O Portal escrita por Star


Capítulo 7
Capítulo 7




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“Muitas coisas que aconteceram hoje não estavam planejadas, de verdade” ela diz. “Sei que não deveria ter escondido um segredo tão grande de vocês, nem ter feito vocês passarem por tantos eventos terríveis, e que estão cansados e machucados por minha culpa, mas...” Yasmin olha pro chão e então para cada um de nós. Seus olhos brilham de lágrimas quando pede. “Eu ainda preciso de vocês, galera. Por favor?”

Foi assim que eu, Eduardo, Vini e Marcela fomos parar de volta na clareira do milharal, onde passamos no caminho pra essa confusão toda. Acabamos sentados em círculo em volta do tabuleiro que Yasmin, quando ainda era só uma humana meio avoada vestida de fada, trouxe.

— Bem, hoje foi uma noite um tanto animada! – Ela começou a falar, batendo as mãos, totalmente alheia à nossa cara de cemitério. Como sempre. – Muitas coisas esquisitas aconteceram e acredito que a maioria tenha sido por culpa de segredos que guardamos uns dos outros. Um bem grande deles é o meu mesmo, eu admito. Então, por que não aliviamos a consciência e abrimos o coração antes de tudo? – Sugeriu, animada demais para uma reunião pós-apocalíptica no meio do milharal seco de uma fazenda abandonada e mal assombrada que eu já tinha até mesmo me convencido que não ia deixar pra trás tão cedo.

Vini e Marcela se entreolharam. Eduardo se remexe, meio desconfortável. Yasmin levanta o braço, sorridente, antes que comecem os protestos.

– Eu primeiro!

Yasmin azul dá um pigarro para limpar a garganta.

— Ok, amigos, o que eu tenho pra revelar é que... – Ela imita tambores. — Eu sou uma alienígena! – Grita, entusiasmada, levantando os braços e fazendo a pose de quem espera aplausos ou fogos de artifício. Como nenhum dos dois aconteceu ela reabre um olho e nos espia, desconfiada. – Tcharam! Uma alienígena! Tipo, eu vim do céu, gente! Lá de cima! Beeem de longe! Vocês não vão falar nada?

—Já estava meio óbvio, amiga – Marcela comenta, avaliando as unhas.

— Você é azul, baby – Vini endossa, com naturalidade. Sentado na terra com aquela saia minúscula ele parece um Tarzan pronto para fazer um ensaio fotográfico sensual e imagino se seu bumbum por acaso não está enchendo com a areia do chão.

— Ah, sim. Poxa.

— Qual seu nome de verdade? – Eduardo pergunta.

— Na verdade, no meu planeta não temos designações próprias! Temos um título para cada raça. A minha eu não sei como se pronuncia na língua de vocês, mas é parecido com o formato da letra Y. Mas vocês podem continuar me chamando de Yasmin, sem problemas! Eu adoro a ideia de ter um nome só pra mim! – Pisca, animada. – E Yasmin é um nome é tão fofucho!

Eduardo e Yasmin entram em uma conversa de vizinhos sobre o alfabeto e o sistema numérico alienígenas, Marcela e Vini começam a perguntar sobre comida, salto alto e sexo no espaço e a atmosfera de chá da tarde é tamanha que, como a única ainda sã nesse grupo, me vejo obrigada a perguntar:

— Por que diabos você resolveu trazer a gente aqui, Yasmin?

— Oh, isso. – Yasmin retoma, juntando as pontas dos dedos. – É uma boa história, juro que é. Eu fui enviada para esse planeta através de um projeto da nossa raça para aprender mais sobre nossos irmãos mais distantes, os humanos. Criei minha forma humana com uma substância nossa que imita tecidos, como o da pele de vocês. Passei muito tempo estudando costumes e aprendendo a agir como uma humana, porque se fizesse algo errado poderia levantar suspeitas e fazer com que vocês não se comportassem naturalmente ao meu redor, então nosso esforço nessa pesquisa seria inútil...

Penso que, na verdade, se Yasmin tivesse sua identidade descoberta o seu destino teria mais a ver com laboratórios e dissecação, mas prefiro não assustá-la com isso.

— Acontece que, sem querer, acabei quebrando o único aparelho que tinha para fazer contato com meu planeta – Yasmin admite, com um sorriso envergonhado. – Mas graças ao bom destino, consegui encontrar com a Júlia, que desenhou para mim réplicas das peças que eu precisava substituir e eu pude encomendá-las para um soldador – ela olha pra mim e sorri. – Obrigada, Júlia! Sem você, eu não conseguiria voltar pra casa!

Meu rosto esquenta e eu desvio o olhar. Murmuro alguma coisa meio indistinta de resposta, que poderia ser “de nada”, “eu não fiz nada demais” ou um pedido de frango com legumes em mandarim. Eu sou uma péssima pessoa pra receber elogios.

— Então, eu consegui fazer contato com o meu pessoal! – Ela remexe na bolsa de dente que foi esquecida aqui há algumas horas atrás e tira um aparelho que eu tenho quase certeza que é um tamagochi com duas antenas. – Eles marcaram a minha volta para hoje, graças à atmosfera única proporcionada pelo Dia das Bruxas. Mas o que aconteceu foi que, bem... Eu... – ela abaixa a cabeça, em estado de pura vergonha e desolação. Respira fundo. Busca forças. — Eu engordei bastante desde que cheguei aqui – confessa, em lágrimas. – Ah, isso é tão embaraçoso! O teletransportador da nave de resgate não consegue mais assimilar a minha massa corpórea. Por isso eu preciso abrir um portal e me teletransportar até a nave! E por isso eu trouxe vocês até aqui – ela olha para cada um de nós, cheia de expectativa e gratidão. – Porque eu preciso da energia de vocês para conseguir fazer isso. Porque vocês são os meus melhores amigos.

Apesar de ficar comovida com a declaração, a coisa toda fica martelando minha cabeça. Eu não acredito que passamos por tanta desgraça hoje porque uma alienígena engordou. Ai, se eu pudesse voltar no tempo e jogar no chão todas as coxinhas que já vi essa menina comer.

— Você vai voltar pra casa tão cedo? – Eduardo pergunta, meio magoado. – Entrou para a escola só há alguns meses.

— Hehe, na verdade... – Yasmin une as mãos novamente, com um enorme sorriso amarelo. – Eu estou na Terra há uns... Dois mil anos...

Silêncio. Todo mundo se encara e avalia o rosto de Yasmin, uma alienígena de dois mil anos, que até ontem era só nossa colega de classe. Esperamos ela dizer que é brincadeira, soltar mais uma risadinha e dizer que a nave desembarcou ela aqui no carnaval, mas ela não diz.

— Você tá zoando, né? – Marcela solta, finalmente.

— Não, não. O que acontece é que a passagem de tempo pra vocês é bem diferente pra mim. Durante boa parte do tempo eu fiquei em repouso, apenas observando e adquirindo conhecimento.

— Por que não entrou em contato com os humanos antes? – Eduardo, que parece ter um interesse profissional no assunto, questiona.

— Ah... Eu sou meio tímida! Vocês são tão grandes e cheios de pelos e de temperaturas altas e gazes, eu ficava com um pouco de medo de sair. Uma vez eu cheguei a conversar com um pessoal, tinha esse cara carequinha muito engraçado, acho que o nome dele era Gambit, e também um cara de bigode, muito estressado. Ele ficava gritando “nein, nein”, o tempo todo. Ora, bem! Vamos, eu já contei bastante. Continuando com a roda de revelar segredos em prol da amizade. Quem quer ser o próximo?

Nos nós entreolhamos, desconfortáveis. Vini termina balançando a mão casualmente.

— Eu sou um lobisomem – comenta.

— Eu sou uma bruxa – Marcela suspira alto e fala, seguindo a deixa. — Nós descobrimos o segredo um do outro quase ao mesmo tempo. Vini se transformou enquanto estava com uma garota na festa de fim de ano da escola e eu preparei um encanto para que ela se esquecesse de ter visto a transmutação. Desde então nós estamos... — E, juro por Deus, nessa parte ela me olha e vejo uma língua de cobra sibilando na minha direção. — Juntos.

Marcela não conseguiria demarcar território mais descaradamente nem se fizesse xixi no namorado.

A cada revelação, Yasmin solta um “legal!” e bate palminhas. Por fim, Eduardo levanta timidamente uma mão.

— E-eu gostaria de revelar que... – ele gagueja, seu rosto começa a ficar vermelho como um tomate e seus olhos verdes subitamente focam em mim com mais intensidade do que deveriam. Com mais intensidade do que qualquer ser humano já olhou para outro durante a história da humanidade. Ai meu deus. O rosto dele arde. O meu arde, por osmose. Ele gagueja. – E-eu es-estou apaixonado pela...

— Faça-me o favor! – Marcela bufa alto. – Isso não é segredo e ninguém quer saber dessa lenga-lenga nojenta de vocês dois, seus esquisitos.

Eduardo recua como um animal ferido, abaixa a mão e deixa o resto da frase morrer dentro da garganta, engolindo em seco e desistindo do provável ato mais corajoso que arriscava fazer em toda sua vida, fora ter entrado na floresta mal-assombrada e salvado nossos pescoços. Ver o garoto hakuna matata tão amuado por culpa da grosseria gratuita de Marcela, que é incapaz de mudar de gênio, mesmo com tudo o que aconteceu, faz um nó enorme e odioso se formar na minha garganta. Eu e Marcela nos encaramos soltando faíscas até que sinto Eduardo, com seu jeito pouco à vontade, pigarrear e tentar novamente, baixinho:

— Eu sou médium – ele diz, e, porque ele é o Eduardo, ele continua, ainda desconfortável, a dissertar sobre o assunto. – Sabe, pessoas com sensibilidade aguçada que têm facilidade para interagir com espíritos ou criaturas de outros planos, ou simplesmente tem leituras melhores sobre o comportamento das pessoas e... E tal...

— Isso é bem legal, cara – Vini comenta.

— É, é um pouco legal... Não precisam se preocupar, não leio a mente de ninguém sem permissão – acrescenta, depressa, e solta uma risadinha nervosa.

— Só falta você, Ju – Yasmin me encoraja.

Sinto todos me olhando e ainda estou fervendo de raiva da Marcela. Respiro fundo, buscando aquela tal da paciência.

— Eu não tenho nada pra dizer.

— Ah, por favor – Marcela bufa com escárnio, revirando os olhos. Eu prefiro ignorar o gesto.

— Você pode contar, Ju – Eduardo, do meu outro lado, aperta meu joelho, como se eu fosse uma frequentadora dos Alcóolicos Anônimos que depois de onze sessões foi flagrada com a boca na bomba de gasolina do posto.

— Eu não tenho o que contar, tá legal? Eu não sou um alienígena, nem um lobisomem, nem uma bruxa. Eu sou só uma pessoa comum. Não tenho nada pra dizer.

— Talvez você queira falar um pouco mais sobre a sua mediocridade, eu ainda não estou entediada o suficiente – Marcela, a Deusa Absoluta Acima de Nós Todos, ralha.

Talvez seja por tudo o que passamos, pela atitude terrível dela com Eduardo mesmo depois do que ele fez por nós, talvez seja por eu ter visto o namorado dela pelado, de qualquer forma, finalmente acontece. Eu sinto nos meus ossos. Eu atingi o meu limite com a Marcela.

— Quer saber? Eu tenho uma coisa pra contar, sim – digo, bem alto e claro. – Eu beijei o seu namorado.

Tudo acontece muito rápido. Marcela explode como um barril de dinamite. Ela pula pra cima de mim, como um tigre, mas Vini é mais rápido e segura os seus braços para trás.

— Me solta, eu vou acabar com ela! – Ela grita, se debatendo e mostrando os dentes.

— E quer saber? – Falo alto, por cima dos berros dela. — Foi na boca! E foi muito bom!

Do meu lado, Eduardo parece um pouco decepcionado, e é o único motivo que faz com que eu me arrependa do que acabei de dizer. Talvez eu tenha ferido os sentimentos do garoto Hakuna Matata, mas mais tarde eu penso melhor sobre isso, peço desculpas e até cozinho um bolo do perdão. No momento eu sou só raiva. Raiva acumulada por anos.

— Menina, se acalmem – Yasmin implora.

– Seu bicho imundo e desprezível! – Marcela dá uma escarrada e cospe na minha direção, duvido muito que com fins de cura. – Eu odeio você, eu odeio você!

Apesar de Vinicius ter a força de um lobisomem de três metros, Marcela tem a força de uma mulher em fúria, e consegue arrastar ele junto enquanto tenta colocar as mãos em mim e, provavelmente, me matar.

— Por que você precisa ser tão insuportável o tempo inteiro?! – Eu grito, incontrolável como um trem desgovernado. – Você é uma garota imbecil e arrogante que só fala porcarias que magoam os outros e fica agindo como se fosse melhor do que tudo! Qual o seu problema? O que você ganha fazendo os outros se sentirem mal? Por que você me odeia tanto?! Eu nunca fiz nada ruim pra você!

— Você quer saber por que eu te odeio? – Marcela para de lutar para se soltar e gargalha. – Você quer saber? Meu deus, Júlia, você não se cansa de se fazer de sonsa, não é mesmo?!

— Por que você sempre quer me ofender? — Não quero admitir, mas em meio ao ódio que pulsa nas minhas veias sinto mágoa surgir, como uma visita incômoda. Não gosto de discutir. Não gosto de contar meus problemas para quem mal me conhece, nunca chorei sem ser sozinha. Mas mesmo com Yasmin, Vinícius e Eduardo como espectadores, eu continuo. — Nós éramos amigas! Nós éramos amigas e você me abandonou e desde então...

Não consigo terminar a frase porque Marcela me interrompe, berrando:

EU. ABANDONEI. VOCÊ? — Ela gargalha tão alto que poderia acordar as almas condenadas no inferno e eu me afasto, por susto. — É isso mesmo o que você disse? Eu não acredito nos meus ouvidos. Tudo bem, Júlia. Já que não estamos fazendo nada eu acho que posso contar uma historinha, não é mesmo? Porra, Vinicius, me larga!

Ela range os dentes e Vini a solta. Ao invés de pular em mim, mirando na garganta, Marcela prossegue, falando com todo o desprezo que existe no mundo.

— Tem essa história que eu gosto bastante. É sobre duas crianças, Júlia e Marcela. Você conhece? Elas eram vizinhas e muito amigas, sempre brincavam juntas. Marcela sempre ia para a casa da Júlia quando os pais estavam brigando, porque era muito barulhento ficar lá e ela não gostava de ver o pai bater na mãe. Marcela confiava na amiga e contou sobre as coisas estranhas que às vezes aconteciam. Contou sobre como, às vezes, ela conseguia mexer em coisas sem tocar, mudar a cor dos seus lápis só de pensar ou adivinhar o que os adultos sentiam. Então, algo engraçado aconteceu. Algo hilário!

“Na outra vez em que se encontraram a Júlia estava estranha. Ela não conversava, nem queria mais brincar. Marcela achou que a amiga estava com medo dela, mas que quando algum tempo passasse ia ficar tudo bem. Então, em uma noite, quando a briga dentro de casa começou, Marcela foi para a casa da Júlia e pediu para passar a noite, mas a Júlia não abriu a porta. Horas se passaram e a Marcela chamou, chamou e chamou. Quando, já de madrugada, a Júlia apareceu, mandou que Marcela fosse embora. Disse que nunca mais queria falar com ela. Marcela chorou e pediu para ficar, e o que a menina Júlia fez? – Lágrimas grossas escorrem pelo seu rosto moreno, deixando uma trilha escura de maquiagem. Eu não me lembro de ter visto ela chorar antes. Nunca. — Ela jogou sapatos! Você atirou sapatos em mim! Mandou eu ir embora! Eu chorei e implorei que você me dissesse o que eu fiz de errado, mas você atirou sapatos e depois trancou a porta, me deixando na rua!”

“Eu acreditei que tinha feito algo de errado por muito tempo, acreditei que você tinha me rejeitado por ser o que eu era! Você não falava comigo na escola, ninguém falava comigo na escola, e eu fui deixada sozinha. Eu me odiei e me escondi. Achei que eu era aberração, porque a única pessoa pra quem contei a verdade fugiu de mim!”

“Eu passei dias, DIAS, indo pra sua casa. A sua mãe dizia que você tinha saído, mas eu sabia que era mentira! Eu te chamava na escola, eu ligava pra sua casa e você nunca, nunca respondia! E agora você... Você anda por aí com essa cara debochada, agindo como se nada tivesse acontecido, como se nunca tivesse me conhecido, como se fosse uma vítima do mundo inteiro! Eu fui aquela que foi abandonada! EU!

Marcela ergue a mão e tenho a certeza de que é para me espancar, mas o tapa não vem. Ao invés disso, ela funga alto e passa as mãos para secar o rosto, pela primeira vez ciente de que chorava tanto.

— Essa é a merda do meu segredo — diz, enquanto se afasta. — Vocês podem continuar agora.

Marcela dá sinal de que vai sair andando para qualquer lugar – para a floresta assombrada, talvez, ou para algum canto cheio de demônios que vá nos causas problemas - mas Vini a segura antes que saia pra muito longe do que era nosso círculo. Ela o repele, com um “tira a mão de mim”, mas desiste e aceita o abraço. Eduardo e Yasmin parecem paralisados em seus lugares. Eu não tenho coragem de olhar para ninguém.

A história que Marcela contou. Eu conheço. Eu sabia o que ela dizer, antes que terminasse. Eu me lembro de uma garota morena sentada na porta da minha casa, esperando. Eu lembro de não ter aberto a porta.

Então... Por que eu não me lembrava de tudo antes?

— Ok, então... Nós já acabamos, podemos ir para o final? – Yasmin sugere, quebrando o silêncio que nos congelava.

Nada disso estava na minha cabeça antes, mas, quando Marcela começou a falar, uma cadeia de imagens e vozes foram desencadeadas. É como se alguém tivesse falado sobre um filme e, apenas no final, eu percebesse que já o tinha assistido. Que eu estava nele.

—Tem... Tem algo que eu gostaria de falar.

Yasmin e Eduardo se voltam pra mim, preocupados. Eu me lembro agora. Eu me lembro de tudo.

— Você estava tão assustada quando me contou sobre os seus poderes, Marcela — eu digo. Na minha cabeça posso ver a pequena Marcela, de rabo-de-cavalo, segurando um lápis azul até ele ficar vermelho. — E eu não entendia porquê. Todas as coisas que você fazia eram tão legais...

Sou bombardeada por memórias tão distantes que parecem ser de uma vida passada. Um pouco distante, Marcela se vira dentro dos braços de Vini.

— Eu lembro que naquele fim de semana meu pais me trouxeram para a casa do meu tio, mas você não pôde vir comigo. Estava resfriada. Pegou de um garoto da escola. Então, meus pais me deixaram aqui com o tio Otávio e foram pra onde precisavam ir. Passar o dia sozinha na fazenda era muito chato, meu tio só trabalhava e não gostava de brincar comigo. De noite, quando eu ia dormir, ouvi barulhos... Ouvi o som de música e de muitas pessoas cantando. Eu senti muito medo e me escondi debaixo das cobertas, mas me lembrei de você. Você era sempre tão corajosa, Marcela. Você sempre me dava a mão quando a gente precisava andar no escuro. Sempre checava por bichos debaixo da minha cama. Eu pensei em você e no quanto queria ser corajosa também, então levantei da cama.

“Olhando pela janela, vi luzes e sombras dançando na floresta que ficava atrás da fazenda. Aquela que meu tio sempre disse que nós não podíamos entrar. Era proibida. Pode imaginar como eu fiquei animada? Uma festa dentro da floresta proibida e eu iria lá e depois contaria tudo pra você, e você veria como eu era corajosa também! Eu entrei na floresta, ainda de pijama. Segui o som das risadas e da cantoria. Eu não sabia o que eles falavam, mas eu não sabia o que dizia as músicas do rádio também. Quando os encontrei, me escondi e fiquei olhando.

“Não parecia com as festas normais, aquelas da escola e as que meus pais davam em casa para os amigos. Eu não sabia o que estava vendo, mas sabia que parecia errado. Havia uma fogueira e todos dançavam em volta dela, cantando alto. Alguns gritavam. Ninguém usava roupas. Eu não conseguia ver os seus rostos, mas sabia que eram pessoas velhas, com corpos enrugados, que pulavam e se contorciam de forma estranha. Um deles... Um deles trouxe um cachorro... Era um vira-lata. Parecia ser da rua. Alguém pegou uma faca e... No pescoço do cachorro... Tanto sangue... — Engulo em seco para sumir com o nó crescente na minha garganta, mas ele continua lá. — Eu chorei. Fiquei assustada. Eles me ouviram. Me encontraram.”

Posso sentir o calor da fogueira como se ela estivesse na minha frente. Posso sentir a música vibrando nos meus ouvidos e as vozes sutis. “Uma criança!”, alguém gritou. “É a sobrinha do Otaviano?”, eles perguntavam. Sinto o medo daquele dia entrar na minha pele, arrepiando os pêlos do meu braço.

— Eram muitos rostos estranhos... Até que finalmente eu achei meu tio. Eu corri para ele, chorando, e pedi pra voltar pra casa. Ele se ajoelhou e arrumou meu cabelo. “Eu disse para você nunca entrar na floresta, não disse, Júlia?” ele falou. “Você não devia ter desobedecido”. Eu achei que ele parecia triste. Alguém colocou nele uma máscara e eu não vi mais o seu rosto. Era branca, parecia ser feita de osso. Tinha chifres. Mãos me puxaram por todos os lados. Tiraram a minha roupa. Me seguraram no chão. Estava frio. Todos gritavam. Havia tambores. Meu tio... Ele não era mais meu tio... Ele... Subiu em cima de mim...

Eu não quero me lembrar. Eu não quero lembrar de nada, Deus, eu não quero, mas as memórias continuam vindo e sinto no corpo a dor de estar sendo rasgada outra vez.

— Eu sou a garota dos boatos. É de mim que falam. Não foi a filha que meu tio abusou. Foi à mim — confesso. Choro como chorei naquela noite, sem que ninguém me ouvisse para me salvar. — Eu sinto muito, Marcela. Eu não consegui falar mais com você. Eu não consegui falar com ninguém. Depois daquilo... Desculpa, desculpa de verdade... Eu não queria...

Marcela me atinge como uma bala de canhão. É tão repentino que não sei o que fazer. Os braços dela me apertam tanto que dói e ela afunda o rosto no meu pescoço, tremendo. A sensação é molhada. Ela chora e soluça comigo, por mim. “Eu sinto muito”, ela sussurra pra dentro do meu cabelo. Eu a abraço de volta e continuo pedindo desculpas até que minha garganta feche demais e eu não consiga mais falar.

Nos abraçamos como se fôssemos crianças outra vez, como se tudo tivesse acontecido no dia anterior, e não há seis anos atrás. Como se não houvesse mágoa e rancor acumulados por todo esse tempo. Marcela não é mais uma estranha. É a minha melhor amiga. É a pessoa mais corajosa que eu conheço. Eu a aperto como se ainda estivesse naquela noite e ela, por algum milagre, tivesse me escutado e corrido até a fazenda para me salvar.

Ouço um fungar barulhento e encontro Yasmin molhada de lágrimas, chorando como uma criança, com algo cor-de-rosa escorrendo do nariz.

— Eu sinto muito, Júlia! — Yasmin se pendura no meu pescoço. — Eu sinto muito por ter te trago de volta pra esse lugar horrível e que te fez lembrar de tanta coisa ruim! Eu sinto muito... — Ela geme, com a cara afundada na minha camisa, deixando tudo molhado e brilhoso.

— Não precisa se desculpar — eu digo, passando a mão na cabeça dela, como costumo fazer quando ela tenta construir alguma coisa que viu na televisão e sai errado. — Agora, vamos te mandar de volta pra sua casa.


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Notas finais do capítulo

Para dizer a verdade, eu criei essa história inteira porque queria participar do desafio de Dia das Bruxas lá de já nem sei qual ano mais, e não conseguia me decidir sobre qual criatura mágica eu iria usar para escrever. Então imaginei um grupinho de amigos sentados em roda e se confessando: "eu sou um lobisomem", "eu sou uma bruxa", "eu sou um alienigena", e assim saiu a história inteira.
Agora, o próximo capítulo é o último, pode ter certeza! hehehe