Depois

Eu sempre fiz planos. Eu sempre soube o que eu queria para a minha vida após a Intervenção. Iria para a faculdade; depois de me formar o plano era arrumar um bom emprego e me casar com o homem dos meus sonhos. Logo em seguida viriam os filhos, um menino e uma menina, e então um cachorro. Eu e minha futura família perfeita viveríamos em uma grande casa, confortável e aconchegante. Meu marido me traria café da manhã na cama todos os dias, e depois nós dois, antes do trabalho, levaríamos as crianças para a escola. Já a noite, compareceríamos a vários eventos e festas juntos, enquanto as crianças ficariam com a babá. No dia seguinte seria mais ou menos a mesma coisa. Essa seria nossa rotina feliz. Sem complicações, sem problemas, sem inconveniências. Só que nem tudo sai como a gente planeja. Em um momento você tem tudo esquematizado, e no outro... Nada mais existe. Nada de um futuro seguro com uma família perfeita. Não. Nada disso.

Posso lhe dizer, que se algo desse tipo um dia acontecer com você, pode significar duas coisas: sua vida desmoronou e esse é o fim; ou alguém chegou e lhe trouxe à vida, fez com que tudo desmoronasse para que depois vocês dois pudessem construir juntos um novo futuro. Então agora adivinhe qual dessas duas opções aconteceu comigo. A segunda, obviamente. Pode parecer que essa é a melhor, mas de onde eu venho encontrar alguém que tenha o poder de lhe fazer perder o rumo e o foco, é a pior coisa que se pode acontecer.

Agora

Em Aurora, a vida é fácil. Tudo vem praticamente de mão beijada para você. O estudo, o emprego, a família. Enfim, tudo. Basta seguir as regras, e nada nunca dará errado. Um futuro instável é o mínimo que você vai ter. As regras são simples, porém se descumpridas as punições são severas. É claro que ninguém de Aurora ousa desobedecer as restrições impostas pelo governo, todos nós estamos cientes das consequências e das seringas cheias de veneno injetável, mas ainda assim existem aquelas pessoas que ultrapassam os limites da Grande Barreira e vão se arriscar com os Renegados, indo em busca de algo que eu não consigo compreender. Afinal, qual é o propósito de se fugir para o meio do mato se temos tudo o que precisamos bem aqui? Loucos, são o que eles são. Loucos em procura de algo que nem eles mesmos sabem o que é.

Então talvez eu seja louca, mas provavelmente não. É só que, as vezes, sinto falta de alguma coisa que eu não faço ideia do que é. Pode ser uma intuição, ou mais provável minha imaginação. Tanto faz. Se sentir sozinha em meio a uma multidão não é normal, eu acho. Como agora, por exemplo. Estou sentada no meu quarto no Domínio Feminino com minhas duas melhores amigas, e ainda me sinto só, de novo.

– Rebecca! Rebecca, você está dormindo de olhos abertos ou o quê?

– Talvez ela esteja viajando em uma outra dimensão.

– Não seja idiota, ela só está desatenta.

Olho para as garotas que estão tentando me chamar a atenção. Franzo a testa.

– Desculpem. Só estou um pouquinho desatenta.

– Viu? Eu não falei? - diz Isadora erguendo uma sombrancelha perfeita. Melissa olha para ela e revira os olhos, então se volta para mim.

– Estávamos falando sobre como você e o Eros ficam lindos juntos. Sério, vocês foram jeitos ao para o outro. - agora é a minha fez de revirar os olhos. Eu amo a Melissa, é uma das minhas melhores amigas, mas as vezes ela é tão irritante.

– Já vai começar...

– Não, é sério. Muito sério. Acho que vocês vão se casar um dia. Vai ser incrível, já posso até imaginar.

– Então imagina. Só imagina, ok? O Eros é lindo, inteligente, charmoso e tudo o mais, mas acho que nós não fomos feitos para dar certo. - digo me ajeitando na cama.

– Como não? Ele é o Eros Ambrosio, o garoto mais perfeito de Aurora. Você é uma estúpida se não ficar dele, quer dizer, ele está comendo na sua mão Rebecca! Acorda! - Isadora diz como se isso fosse a coisa mais óbvia.

– Não é porque todas as garotas gostam dele que eu também tenho que gostar. Além do mais...

– Quem falou em gostar? - abro a boca, mas Isadora não espera uma resposta. - Estamos falando de negócios, conveniência. Gostar, amar e se apegar é coisa da Antiga Ordem. As pessoas no passado construiam as suas relações em cima dessas coisinhas, e veja só no que deu. Isso acabou com eles.

– Mas ainda podemos nos apaixonar Dora, casar por amor. - Melissa começa.

– Sim, nós podemos, mas não devemos. - Isadora prepara o discurso. Eu até já sei o que vem por aí. Coisas da Nova Ordem, coisas da Antiga Ordem. - O que Aurora nos ensinou? Ahan? Temos que pensar com o cérebro, e não com o coração. A Antiga Ordem fazia o contrário, e esse foi mais um dos inúmeros erros deles.

– Ok. Ok. Eu e a Melissa já entendemos. Será podemos pular para a parte em que a gente arruma alguma coisa deliciosa para comer? Estou morrendo de fome. - tento mudar de assunto. Dora olha séria para mim por um segundo e então abre um sorriso.

– Acho uma excelente ideia. - diz ela, puxando a mim e a Melissa pela mão.

Vamos em direção ao refeitório do Domínio Feminino, Isadora anda tão rápido que eu e Melissa mal conseguimos alcançar seus passos. Pelo visto não sou só eu que estou com fome aqui.

O Domínio Feminino fica em Lótus. Lótus é uma parte de Aurora destinada a aqueles que ainda não foram submetidos a Intervenção, é aqui que nós esperamos chegar a nossa vez. Lótus é dividida em dois, o Domínio Feminino - o lar as garotas - e o Domínio Masculino - onde vivem os garotos. Esses dois complexos são separados para melhor organização e para evitar, digamos, deslizes por ambas as partes. Nunca se sabe. Só aqui em Lótus que ocorre essa divisão, pois depois da Intervenção, a pessoa já é considerada uma adulta responsável por seus atos, portanto ela pode viver em Aurora da maneira que bem entender, contanto que não infrinja nenhuma das regras, é claro.

Chegamos ao refeitório que por sinal está lotado. O refeitório do Domínio Feminino é quase que totalmente branco, como toda Aurora. Tudo é tão clean. As paredes são brancas e algumas são espelhadas, assim como as mesas que também tem detalhes em vidro. Há máquinas de comida desidratada por todo lado, mas o que nós queremos mesmo agora é de algo que tenha um belo sabor. Nos sentamos em uma das mesas no canto direito do refeitório, perto de uma enorme janela. Olho para as garotas que estão decidindo o que vamos comer, e em seguida para o lado de fora da janela. Enquanto aqui dentro é tudo tão branco, lá fora é uma confusão de cores. O verde da grama, o azul do céu, o amarelo dos Ipês, e o vermelho da blusa de um garoto. Olho mais uma vez, só que com mais atenção. Semicerro os olhos. Sim, um garoto. O que ele pensa que está fazendo no meio do jardim do Domínio Feminino? Problema é a palavra que me vem a mente. Um belo e delicioso problema vestido de vermelho.