O silêncio era ensurdecedor. Distância começava a se sentir solitária, mas lutava contra seus próprios sentimentos, pois ainda não estava pronta para a conversa que teria com a amiga. Sabia que teria que explicar muita coisa, partes da sua história que ninguém conhecia, além dela própria e do Tempo. Iria contar tudo, desde antes de seu nascimento até o rompimento entre os amantes. Só assim Solidão entenderia e a perdoaria. Tinha muitas esperanças de que contando a verdade as coisas voltariam ao normal. Não completamente normal, mas pelo menos elas não ficariam tão distantes.

Distância riu com a ironia de seus pensamentos. Talvez fosse isso que Ele quisesse. Que ela cumprisse o que fora feita para fazer e parasse de interferir nos sentimentos alheios. Mas... Ela sentia... Se tivesse sido criada sem poder sentir, talvez esse pensamento fizesse sentido.

“Não. Ele não quer isso. Nosso criador nos ama. Não deseja nosso sofrimento. São nossas escolhas que definem o nosso futuro.”

Um brilho iluminou os olhos de Distância. Um brilho tão forte e contagiante que poderia tirar alguém da escuridão e do abismo da tristeza. Um grande sorriso se formou em seus lábios e ela sentiu uma pequena mão segurar a sua.

Olhou para baixo já adivinhando quem seria. Esperança tinha a cabeça inclinada para trás e ria para Distância transbordando de alegria. O arco-íris que enrolava seu pequeno corpo parecia mais radiante que nunca e refletia seu brilho no cabelo verde, repleto de folhas e flores.

Normalmente Distância acharia tal visita muito incomum. Aliás, estava recebendo muitas visitas ultimamente, o que a deixava curiosa para entender o motivo. Os sentimentos quase nunca a visitavam e agora batiam à sua porta como se fossem velhos amigos. No fundo de seu coração, sabia que eles estavam mais próximos porque estava sentindo tudo com mais intensidade, estava se deixando sentir, coisa que raramente permitia. Não gostava de se sentir dominada, como um objeto, mas aos poucos entendia que não era eles que a dominavam, mas sim ela que dominava seus próprios sentimentos. Não completamente, mas de certa forma conseguia mantê-los perto de si ou afastados.

A garotinha soltou de sua mão e começou a saltitar em círculos. Onde seus pequenos e descalços pés tocavam, nasciam flores e grama. Logo as lajotas da cozinha desapareceram e deram espaço a um jardim de pequenos girassóis. Distância se deixou cair entre eles e um sentimento de déjà vu a dominou. Esperança caiu ao lado dela e começou a fazer movimentos com os braços e pernas abrindo e fechando-os, como se desenhasse um anjo. Suas risadas infantis alegravam o ambiente ecoando pelo cômodo que já não parecia uma cozinha. Borboletas começaram a sair debaixo de seu corpo, como se estivessem nascendo do chão. Elas voaram até o alto e quando alcançaram o teto, transformaram-se na mais pura e branca neve.

Dona Distância foi tomada por sentimentos prazerosos, que a faziam se sentir como uma criança novamente. Abriu a boca sentindo os flocos derreterem em sua língua, fazendo a nostalgia vir à tona. Seus olhos ficaram pesados e sentiu-se afundar em suas mais doces e antigas memórias.

“Distância estava brincando com Smelly, o gato fedido, quando viu um borrão dourado e vermelho correndo em sua direção. Antes que pudesse pensar, foi atropelada por uma coisa grande e fofinha.

— Rudolph! — exclamou a garota e abraçou a rena fortemente. A rena lambeu sua bochecha com vontade, parecia extremamente feliz de vê-la.

— Miargh! Saia de cinnm-ma de mim-aun seu palhaço peludo! — Smelly ficou com os pelos eriçados e seus olhos ferozes e ariscos fizeram Distância recuar. O gato virou as costas e foi embora com a cauda erguida.

A menina se levantou, sacudindo o vestido azul que agora estava todo amassado e cheio de grama misturado com pelos felinos. Seus cabelos negros possuíam algumas mechas brancas, era o contraste perfeito que valorizava seus olhos grandes e alegres. Aparentava ter seus dezesseis anos, jovem e cheia de energia.

— Veio me visitar? — a garota sorria de lado a lado enquanto acariciava os pelos dourados. A rena sacudia a cabeça desesperadamente e pulava sem parar, como se tentasse dizer algo à Distância.

— Você quer brincar? Eba!!

A garota começou a pular e brincar com a rena que continuava fazendo sinais desengonçados para ela. Ela ria e puxava ele de um lado para o outro, fazendo-o ficar um pouco tonto. A menina parou quando a rena apoiou os dois cascos dianteiros no peito da menina, que não entendeu a brincadeira. Rudolph bufava e olhava para a casa de Distância, como se tentasse dizer algo. A menina, sem entender direito, o levou para dentro deixando-o livre para fazer o quer queria. Ele correu até a cozinha e ficou de frente para um calendário desenhado com girassóis.

— O que foi? Esta com sede?

Ele balançou a cabeça negativamente e apontou o nariz que brilhava fortemente para o calendário. Uma data ficou vermelha, fazendo a garota entender.

—Oh... É véspera de Natal. Isso significa que ganharei meu presente daqui uns... — contou nos dedos e continuou: — Cinco meses? Bem não sei direito, como eu moro longe, ele vai demorar pra chegar e... — algo a fez parar de falar, então a “ficha caiu”. — Espera! É véspera de Natal!!! O que você está fazendo aqui, Rudolph? Você precisa entregar os presentes quando anoitecer!

A rena bufou, como se tentasse explicar o ocorrido, Distância não entendia nada, mas sabia o que fazer.

— Vamos te levar para o Norte! Bom... O Norte fica para cima, né?

A rena concordou parecendo animada.

— Eu não costumo fazer muito isso, mas vamos tentar... Para o Norte! — a garota exclamou fechando os olhos com força e quando os abriu estava em outro lugar.

Os dois estavam cercados de areia e água. O sol brilhava fortemente sobre suas cabeças e o calor era imenso.

— Acho que não estamos no Norte... Não devo ter feito direto. Tempo não serve nem pra me ensinar como me transportar para os lugares direito! Ele é um bobo! — respirou profundamente e tentou: — Para o Norte!

Dessa vez, quando abriu os olhos, se viu entre muitos humanos. Eram dois grupos separados por algumas centenas de metros. Ouviu uma voz masculina berrar do lado direito:

— Atacar!

O coração da garota quase saltou do peito com o susto. Estava no meio de uma guerra! A rena relinchou assustada e começou a esfregar os cacos nas costas dela, desesperadamente. Os homens com vestimentas rudimentares ergueram os machados e lanças e começaram a correr na direção dos dois. Distância berrou com força:

— PARA O NORTEEEEEEEEEEEEE!!

Dessa vez sentiu que tinha acertado antes mesmo de abrir os olhos. Os ventos congelantes do Norte a deixaram tremendo, mas Rudolph pareceu contente. Ele lambeu o rosto dela, como se agradecesse, e correu rapidamente sumindo no horizonte branco.

A neve começava a cobrir todo o corpo da garota que não sentia seus dedos. Havia trazido a rena, agora precisava voltar.

— Para casa.

Abriu os olhos sentindo seu corpo balançar. Estava num navio pirata. Felizmente eles não a viram, pareciam enfeitiçados pelo mar. Quando Distância olhou atentamente, viu as sereias nadando perto, algumas cantavam e outras mostravam os dentes afiados

— Essa não!”

Distância acordou, vendo que estava sozinha no chão de sua cozinha. Tudo voltara ao normal e Esperança já havia ido embora. Sorriu ainda lembrando das confusões em que havia se metido e pensou na amiga. Agora sabia o que fazer. A verdade precisava ser dita.