O Portal escrita por Star


Capítulo 4
Capítulo 4


Notas iniciais do capítulo

Ritual de leitura para o capítulo: Você precisa estar sozinho. Desligue todas as luzes da casa. Bote uma boneca do lado do seu computador. Dê play no seguinte vídeo e deixe a música rolar (http://www.youtube.com/watch?v=PtGF3BMaF4c). Sinta a vibe. Sinta mesmo. Sinta muito. Você pode sentir a boneca te olhando, não pode? Não finja que não. Você sabe que ela está te observando. Você sabe. Ela vai te matar enquanto você dorme.



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"- Vamos logo com isso vocês duas, precisamos dar um jeito no meu namorado. E não fiquem convencidas se ele vir atrás de vocês, nessas horas ele corre atrás de qualquer pedaço de carne."

A ideia de voltar para encontrar a criatura medonha parece absurda demais para ser verdade. É ridículo. Quanto mais eu tento sair dessa maldita floresta mais fundo eu acabo entrando nela. A minha noite não deveria ser assim. Eu deveria estar em casa, comendo sucrilhos ruins, sozinha e segura. Não aqui. Não depois de tudo.

Apesar de todo o meu medo, eu não consigo implorar a Yasmin para que volte comigo para a fazenda e só pare de correr quando essa noite parecer menos que um pesadelo distante. É Marcela. Eu não consigo confrontá-la. A briga que tivemos há meia hora só aconteceu graças a um surto histérico. Eu mal posso olha-la nos olhos, quanto mais desafiar suas decisões. Então apenas acompanho a sua figura que marcha decidida pelos caminhos escuros, bem como quando nós éramos pequenas.

Fora isso, existe Vini. Eu não sei dizer o que vi acontecer diante dos meus olhos, mas Marcela parece já estar acostumada com isso, então não deve ser a primeira vez. O quanto humano ele ainda é? Poderia nos matar, se quisesse? E se não formos nós quem o encontrarmos primeiro?

Seja rápida, Eduardo disse e o seu rosto continua soprando hálito quente no meu ouvido enquanto atravesso os arbustos agarrada ao braço de Yasmin. Quanto tempo até Vinicius nos achar? Seja rápida. Ele vai nos matar ou nós precisaremos mata-lo? Faça o que for, mas seja rápida.

– Será que vocês podem me explicar o que está acontecendo aqui? – Yasmin pede, ansiosa. Ela não parece nem um pouco nervosa ou assustada, apenas curiosa, como se tudo fosse um documentário russo do Discovery Channel que ela pegou pela metade.

Essa é uma ótima pergunta. Uma pergunta excelente. O que aconteceu aqui, de verdade? O que eu vi nessa última hora? Vinicius estava maluco cavando buracos. As árvores sangraram. Ele se transmutou em um demônio. Fim. Essa noite ultrapassa a barreira do desconfortável pro bizarro a cada instante que se passa. Por isso eu amo meu quarto. Ninguém surta e arranca a própria pele lá. A menos que seja na HBO.

– Podemos guardar as perguntas pra depois, por favor? – Marcela demanda, impaciente. – E falem baixo, nós queremos encontrá-lo, não que ele nos encontre.

– Ele mudou – eu sussurro para Yasmin, depois de um tempo pensando na melhor palavra pro que aconteceu. Mudou se encaixava perfeitamente. – Eu não acho que ainda seja o Vinicius.

– Ele trocou de nome? – Yasmin franze a testa, aparentemente incapaz de falar mais baixo.

Marcela nos lança um olhar raivoso por sobre o ombro e nós duas nos calamos. Continuamos seguindo floresta dentro. Não tenho certeza se elas também conseguem ouvir o som de folhas sendo esmagadas e a respiração predatória que eu sinto vir de todas as partes.

– O Vinicius ainda está lá – Marcela fala depois de algum tempo, sem se dirigir a ninguém em específico. É como se estivesse falando sozinha ou com ela mesma. – É óbvio que ele ainda existe, mesmo dentro daquilo. Às vezes ele não consegue se controlar, é só isso. Mas ele sempre tenta não fazer mal a ninguém. Não é de propósito que acontece, tá legal? – Ela me dirige o que deve ser o mais fraco dos seus olhares ameaçadores. Ela não parece irritada de verdade. Só parece preocupada para que ninguém chame o seu namorado de monstro. Ela volta a virar para a frente e conclui, baixinho - Ele não tem culpa.

– Qual é o nome dele agora? – Yasmin pergunta, curiosa. – É Carlos? Ele suuuuper tem cara de Carlos.

Marcela ignora e continua falando, sem nos olhar. É provavelmente a primeira vez em anos que ela consegue terminar mais de duas frases sem xingar ninguém e as palavras parecem sair duras de dentro dela.

– Nós estávamos tentando conter isso. Acontecia uma vez a cada três meses, então todo mês, sempre em noites de lua cheia. Não deveria ter acontecido hoje. Só que ele ficou muito... diferente.

Marcela olha para o alto e imagino que esteja tentando achar a pequena lua minguante que aparece contra o fundo roxo do céu. Ela não parece mais a Srta Verdade Absoluta ou a Madame Sou Melhor Que Você. Sem os saltos altos e a grosseria, é como se estivesse fantasiada de garota normal. É sua versão A Parada Ficou Séria. Essa imagem me lembra muito a antiga Marcela que corria descalça comigo na plantação nas férias de verão e, apesar de todo o bizarro da situação, eu gosto mais dessa sua versão do que da anterior. Imagino que essa noite ela já tenha olhado para o céu incontáveis vezes, procurando ver algum sinal de que estava enganada e de que esse era o tempo errado para sair.

Somente em lugares como esse é que você consegue sentir de verdade”.

Vinicius, alucinado, coberto de terra, grita dentro da minha cabeça “Tem alguma coisa errada aqui e tá me enlouquecendo”. Talvez o tempo não tenha nada a ver com isso, eu quero dizer a Marcela, mas não consigo. Talvez, seja só o lugar.

Eduardo provavelmente sabe explicar o que está acontecendo. Ele parece saber de todo o tipo de coisa que não deveria saber. Eu olho ao redor sentindo sua falta e percebo pela primeira vez que estamos apenas em três aqui. Sinto minha imensa negligencia como amiga latejar outra vez.

– Onde está Eduardo? – Eu pergunto para Yasmin, que está cantarolando nomes baixinho.

– Aquele maricas saiu correndo para o outro lado assim que pôde – Marcela responde no lugar, carregada de desprezo. A velha Marcela, de volta. Sem nem dar tempo de sentir saudades. – Frouxo.

Eduardo fugiu? Aquele filho da mãe sortudo.

– Eu acho que ele foi pedir ajuda – Yasmin fala, mais nobre.

Eu imagino quem ele vai conseguir encontrar por aqui. O espantalho, com alguma sorte. O estabelecimento mais próximo da fazenda é um posto de gasolina a quilômetros de distância e mesmo se eu considerar que ele não vá se perder dentro da floresta, duvido muito que consiga alcançar a estrada sem perder as chaves do carro no caminho ou sem atrair algum animal raivoso que vá tentar arrancar a sua perna. É uma pena que ele esteja sozinho. Tudo parece mais assustador quando estamos só.

É vergonhoso admitir mas a verdade é que rezo em silêncio para que ao menos ele consiga sair daqui bem. E inteiro.

Yasmin solta um gemidinho de dor. Ela parou com a cantoria e caminha do meu lado com a cabeça baixa, concentrada, e uma mão no rosto. Só então eu percebo uma mancha escura no outro lado do seu rosto cobrindo metade do nariz.

– O que aconteceu com o seu rosto?

Yasmin hesita pelo que eu acho é a primeira vez na vida. Um sorriso amarelo se abre na sua boca mas ela vira a cabeça para a outra direção.

– Ah, isso? – Ela força uma risada e demora, me enrolando, até finalmente soltar, falando muito rápido em um só sopro de ar - Quando você saiu correndo para a floresta a Marcela me acertou um soco pra se soltar e vir atrás de você. Mas tá tudo bem. Nem doeu. Sério.

Não posso acreditar que Marcela tenha feito realmente isso ou que Yasmin tenha levado um soco por culpa minha. Afinal, essa noite inteira foi culpa minha. Nada teria acontecido se eu não tivesse oferecido esse maldito lugar.

– Você bateu nela? – Eu indago pra juba de cabelos cacheados de Marcela que avança por raízes e galhos mortos à frente. Pela vigésima vez na noite tenho vontade de acerta-la na cabeça com uma pedra. Ou com um coquetel molotov.

– Olha só, você me deu a porra de um chute na cara, então cala a boca. – Marcela ralha, irritada, sem se dar o trabalho de virar para nós. - E eu já pedi desculpas. Não foi nada demais.

– Não foi nada demais?! Yasmin, fica quieta, me deixa ver isso direito!

Yasmin chacoalha a cabeça de um lado pro outro, fugindo de mim. Parece brincadeira de criança, mas eu já estou mais zangada do que deveria e por fim consigo segura-la pelo queixo, forçando seu rosto a ficar parado por pelo menos dez segundos.

– Não tem problema, Júlia, ele já tá até bom, tá ótimo, tá perfeito... – Yasmin choraminga, fazendo força para se livrar. Eu aperto as suas bochechas até ela fazer um bico enorme de peixe e ainda assim ela continua chiando. - Para olhar pra ele, meu narix é xímido.

– A gente precisa voltar, isso tá horrível! – Finalmente ela parece se dar por vencida e relaxa e eu posso examinar o seu rosto brilhoso. O hematoma é escuro demais e não consigo mais identificar o que é a sua narina direita ou a ponta do nariz. Não tem sangue nenhum. Ao contrário, um estranho brilho azul sai da mancha, como se um punhado de glitter colorido estivesse grudado alí.

Não queria ter de tocar no machucado e faze-la sentir mais dor, mas preciso sentir se realmente não está sangrando ou inchado, já que não posso ver. Meu dedos tentam achar a ponta do nariz de Yasmin e afundam dentro do seu rosto. A sensação é estranha demais para ser descrita.

– Yasmin, o seu nariz...

Eu não sei como terminar a frase. É como se não existisse nada alí.

O resto do rosto de Yasmin continua muito real e macio pressionado entre os meus dedos e isso não faz o menor sentido. Eu deslizo com a ponta dos dedos pelas suas bochechas brilhosas até o nariz e meu dedo afunda outra vez, dessa vez entrando até mergulhar em uma substância azul e quente que parece pulsar ao meu toque. A pele ao redor do nariz treme sob meus dedos e uma rachadura se abre em outras duas mais finas.

A pele rosada e brilhante racha como se fosse porcelana e eu solto o rosto de Yasmin, assustada demais para conseguir raciocinar propriamente.

– Yasmin, o seu... o seu rosto... ele... o seu rosto está caindo...

A fada dos dentes instantaneamente leva as mãos ao rosto. Ela toca na rachadura que eu abri sem querer e, com o som de cerâmica se partindo, um pedaço da sua bochecha se solta e cai no chão. Yasmin não grita. Não parece assustada. Ela apenas olha pro pedaço cor-de-rosa de pele no chão e fala, baixinho:

– Ah, logo agora...

Estou esperando que ela levante o rosto e ria e diga que isso é alguma brincadeira idiota, mas isso não acontece. Mais linhas de rachaduras se abrem conforme ela se mexe, um mapa preenchido de linhas rabiscadas em todas direções. Yasmin me olha de forma grave e diz as piores palavras possíveis para esse momento.

– Júlia, eu posso te explicar...

A segunda pele que aparece sob os rachados é de um azul cintilante e parece ter veias roxas desenhadas, como um órgão congelado. Ela estende a mão para mim e eu me afasto. Ela parece uma boneca quebrada. Não quero ouvir sua explicação. Não tenho mais certeza do que ela é.

– Não precisa ficar com medo... – A fada dos dentes diz, magoada, e sua mão ainda está estendida pra mim. O tom de voz dela ainda é o mesmo de Yasmin. Os olhos azuis dela, amargurados, ainda são os mesmos olhos cintilantes de sempre, e por um segundo eu me sinto mal por recuar dela como se fosse uma assombração. Talvez seja apenas uma pegadinha ridícula de Dia das Bruxas. Talvez ela realmente tenha uma explicação muito boa pra isso.

Não tenho tempo para mandar ela se explicar, me fazendo de séria e fingindo estar muito menos assustada do que realmente estou. Em algum lugar na floresta à nossa frente, Marcela grita o nome de Vinicius. Um enorme borrão escuro salta sobre a minha cabeça, rosnando. A criatura de pêlos escuros cai em cima de Yasmin e o vejo afundar os dentes do tamanho de facas de carne no braço que ela estendia para mim antes que ela seja derrubada no chão e ele cubra completamente a sua imagem, soltando grunhidos roucos e demoníacos.

– Vinicius! – Marcela grita e de repente está do meu lado de novo, ofegante.

– Ele atacou Yasmin – É tudo o que consigo falar. Não consigo me mover. Não sei o que fazer. Aonde o lobo imenso está, grunhindo e mordendo, posso ouvir o som de cerâmica se partindo. Yasmin não está gritando.

– Vinicius! Larga ela agora mes-...

Uma explosão enorme some com as últimas palavras autoritárias e aflitas de Marcela. Um forte feixe de luz cega meus olhos e sou arremessada para trás, como se o próprio ar me acertasse com um soco no estômago. Meus ossos estalam quando minhas costas batem de encontro com uma árvore e de novo quando quico pro chão. Demoro até me acostumar outra vez com a escuridão e quando finalmente minha cabeça volta a se situar o que vejo na minha frente é absurdo para ser considerado como realidade.

O enorme lobo cinzento está rosnando e arreganhando os dentes com as orelhas baixas a apenas dois metros de mim. Ele parece grande como um carro e tenho certeza que arrancaria e esmagaria minha cabeça em duas mordidas se quisesse, mas não é comigo que ele está furioso. É com ela.

As árvores estão todas tortas onde nós estávamos antes. Todas se afastam do centro, em um círculo perfeito, e nem mesmo galhos ou arbustros o ultrapassam. No centro, está Yasmin. Ou o que eu imagino que seja Yasmin. Ela ainda está com as asas de feltro – uma, pelo menos, a outra foi arrancada e deixada no chão como autópsia de uma mariposa gigante – e a roupa de fada dos dentes, mas metade do seu rosto e todo o seu braço direito estão com uma segunda pele azul escura, da cor de um céu muito estrelado. Um de seus olhos é apenas uma esfera negra e brilhosa. O seu braço azul pinga um líquido branco e viscoso pro chão. As gotinhas que caem chiam e destroem a grama que forra a floresta, fazendo buracos de areia.

– Cachorro mau! – A garota grita pro lobo, segurando o braço machucado. Onde o sangue branco e ácido pingava nos seus dedos a pele falsa que parecia cobrir o seu corpo inteiro se desmanchava e caia em gordos pingos cor-de-rosa.

– Aquilo é a Yasmin?

Marcela foi jogada bem do meu lado e já se levantava, soltando gemidos doloridos. O cabelo dela parece ter varrido junto todas as folhas da floresta e ainda assim ela poderia se passar por uma modelo tupiniquim em ensaio pitoresco a favor da floresta amazônica.

– Eu não tenho certeza – respondo, porque não tenho mesmo.

O lobo avança, dando investidas e rangendo os dentes. Seu rosnado é tão alto que soa como o ronco de motor de caminhão. O ser semiazul no centro da clareira move a mão no sentido de cada ataque que o lobo prepara e ele é repelido para trás pelo que parece ser um escudo invisível, uma forma oval flutuante com bordas de luz azul.

– Senta, cachorro mau! – Ela grita, recuando um passo a cada investida. – Senta, Carlos! Fica!

Certo. Aquela definitivamente é Yasmin.

O lobo ameaça outro salto e desvia de direção no último instante, pegando a defesa de Yasmin desprevenida. Ele abocanha grunhindo o outro braço ainda coberto por pele humana, enterrando fundo os dentes afiados e Yasmin grita de dor. O animal enorme levanta do chão, flutuando, esticando-se para trás como se estivesse sendo sugado por uma grande ventania, mas continua firmemente preso pelos dentes à carne dela. Ele é então levantado até ficar de ponta cabeça, suspendendo a própria Yasmin alguns centímetros do chão, até que solta o braço e é jogado contra uma árvore, onde apara a queda com as garras da pata traseira e pega impulso para se lançar rosnando outra vez.

– Vini, para com isso! – Marcela faz menção de correr até o campo de batalha da criatura peluda e do ser azul mas eu a puxo pelo braço. Ela se vira pra mim, irritada. – Nós precisamos fazer alguma coisa!

– Entrar lá no meio não vai ajudar em nada! – Ficar entre dois seres de origem sobrenatural parece ser a pior ideia em toda a história de piores ideias possíveis, incluindo a de entrar sozinha em uma floresta mal assombrada. Minha cabeça trabalha em ritmo frenético, se esforçando para se manter concentrada em uma única coisa e deixar de lado o que diabos Yasmin é de verdade e quanto tempo mais conseguiremos passar dentro dessa floresta sem que nada pior se manifeste. Como pode ser tão difícil simplesmente ir embora daqui? É como se a cada segundo que se passa eu afundasse mais nessa terra, ficando presa pela eternidade. – Vocês lidam com isso há muito tempo, não sabe nada que faça Vinicius voltar?

Marcela tenta se soltar e vira a cabeça de mim para a briga pelo menos sete vezes antes de conseguir voltar a pensar propriamente comigo. Por sorte, no pânico se esqueceu de me acertar um soco no nariz também.

– Tem, tem, tem sim – Ela se encolhe e desdobra a meia ¾ listrada branca e preta da fantasia de bruxa sensual em liquidação que pelo menos vinte outras garotas da nossa cidade devem estar usando nesse mesmo momento. Tira de lá um frasco pequeno de forma cilíndrica, muito parecido com os tubos de ensaio que alguém roubou da aula de química, encheu de algo roxo e fechou com uma rolha. – Eu fiz isso pra evitar que ele se transforme. Nós usamos todo mês. Funcionava sempre, mas não sei se também pode fazer com que ele volte. Precisamos fazer ele beber.

– O que é isso?

Não quero parecer cética, principalmente depois de tantos eventos sobrenaturais e inexplicáveis estarem acontecendo nessa noite maldita e por estar a apenas metros de distância de uma luta entre duas criaturas desumanas, mas a coisa tinha a consistência de gelatina deixada fora da geladeira e eu não sei o quanto posso confiar em Marcela mesmo que a situação seja de perigo e ela pareça estar de volta no modo A Parada Ficou Séria.

– É uma poção – ela diz. – Mágica.

Mágica.

Não tenho tempo pra discutir ou pensar demais. A criatura jogou Yasmin contra uma rocha e pulou sobre ela, com a mandíbula enorme escancarada. Os escudos de proteção que Yasmin consegue criar estão cada vez menores e mais fracos e não acho que ela possa aguentar por muito mais tempo.

– Quebra meu nariz.

Marcela me olha como se eu tivesse enlouquecido de vez, e não posso pensar muito porque vou acabar achando que é verdade. Mas esse é o melhor plano em que consegui pensar e não temos tempo disponível para beber refrigerante com limão e fazer um brainstorm revolucionário. Precisamos salvar Yasmin.

– O que?

– Vinicius consegue farejar sangue e isso mexe com os nervos dele. Não é verdade? Foi isso que fez ele se transformar, foi o sangue que saiu das árvores. É a única forma de atrairmos ele pra cá.

– Sangue de árvore? – Marcela franze a testa, cada vez parecendo mais ciente de que eu pirei por completo. Não tenho como explicar tudo agora.

– Será que você pode calar a boca e fazer o que eu digo pelo menos uma vez na vida, porra?

É o suficiente. Os olhos felinos de Marcela brilham em um lampejo de raiva pura e ela me acerta um soco de esquerda bem no nariz. A dor explode no meu corpo como se um raio me atravessasse. Mesmo que pareça coisa de desenho animado, tenho muita certeza que vi estrelas nos cantos dos olhos.

– Abusada – Marcela resmunga do meu lado, limpando os nós dos dedos na roupa.

O sangue pinga do meu rosto pro chão e em questão de segundos minha cara já está encharcada. Preciso respirar pela boca porque é como se meu nariz estivesse embaixo d’agua. A alguns metros de nós, o lobo subitamente para de desferir mordidas contra o escudo de proteção acima de Yasmin. Ele funga o ar. Seu corpo se move lentamente ao virar-se para mim e Marcela, ressonando com um rosnado preso na garganta e com a cabeça baixa, em um caminhar predatório. Os olhos de Marcela brilham ao vê-lo se aproximar.

– Vini...

O lobo grunhe mais alto em resposta e ela congela, parecendo chocada demais para fazer mais alguma coisa. Ele não parece reconhece-la. Não é Vinicius, de forma nenhuma.

– Marcela – eu sussurro. Ele está esperando captar algum movimento meu para atacar, sei que está. – Me dá o frasco.

Marcela parece congelada no mesmo lugar. Os olhos dela estão brilhando e eu demoro até perceber que é por culpa de lágrimas.

– Ele nunca ficou desse jeito...

– Marcela – eu insisto, nervosa. O lobo está na nossa frente e se não fizermos alguma coisa agora, sem dúvidas vai arrancar a minha cabeça. – Marcela, o frasco.

Ele late na minha cara. O som é tão grave e alto que poderia ser um trovão. Posso sentir no meu rosto o hálito fétido animal e os respingos gosmentos da sua saliva. Marcela, graças a algum Deus misericordioso, finalmente parece despertar e com movimentos mínimos passa o frasco alongado pras minhas mãos.

Ajude Yasmin e saiam daqui.

Ele late outra vez e eu me viro na outra direção exatamente no momento em que suas patas traseiras preparam o salto para atacar. Por questão de centímetros eu escapo da sua investida e entro em uma corrida desesperada para mais fundo ainda dentro da floresta.

Meu coração parece prestes a entrar em convulsão e pulsa pesadamente em cada artéria do meu corpo. Meus pulmões ardem com as arfadas sofridas que preciso dar porque meu nariz está em pedaços. Corro tão rápido que mal posso sentir as minhas pernas e ainda assim não é o suficiente. Ele vai me pegar, é tudo o que se passa pela minha cabeça. Ele vai me pegar, ele vai me pegar, seja rápida, Júlia, ele vai me pegar.

O lobo está no meu encalço e me persegue rosnando e se chocando contra as árvores. Eu me enfio pelas passagens mais estreitas possíveis para conseguir alguma vantagem. Preciso de alguma coisa, preciso de qualquer coisa que me ajude no que eu tenho que fazer.

Um nó de raízes protuberantes aparece no meu caminho, alta o suficiente para precisar de um bom salto para ser atravessada e com um espaço livre na parte debaixo por onde um animal poderia passar tranquilamente. Um animal pequeno.

Não vou conseguir correr por muito tempo e essa pode ser a minha única chance aqui. Se não conseguir e ficar presa, ele vai mastigar minhas pernas como se fossem chiclete. Preciso de sorte. Não, mais do que isso. Preciso de um verdadeiro milagre.

Eu corro na direção do arco feito do emaranhado de raízes e, quando estou perto o suficiente, me atiro para frente com um grande impulso. Galhos secos arranham meu corpo quando deslizo pelo buraco estreito mas consigo chegar ao outro lado sem ficar presa em parte alguma.

No mesmo instante o lobo imenso se joga na minha direção. O seu corpo é grande demais para conseguir fazer a mesma passagem que eu e a cabeça engancha nas raízes. Ele retesa o corpo inteiro e se debate para se soltar, fazendo tanta força que começa a desenterrar as partes mais profundas das raízes. Ele poderia arrancar a própria árvore. Se conseguir se soltar eu não tenho mais chance nenhuma. Seja rápida.

Eu abraço o seu focinho enorme para que ele pare de se mexer e enfio a outra mão dentro da sua boca, deslizando pela língua quente e molhada e solto o frasco o mais dentro que alcanço da sua garganta. A boca dele se fecha no meu braço e a dor que sinto é grande demais para não gritar. Não consigo segurar a sua cabeça por mais tempo e ele se mexe furiosamente, afundando as patas no chão de terra e sacudindo a cabeça para sair da armadilha ainda com meu braço preso entre os seus dentes. A tortura demora pelo que parece ser uma eternidade até que o lobo diminui a força nas mandíbulas e tomba a cabeça grogue no chão.

Meu braço ainda está preso na boca dele, três dentes seus enfiados na altura do meu ombro. A sua cabeça é pesada demais pra que eu consiga move-la. Preciso das mãos e os pés pra conseguir abrir uma pequena fresta e desencaixo meu braço da sua mordida, berrando de dor. Sangue escorre dos buracos abertos na manga da minha camiseta. Não tenho coragem nenhuma de puxar os restos do tecido pra ver como está a ferida, então só abraço o braço que não consigo mais mexer e me encosto na árvore velha, chorando pelo pânico passado.

O lobo do meu lado aos poucos vai mudando de aspecto, de maneira muito mais gradiente e pacífica do que o que vi acontecer antes. O seu tamanho diminui até que ele pareça um cachorro muito grande. As costas ficam retas, as patas tomam o formato de braços e pernas e pêlos abaixam e clareiam ficando com aparência de pele outra vez. O focinho e a mandíbula encolhem e somem os traços de besta, formando o rosto desacordado de Vinicius como se ele fosse de massa de modelar. Em menos de um minuto a criatura não existe mais e Vinicius, só Vinicius, está caído do meu lado. Nu e com a boca suja do meu sangue.

O pensamento que me vem é tão rápido e sinistro que atravessa minha cabeça como uma bala de pólvora. Vinicius está morto. Marcela me deu algum veneno para acabar com ele e ele está morto agora. Não consigo vê-lo se mexer. Ele está morto. Eu o matei.

Me arrasto até o seu corpo porque preciso ter certeza se ele está respirando ou não. Meu braço envia ondas cruéis de dor a cada movimento meu pra todo meu corpo, mas preciso saber. Eu me abaixo ao lado do seu rosto e só então consigo sentir a respiração leve e quente dele soprando contra minha bochecha gelada. O alívio que sinto é gigantesco e parece percorrer minhas veias como morfina.

– Júlia?

Os olhos dele estão percorrendo meu rosto, arregalados, surpresos, castanhos como mel puro. Não posso evitar o que acontece em seguida. Entende, meu impulso é a reação mais natural possível. Eu aproximo meu rosto do dele e sinto o seu calor agradável. Eu beijo Vinicius.

A sensação aquece meu peito. Parece trazer paz pro meu corpo inteiro e eu consigo relaxar pelo que deve ser a primeira vez na noite, ou na vida inteira. A sua boca tem gosto de sangue. Meu sangue.

– Você me devia isso – eu digo e me arrasto de volta até encostar as costas na árvore velha, abraçando pelo cotovelo o braço que não consigo mais mexer.

Vinicius tenta se levantar e bate com a cabeça no arco de raízes e gravetos. Realmente, é ele. Vinicius. Nu. Na minha frente. Não sei explicar o porquê, mas não sinto mais vergonha ou medo algum. É como se toda a tensão que quase me partiu em duas tivesse esmagado todas as outras preocupações mundanas da minha vida. Depois de ser perseguida e quase devorada por uma besta furiosa me preocupar em sentir vergonha por estar com alguém sem roupas ou por ter acabado de beijar a grande paixão da minha vida e também namorado de uma assassina em potencial parece bobagem sem sentido.

– O que aconteceu? – Vinicius pergunta, confuso, levantando com dificuldade e passando uma das mãos pelo cabelo bagunçado.

– Muita coisa – eu respondo. – É uma história fantástica, na verdade. Mas acho que você vai querer algumas roupas primeiro.

– Ah – ele faz, se dando conta da nudez pela primeira vez. Está coberto por arranhões que não parecem muito graves e alguns hematomas menores ainda, nada que indique uma luta pesada com um ser azul misterioso ou uma caçada por carne humana dentro da floresta. – Sinto muito por isso.

– Sem problema.

Ele hesita, meio desconfortável.

– Será que pode olhar pro outro lado?

Balanço a cabeça.

– Acho que não.

Eu quase morri. Eu mereço.

Um grito agudo percorre a floresta tão alto que quase estoura meus ouvidos. É Marcela, bem na nossa frente, com um ser azul do lado que imagino ser Yasmin em uma roupa de fada dos dentes coberta por terra e meio rasgada. Imagino que Marcela vá dar um escândalo e fazer uma cena por causa do namorado seminu na frente de uma palerma como eu, ou, pior, que tenha presenciado o beijo que acabou de acontecer, mas não consigo me importar com isso, e, se ela fizer muita graça, tenho bastante certeza que dessa vez o plano de meter uma pedra na cabeça dela não vai ficar só na imaginação.

Mas Marcela continua gritando e o grito dela não é de surpresa ou de raiva. Ela está gritando de verdadeiro horror. É quando percebo que ela nem mesmo está olhando para nós. Ela está olhando para algum ponto acima, muito além. Eu viro o rosto pra cima com alguma dificuldade e o que encontro congela meu sangue. Meu coração parece parar de bater.

Um corpo balança bem acima da minha cabeça, pendurado em um dos galhos por uma corda no pescoço.


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Notas finais do capítulo

Então, gente, eu precisei sair no sábado (último dia pra terminar a história) e fiquei o dia inteiro fora, daí fiquei com raiva da história por não conseguir concluir a desgraça a tempo e só fui pegar nela de novo hoje ajsakhekjhajsSinto muito pela demora e pela propaganda e falsas esperanças. Mas, já que não bati o prazo, resolvi aloprar mais ainda. E daí surgiu uma criatura enforcada no meio da papagaiada toda, porque não é como se a treta já estivesse ruim o suficiente.Que fim levou Eduardo? O que é Yasmin? Alguém vai conseguir roupas pra Vinicius, o Gostoso? Marcela vai furar os olhos das meninas pra ninguém ficar manjando o material do namorado? E quem é o enforcado?Tudo isso (e mais! porque sim, tem mais!) no próximo capítulo, que eu não posso prometer que vai ser o fim ou não, já que essa história devia ter acabado desde o segundo, mas eu tô aqui e tô empolgada e adoro ficar metendo ideias super ideiasísticas no meio!