O Portal escrita por Star


Capítulo 5
Capítulo 5


Notas iniciais do capítulo

Sem rituais de iniciação capitalar dessa vez! Mas, olhar esse gif ajuda a aquecer os receptores de material amedrontador do seu cérebro (é claro que eles existem confia em mim que é boa) http://www.insoonia.com/wp-content/uploads/2013/10/011.gif



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"Um corpo balança bem acima da minha cabeça, pendurado em um dos galhos por uma corda no pescoço."

Um corpo.

Meu grito fica sufocado na garganta. Entalado pela falta de ar que meu nariz ruim não anda capaz de suprir. Os pés da pessoa enforcada balançam exatamente em cima da minha cabeça e mesmo Vinicius cai pra trás com o susto.

Levo um segundo ou dois – será que Marcela nunca vai parar de gritar? – até conseguir reconhecer o enforcado. As pernas muito compridas e escuras, as roupas velhas de fazendeiro, o chapéu ainda pendurado na cabeça caída. É o espantalho.

Me arrasto para longe da árvore e Vini me ajuda a levantar, por sorte me puxando pelo braço que ainda está inteiro. Eu estava certa, realmente. O enforcado que balança pendurado no galho mais alto é o velho espantalho do meu tio. Tudo isso aqui – a árvore absurdamente grande e o corpo pendurado – são um cenário bizarro que por algum motivo parecem familiar pra mim, como uma lembrança meio apagada que não consigo resgatar.

Yasmin tenta acalmar Marcela e faze-la calar a matraca que poderia produzir energia o suficiente para acender toda a torre Eiffhel com pisca-piscas e ela não parece nem mesmo estar mais contrariada por ter uma amiga azul, já que finalmente se cala e volta ao normal. O normal que quer dizer reclamando de tudo, comigo.

– Que merda é essa? – Ela se vira pra mim, furiosa. – O que a merda desse espantalho idiota tá fazendo aqui? Isso é alguma brincadeira escrota sua? Não tem a mínima graça, você quer me matar do coração?

– Não foi eu quem colocou ele alí – eu digo e pela primeira vez percebo que até mesmo falar faz meu nariz doer ainda mais. Estou mais ferrada do que as mocinhas de novela jogadas barranco a baixo, com menos graça e elegância.

– Você tem um negócio engraçado. Por que eu não tenho um desses? – Yasmin fala, alheia ao acesso de fúria de Marcela e olhando muito divertida para a nudez de Vini.

Marcela fica vermelha até a raiz dos cabelos, não tenho certeza se por alguma vergonha ou pela fúria absoluta, embora o segundo seja o mais provável, e começa a torrente de gritos para que Vini vá se vestir imediatamente. Mas todas suas roupas estão rasgadas em algum lugar muito distante daqui, onde as árvores sangram e mais de cem buracos foram deixados abertos pelo chão, e Vinícius só dá de ombros, com cara de "o que eu posso fazer?".

Alguma coisa parece errada aqui, nesse exato lugar da floresta. Mais errada do que tudo o que já aconteceu hoje, incluindo a metamorfose de Vinícius e a pele azul de Yasmin. Era como a sensação de estar no quarto e sentir alguém te observando, mesmo sabendo que a casa está vazia. Como ir dormir e um pouco antes de cair no sono sentir uma presença estranha do seu lado na cama. Só que pior.

– Eu não acredito que acabei minha noite encalhada nesse fim de mundo com meu namorado pelado e duas lelés da cabeça querendo fazer brincadeira de criança pra me assustar – Marcela ralha, como sempre, massageando as têmporas como se fosse a mártir do nosso século, condenada a viver rodeada por imbecis desmerecedores da sua presença.

– Não foi eu quem colocou isso aí! – Me defendo outra vez.

– Ah, é mesmo? Quem foi o imbecil que fez essa palhaçada então? – Marcela insiste e levanta os braços. – Por que eu não tô vendo mais nenhuma aberração de cara de bunda querendo fazer gracinha por aqui!

Eu posso sentir. Ao nosso redor. Milhões de olhos. Milhões de presenças estranhas. Nós caímos no pior lugar, na pior hora possível.

– Ah... Eu sei quem o colocou alí - digo. - Foram eles.

Marcela segue meu olhar e, quando finalmente percebe o que está em todas as partes, fica branca feito papel. A boca dela faz mímicas e tenta falar alguma coisa, mas as palavras foram embora junto do sangue do seu rosto. Ela parece realmente abobalhada e eu poderia compará-la com uma lista infinita de personagens ou objetos especialmente caracterizados pelo meu rancor dos últimos anos pra denegri-la ainda mais na minha cabeça como uma forma estúpida de vingança por me sentir tão só, mas estou assustada demais pra relacionar qualquer coisa em uma piada interna que ninguém mais vai ouvir.

Espíritos, entidade, demônios, eu não tenho certeza. Eles estão nas árvores. Nos galhos. Estão em cada sombra. Não, eles são cada sombra. Nos encontraram. O espantalho não é só um enfeite ou um aviso. Ele está alí para marcar um lugar, um lugar onde eu nunca deveria ir.

Vultos negros nos cercam de todas as partes com seus olhos nebulosos e demoníacos de pupilas brancas assistindo aos nossos movimentos. Nenhum se mexe. Um silêncio anormal cai sobre todos nós e é como se a floresta inteira e cada criatura viva alí dentro sentisse o mal presente e não se atrevesse a respirar.

– O que são eles? – Yasmin azul pergunta do meu lado. É estranho o quanto a sua voz pode soar séria. Sem brincadeiras, sem entusiasmo, sem curiosidade alguma. Ela também pode sentir o mau presságio apertar contra o seu estômago.

– Os espíritos da floresta – eu respondo, porque, na verdade, foi exatamente isso que eles se tornaram.

Yasmin imediatamente se vira para mim.

– Mas...

– Isso é impossível – Marcela interrompe, em um fiapo de voz, e sei que ela está se esforçando o máximo que pode para soar ameaçadora e descrente mas o medo transborda do seu corpo como água fugiria de um copo cheio de óleo. Os olhos dela não desviam dos pares de pupilas mergulhadas em branco de pé atrás de todas as árvores.

– Eles não vão fazer nada de mais, não é, baby? – Vinicius pergunta, cauteloso, e poderia jurar que o ouvi gaguejar. – Nós podemos só sair sem incomodar a paz de ninguém, não é mesmo? Espíritos não são ruins... não é?

Eu não posso responder. Depois de tudo o que fiz para sair e tirar todos daqui, de nada adiantou. O meu esforço foi inútil. Eu fui inútil. Ah, droga. Agora... Por minha culpa, todos eles...

– Não são espíritos de pessoas mortas – Yasmin fala e está me encarando esperando por confirmação ou por ser corrigida. – Eles não tem a mesma vibração. Esses parecem... famintos.

– Bem, e o que isso come? – Marcela pergunta, nervosa.

Todos estão olhando pra mim. Não posso suportar. É minha culpa. Eu condenei todos que estão aqui. Vinicius, Yasmin, Marcela. É tudo culpa minha.

– Ela está chorando? – Marcela se volta para os outros dois tão tensa que consegue erguer a voz até virar um gritinho esganiçado. - Pelo amor de Deus, por que ela está chorando?

Eu nunca tive a intenção de machucar nenhum deles e sei que isso pouco importa agora. Tudo já está perdido. Vinicius, o grande herói da escola, que eu sempre adorei de longe. Marcela, a minha antiga melhor amiga, que eu nunca, nunca consegui odiar de verdade, nem esquecer. Yasmin, a garota nova e cheia de ideias, que conseguiu me fazer sonhar e querer alguma coisa de verdade depois de tanto tempo. Meu corpo está cansado e acabado demais, não tenho forças para sair daqui ou lutar. Mesmo que eles tentem, não vão conseguir. É por isso que os boatos sobre a floresta são apenas boatos. Qualquer um que os tenha presenciado para ter certeza não sobrevive para contar.

Eu quero parecer mais corajosa do que sou e dizer qualquer coisa que possa dar às três pessoas na minha frente alguns últimos minutos de esperança. É o mínimo que eu poderia fazer por eles, mas não consigo. Nunca fui uma boa amiga. Eu sou fraca demais, até pra isso. Minha garganta arranha quando a despedida mais piegas possível sai de dentro de mim.

– Eu... Eu sinto muito.

Uma onda de sons desumanos explode dentro da minha cabeça. Berros, sussurros e gargalhadas profundas enchem os meus ouvidos e não consigo entender que língua estão falando. Nenhum deles soa como nada que já foi humano. Vejo Marcela e Yasmin caírem no chão com as mãos nos ouvidos, se contorcendo de dor, antes que eu faça o mesmo. São os espíritos. Estão bombardeando sons estridentes o suficiente para fazer meu cérebro fritar.

Posso sentir sangue escorrer dos meus ouvidos para as minhas mãos, como água morna, saindo do meu cérebro massacrado. Ainda assim, a culpa por ter feito três pessoas inocentes sofrerem tanto consegue fazer doer meu espírito mais do que meu corpo. Eu sinto muito, de verdade, eu não queria isso, eu sinto muito, eu sinto muito...

Estou quase inconsciente quando os gritos das criaturas perdem força e aliviam a pressão no meu crânio, diminuindo para chiados desconexos que parecem agonizar. Alguém na minha frente me obriga a levantar e tenho quase certeza que está me sacudindo, mas tudo que consigo ouvir é o zumbido contínuo de uma nota aguda e minha visão está embaçada demais para reconhecer qualquer coisa. O mundo aos poucos vai se encaixando ao meu redor, assentando formas e cores nos seus lugares. A imagem entra em foco e por um segundo acho que é Yasmin me chacoalhando, mas, Yasmin agora está azul, não está? Minha visão volta completamente e mesmo assim eu demoro um pouco até entender que é um garoto loiro de cabelos muito bagunçados que está agarrado nos meus ombros e gritando na minha cara pra que eu acorde.

– Eduardo? – Estou muito grogue e muito zonza pra conseguir fazer isso ter sentido. Estou tendo visões? O espírito dele veio ajudar? Minhas mãos afundam na cara dele, apertando as bochechas, a testa, puxando cabelo e as orelhas, tudo ao mesmo tempo. Ele solta um ai quando eu enfio um dedo no seu olho e eu grito. – Você é... você é real?

– Ela acordou? – Alguém pergunta em algum outro lugar, ou alguma outra dimensão.

– Acordou, sim – Ele responde quando eu enfio um dedo no seu nariz. - Só parece uma criança bêbada. – Fala rindo pra mim, ou da minha cara, eu não saberia dizer a diferença. – Consegue correr? – Eu balanço a cabeça pra todos os lados possíveis, como uma centrífuga. – Ótimo, porque vamos precisar. Seja rápida, tudo bem?

Ele segura a mão do meu braço que ainda está inteiro e me puxa. Seu toque é muito humano e muito real. Preciso correr para conseguir acompanhar e me concentrar para manter o equilíbrio porque meu braço mastigado continua inerte e grudado ao resto do corpo. Olhar para trás não parece ser uma boa ideia, mas eu o faço mesmo assim. Os espíritos que nos cercavam parecem menores e distantes. Não consigo entender direito o que está acontecendo até que depois de tropeçar em uma raiz e quicar por alguns metros vejo que Eduardo carrega uma coisa na outra mão, um pote cheio de pó branco. Aquilo é... Não posso acreditar. É sal. O sal que Yasmin usou para fazer o grande círculo ao redor do tabuleiro ouija, ele está todo alí, misturado com um pouco de terra que veio do chão.

Eduardo, seu espertinho.

– Como sabemos se estamos indo na direção certa? – Eu pergunto, um pouco sem fôlego, o que não é incomum, já que meu nariz parece uma obra malfeita do governo. Ei, já consigo fazer piadinhas internas ruins!

– Eu deixei uma trilha – Eduardo me olha de relance com seu ar maroto. Debaixo dos meus pés, uma linha sinuosa de pó branco se estende em um caminho luminoso para fora daqui. Eu não sei porque pressenti algo de ruim nesse garoto antes, mas estou muito, muito feliz por ele estar aqui agora e espero que ele não se importe que eu aperte a sua mão quentinha e real até ela quase quebrar.

Na frente do nosso grupo, Marcela solta o mais esganiçado de seus gritos esganiçados e vejo Vinicius puxá-la a tempo de evitar que uma bola de fogo acerte a sua cabeça.

– Ai, que droga, esse lugar não vai parar de me dar susto?! – Marcela berra, batendo os pés.

– O que foi isso? – Yasmin pergunta e eu também me aproximo do pequeno cometa caído perto de nós.

De início a coisa parece uma pedra de carvão imensa, mas aos poucos eu enxergo as formas diferentes e escuras dentro das chamas. É um corvo. Morto, perdendo as penas para o fogo e deixando à mostra pedaços cor-de-rosa da sua carne.

– Eles estão nos atacando com pássaros mortos! – eu chio, incrédula. Os espíritos estão usando seus poderes para nos prender aqui dentro. Um início do meu ataque de pânico começa, com uma ansiedade enorme pressionando meu peito e o pensamento pertinente de que não conseguiremos sair daqui, mas tudo se esvai quando ouço outro berro esganiçado como um cabrito recém-nascido vindo de Marcela.

– Cuidado! – Yasmin grita, virada para a outra direção.

Uma chuva de corvos em chamas voa para nós, saídos de dentro das sombras das árvores. Um deles se aproxima rápido demais e tudo o que eu vejo é laranja por todos os lados até que Eduardo me empurra para o chão e nós dois rolamos até nos escondermos atrás de uma árvore. As bolas de fogo voam ao nosso redor, tão rápidas que quebram os galhos que aparecem no seu caminho e espalham fogo por todos os lados. Afundo a cabeça entre os braços para não ser atingida pelo fogo ou pelas folhas em chamas que caem por toda a parte e sinto algo quente e viscoso pingar nos meus dedos.

Espalmo minhas mãos na frente dos olhos, mas, de alguma forma, já sei o que é aquilo antes de ver. Pingos vermelhos pintam a pele das minhas mãos, fazendo uma trilha gotejante de sangue que escorre até meu punho.

Sangue sai de dentro de todas as árvores ao redor e flui pelos troncos, tanto e tão rápido que cria poças enormes no chão, encharcando tudo. Pingos quentes caem na minha cabeça e, com horror, sinto-os escorrer pelo meu rosto. Marcela ainda está gritando histericamente e quando olho para frente vejo-a se arrastando para trás e chutando as raízes de uma árvore que emergiram do chão e avançam para as pernas dela como pequenos chicotes vorazes, cheios vida própria. Vinicius corre até ela para puxa-la, mas um corvo flamejante o acerta em cheio nas costas e ele se joga no chão para apagar o fogo, soltando grunhidos dolorosos. Yasmin ajoelhou-se ao lado dele para ajudar e o sangue branco e estranho que ainda escorre do seu braço machucado pingou para as costas nuas de Vinicius, fazendo-o gritar e se contorcer ainda mais. Por um instante de distração, uma raiz ainda carregando pedaços de terra enroscou-se no seu pescoço e Yasmin foi puxada para a árvore, debatendo-se.

– Você está bem? – Eduardo pergunta do meu lado e sinto as mãos dele apalparem a minha cabeça e meus ombros pra se certificar que eu ainda estava inteira, provavelmente porque se assustou com o sangue espalhado no meu rosto.

– É a floresta – eu explico e o pânico que fechava a minha garganta se dispersa porque algo no suspiro aliviado de Eduardo quando viu que minha cabeça não estava quebrada não me deixa desistir. – Ela não vai nos deixar ir embora, Eduardo. Ela quer nos devorar.

– Parece que nós vamos precisar de um plano novo. – Ele se levanta e parece muito mais ágil do que a sua figura sonolenta usando moletom que atravessou a floresta até alí comigo. Ele parece absurdamente confiante e seguro mesmo com todo o inferno que se abre à nossa volta. Se as pessoas fossem adjetivos e o antigo Eduardo fosse o Hakuna Matata, o seu eu de agora seria o Capitão. Sem demais, apenas Capitão. Eu aceito a sua mão pra levantar.

– Qual é o plano novo? – pergunto.

Ele olha ao redor e dá um pulo pro lado quando uma raiz se ergue da terra e tenta enlaçar o seu pé.

– Essa é uma excelente pergunta, na verdade.

Marcela grita cada vez mais, agora com as pernas fortemente enlaçadas pelas raízes finas e sendo arrastada para dentro da árvore, onde uma fenda negra se abriu pronta para engoli-la como a boca de um demônio. Eduardo acena para ela rapidamente com a cabeça.

– Eu pego a garota, você pega o sal.

Dito isso, ele foi até ela e passou a puxa-la pelos braços, fazendo um cabo-de-guerra com a árvore. Marcela continuou berrando o quanto podia, mas aquilo ainda era melhor do que ser engolida. Eu vasculhei ao redor, tentando enxergar através das chamas que contaminavam a floresta aos poucos e encontrei a lata velha de alumínio reluzindo meio escondida por uma rocha, com o sal metade para dentro e metade para fora.

Corri até ela desviando do bombardeio de corvos e das raízes megeras que se contorciam para todas direções como se fossem vermes gigantescos. Um pouco menos de dois passos antes de o alcançar, meu pé pisou em uma das poças de sangue escorregadias e minha perna vacilou, fazendo o resto do corpo tombar para a frente. O gosto metálico do sangue que sequer era meu encheu minha boca quando mergulhei no líquido viscoso e um aperto de cordas finíssimas prendeu minhas pernas, puxando meu corpo para uma outra bocarra negra que se abria dentro da árvore às minhas costas. O aperto era forte demais e quanto mais eu tento me soltar, mais forte ele fica, abrindo rasgos nas pernas da calça jeans e ameaçando entrar na minha carne. Dentro da fenda negra que se abre na árvore, milhares de olhos apareceram, todos brancos como a neve e com uma pupila reta e maligna gozando do meu desespero. Eles sussurravam para a mim. Mil vozes falando a mesma coisa dentro da minha cabeça.

A sua alma a sua alma entregue a sua alma entregue alma a sua alma

Tentei me segurar ao chão mas a terra se desprendia nas minhas mãos em nacos grandes e inúteis. Não posso aceitar que tudo termine assim. O sal estava exatamente na minha frente, só um pouco mais. A terra se desfaz debaixo de mim, fazendo uma descida dentro da fenda escura onde eu cairia para a escuridão eterna. Só um pouco, se eu conseguisse me esticar, apenas alguns centímetros idiotas, tão perto, tão perto...

Meus dedos roçam no punhado de sal caído fora da lata. Afundo a mão alí, enchendo-a de sal e terra, e atiro para o grande vácuo dentro da árvore que tenta me devorar. Os olhos dos espíritos desaparecem e as raízes soltam minhas pernas e tombam no solo, já sem vida nenhuma. O enorme buraco negro continuou aberto para mim, com uma descida de terra que levava para o vazio e o mais rápido que pude saí daquele chão e de perto do buraco sem fim.

O pote de sal era frio nas minhas mãos e tinha menos da metade do conteúdo. Pensei vagamente em catar o que se espalhou pelo chão e colocar de volta, mas não tinha tempo para isso. Marcela continuava gritando desesperadamente e os esforços de Eduardo para puxa-la de volta não eram o suficiente. Eu corro até lá e atiro outro punhado dentro da fenda escura e mais uma vez as raízes se desprendem da vítima, caindo de lado inúteis, reduzidas a menos que galhos secos.

Marcela se arrasta para longe e junta os joelhos ao queixo, passando as mãos nas pernas onde o aperto das raízes destruíram sua meia da fantasia de bruxa e cortaram a pele. Ela não mais gritava, mas seus lábios ainda batiam num tique nervoso e os olhos dela procuraram pelo namorado caído no chão. Eduardo toma de mim o pote de sal antes que eu perceba o que ele está fazendo e o coloca na frente dela.

– Enfeitice isso.

Os olhos felinos e agora aterrorizados de Marcela intercalam do pote de sal para ele. Ela inteira treme como se sentisse um frio insuportável, ainda que boa parte da floresta ao redor esteja pegando fogo. Eduardo manteve o olhar firme sobre ela e insistiu. Eu demoro até entender o que realmente significa tudo isso então a poção que Marcela guardava com ela volta em um flash na minha memória. Aquilo... Era mágica mesmo, não era?

– Nós precisamos, para sair daqui. Enfeitice.

As mãos trêmulas de Marcela finalmente se movem e pegam o pote de sal. Ela o aninha entre as pernas como se fosse um filhote e fala baixinho para ele, em alguma língua arrastada que com certeza não é português. As mãos dela passeiam fazendo círculos em cima do pote enquanto ela fala e, por fim, ela cospe alí. Estou prestes a finalmente pegar uma pedra do chão e tacar na cabeça dela por continuar sendo tão abusada e fazer brincadeiras ridículas em momentos críticos como esse, mas Marcela continuava séria quando entregou o pote de volta, sem nenhum sorrisinho de provocação ou olhar de desafio, e Eduardo o aceitou com um aceno de cabeça.

Marcela... Marcela é mesmo uma bruxa. Por mais absurda que a ideia possa parecer, ela é um fato inegável. Foi ela mesma quem confessou que criou a poção para Vinicius usando mágica e agora se revelava capaz de falar em dialetos parecidos com aqueles que os espíritos sussurram o tempo inteiro. Eu poderia saber disso graças a poção que ela me entregou antes, mas, como Eduardo sabia?

Eduardo arremessa um punhado do sal enfeitiçado para a árvore que está enforcado Yasmin. O sal se dispersa em uma nuvem branca antes de atingi-la e mais uma vez as raízes perdem sua força de vontade e tombam completamente inúteis, fazendo Yasmin cair sentada no chão. Fora isso, com o chiado de água fervente igual aos que os espíritos soltavam, os galhos da árvore e seu tronco inteiro murcham aos poucos, perdendo a cor negra e tornando-se um cinza pálido como os restos de um cigarro. Provavelmente, foi isso que o feitiço de Marcela causou.

Vinicius geme de dor baixinho ao meu lado. Marcela está debaixo de um dos braços dele, tentando faze-lo levantar, e eu o pego do outro lado porque ele é grande demais para ela sozinha.

– Noite divertida, não é, baby? – Ele brinca, com a cabeça pendendo meio grogue entre nós.

– Marcela, com todo esse sangue aqui... – eu digo, preocupada. – Você não acha que Vinicius vai, de novo...?

– A poção deve mantê-lo inteiro por mais tempo – ela responde, também muito séria, acomodando melhor o peso do namorado sobre o ombro.

Vinicius solta um ganido alto de dor e estremece sobre nós duas e eu vejo por cima do seu ombro Eduardo esfregar um punhado de sal na queimadura aberta nas suas costas. A ferida estava escura como carvão e tentava se espalhar pelo resto da pele mas o sal a fez borbulhar e grande parte evaporou com fumaça. Vini geme novamente e tenta se virar para o outro e Marcela e eu precisamos guia-lo nos seus movimentos.

– Qual foi, cara?

– Você vai me agradecer por isso – Eduardo rebate e sem explicar mais nada, esfrega um punhado de sal com o polegar na testa de Vinicius e de Marcela, que já devem ter entendido que devem mais obedecer do que reclamar no momento. Ele se vira pra Yasmin, sério como apenas a sua faceta de Capitão conseguiria estar.

– Yasmin, você consegue fazer um campo de força pra nós?

Yasmin olha meio insegura para todos nós, mexendo uma palma da mão sobre a outra e parecendo calcular alguma coisa. A testa dela também brilha com os grãos finos de sal que Eduardo já deve ter passado como fez com os outros. Eu me lembro das barreiras translucidas que ela usou quando Vinicius a atacou, capazes de deter os ataques e investidas de um lobo gigante, mas mais uma vez não entendo como Eduardo poderia estar ciente daquilo também.

– Eu posso tentar! – Ela tenta soar mais confiante do que realmente parece. – Nunca fiz um escudo para tantas pessoas antes, mas com certeza conseguirei. Mas acho que... Acho que não vou conseguir manter por muito tempo.

– Ótimo, nós também não temos muito tempo. Vinicius, você consegue farejar a trilha de sal pra fora daqui?

Vini empertiga o corpo, tirando os braços dos meus ombros e dos de Marcela e meu corpo inteiro agradece pelo alívio. Carrega-lo, ainda que só metade, é como ter que aguentar um sofá. Ele ergue o rosto para a noite, com o crepitar de chamas vindo de todas as partes, e funga rapidamente, bem como um cachorro faria. Eu olho de relance para a ferida nas suas costas e ela desapareceu completamente, deixando apenas uma mancha de pele mais rosada no lugar.

– Sem problemas, posso fazer isso.

– Você segue na frente para abrir o caminho – Eduardo coordena e todos nós o escutamos, atentos, como sargentos medrosos no campo de batalha. – Yasmin, fique no meio para que o campo de força alcance todos, precisamos evitar os corvos ou o que mais tentarem nos atirar. E você...

Ele se vira para mim. Não faço ideia do que o plano de ação do Capitão possa ter guardado pra mim, já que, de todos aqui, eu fui a única pra quem a vida negou uma visitação com brindes no Departamento do Sobrenatural. Eduardo esfrega minha testa com o polegar e sinto os grãos de sal roçarem contra minha pele.

– Não solte minha mão, não importa o que veja, ok?

Os dedos dele se entrelaçam firmemente entre os meus. Eu... Realmente não conheço esse garoto, a sua antiga ou a sua nova versão, mas eu aperto a mão dele como se fosse minha última chance de resgate. Sinto outra vez gosto da esperança aquietar o embrulho do meu estômago e calar os gritos de pânico da minha cabeça. Eu aceno para ele, porque de repente perdi além das piadinhas para gracinhas internas também todas as palavras que já aprendi na vida. Ele se volta para os outros e está no modo Capitão como ninguém nunca esteve antes.

– Não saiam da formação. Não olhem para trás. Não parem de correr, por nada! Ouviram?

Alguns acenos de cabeça curtos se seguem e são interrompidos pelo inconfundível som de madeira se partindo. Uma das árvores ao nosso redor começa a cair para cima de nós, grande como uma torre.

– Vão! – É a última coisa que ouço Eduardo gritar, enquanto a árvore toma minha visão completa como um eclipse. O aperto da sua mão me puxa e de repente estamos todos nós correndo outra vez. A árvore está perto, muito perto, mas nós somos mais rápidos e quando ela finalmente tomba nas nossas costas o chão treme debaixo dos nossos pés.

Corremos em trilha por dentro da floresta como o mais alucinado grupo de corredores olímpicos da Nigéria sob efeito de cocaína. Atravessamos arbustos em chamas, trotamos pelo mar pegajoso de sangue e barro e deixamos para trás raízes ferozes que não são rápidas o suficiente para roubarem um pedacinho da nossa carne. Sinto o calor das chamas, os arranhões das raízes ao rasparem nas minhas pernas e o chão fugindo de debaixo dos meus pés em crateras que começam a se abrir em todas partes, mas em momento nenhum deixo de correr ou de olhar para frente, para onde Eduardo me guia. Corvos flamejantes caem do céu sobre as nossas cabeças e batem contra um escudo invisível que Yasmin mantém com as mãos espalmadas para o alto e ricocheteiam para longe. Ao nosso redor, espíritos negros se levantam das sombras e gritam outra vez, milhares de rugidos animais e sussurros demoníacos que agridem meus ouvidos, mas não conseguem mais entrar dentro da minha cabeça. O ar arde quando entra para os meus pulmões, puxados forçadamente pelo nariz quebrado e pela minha boca ressecada.

A fumaça negra do fogo está tomando conta de todas as partes. Mal consigo enxergar mais do que um palmo na minha frente. O dióxido de carbono começa a subir para a minha cabeça e a tontura é inevitável. Continuo correndo. Ele faz meus pulmões ficarem pesados como chumbo. Continuo correndo. A falta de ar embaralha a minha cabeça, o chão escorregadio parece desaparecer completamente. Estou correndo, correndo, não paro de correr.

Alguma coisa me chama a atenção e eu me viro para um dos lados durante a nossa fuga desesperada. Estamos tão rápidos que tudo eu vejo passa pelos meus olhos como um borrão escuro, mas tenho certeza do que vi, e sinto os pêlos da minha nuca eriçarem com pavor puro. Parado entre as árvores flamejantes estava uma criatura terrível, nos acompanhando passar. Seus olhos eram chamas gêmeas e sua pele tinha a cor de sangue fresco. Dois chifres cor de osso furavam a sua cabeça e apontavam para o céu. O horror da imagem faz meu coração disparar e já estou tonta, tão tonta. Meu peito arde como o inferno, minha consciência se dispersa para longe de mim como as ondas criadas na água ao se jogar uma pedra. Eu sou a pedra. Eu vou cair.

Quando meus joelhos não conseguem mais suportar e me jogam no chão, eu sinto grama debaixo de mim. Grama pura e fresca, sem sangue viscoso, sem mato carbonizado, sem fogo algum. Grama verde brota entre meus dedos, real e segura, como um manto imenso.

O céu em cima da minha cabeça é de um azul arroxeado livre de nuvens. A metade sinuosa da lua brilha para todos nós, branca como casca de ovo. Não há árvores malditas e fogo tapando o céu. Nós saímos. Nós estamos livres.

Vini está pulando na minha frente como um grilo saltador, eufórico, dando soquinhos no ar. Eu não sei se você já viu um cara pulando nu, então me limito a dizer que agradeço muito por ainda estar enxergando tudo meio borrado.

– Nós conseguimos! – Ele grita, berrando para a lua, tão forte que todas as veias do seu pescoço saltavam. – Nós conseguimos, porra! Nós estamos vivos!

Do meu lado Yasmin também estava jogada na grama, respirando pesado, a sua pele azul brilha como se fosse pintada com uma constelação inteira. Ela sorri pra mim, com o peito subindo e descendo demais para conseguir dizer qualquer coisa, e eu consigo sorrir de volta, aproveitando da imensa sensação de alívio que envolve todos nós.

Marcela, que também estava jogada ao nosso lado, levanta cambaleando e respirando pesado.

– Peguem isso, seus espíritos otários! - Ela grita e mostra os dois dedos do meio para a floresta negra à nossa frente. O fogo desapareceu, bem como os espíritos e tudo mais que nos perseguia. A mata escura se ergue na nossa frente, tão silenciosa como se nada jamais tivesse acontecido.

A emoção que me preenche é tão pura e arrebatadora que eu começo a rir alto, realmente alto, e todos os outros me seguem. Yasmin joga a cabeça pra cima e me acompanha, Vinicius ri enquanto corre de um lado pro outro em zigue-zague, Marcela gargalha rodando com os dedos do meio em riste como um carrossel. Eduardo do meu lado ri tanto que precisa se apoiar nos joelhos pra não cair no chão. Eu me deito na grama daquele chão seguro que no momento eu amo como se fosse um filho meu e rio o mais alto que consigo pro céu aberto, espremendo o resto de ar dos meus pulmões e tremendo meu corpo inteiro com aquela sensação incrível.

Nós estamos livres. Nós realmente, realmente conseguimos.

Ainda estou rindo quando Eduardo se inclina sobre mim. Eu quero chama-lo de Capitão, dizer "Bom trabalho, garoto Hakuna Matata", e vê-lo sorrir sem me entender, mas não tenho fôlego algum para isso. Ele me olha de cima e tem lágrimas de todo o esforço pra rir gotejando nos seus olhos verdes e um sorriso animado no rosto, que se desfaz aos poucos, franzindo a testa.

– Ei, você está bem?

Eu ainda estou sorrindo quando as últimas ondas da consciência nadam para longe de mim e meus olhos se fecham contra a minha vontade.



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Notas finais do capítulo

MAOEEEEEEEE, QUANTAS EMOÇÕES, MY PEOPLE!
Obrigada a todos que tem acompanhado essa saga muito sagaz (se liga como eu sou boa em trocadilhos, é, eu sei, eu sou genial, aceito flores) até agora. É minha primeira longfic depois de Olhos de Aquarela, na verdade! E isso porque deveria ser um conto único. risos Pro halloween. risosmil Eu devo acabar esse troço é na páscoa.
No próximo capítulo, o desfecho dessa história peculiar! Segredos, mistérios e confissões! O que você é? O que finge ser? Você sabe quem o seu namorado é, de verdade? E que tipo de criatura a sua melhor amiga está escondendo ser?
Tudo isso e muito mais, assim que eu escrever! maisrisosainda
Aliás, eu vou prestar prova pro vestibular nesse domingo, então, me desejem sorte por favor! Autora que quebra a cara na prova do vestibular é autora que demora mais ainda pra postar capítulo então é bom vocês montarem um altar com velas pra mim e desejos sinceros diretos do coração de boa sorte, seus motherfuckers.