres agora são duas esferas compridas e escuras. O cabelo loiro também sumiu e sua cabeça agora é coberta por uma curta pelugem preta e azul. A sua roupa de fada-dos-dentes está rasgada e cheia de terra, com apenas uma asa pendurada nas costas.

— Pessoal... – ela diz, meio envergonhada, e a sua voz ainda é a mesma. A expressão do seu rosto, por mais absurdo que possa parecer, também é a mesma de quando nos conhecemos, quando ela se aproximou de mim na escola, balançando as maria-chiquinhas, sorrindo e perguntando "Você é a Júlia, né?". – Então... Acho que a gente precisa conversar sobre umas coisas, né?


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Notas finais do capítulo

O que dizer sobre essa história que eu peguei pra terminar dois anos depois de ter abandonado? Hehe. Acho que dessa vez sai um final. Oremos.