Minha Rosa De Tinta escrita por Ganimedes


Capítulo 5
V • Ressurreição


Notas iniciais do capítulo

OLÁ GENTE, gostaria de agradecer à maravilhosa Victória L que me deixa mais feliz com cada comentário e ao fofo Joseph Lawrence. Boa leitura, podem ficar chocados mas esse é o penúltimo capítulo



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Heitor.

Sua voz, mesmo muitas horas depois, ainda ecoa perfeitamente definível dentro de minha mente. Sou o último a me levantar da mesa depois do jantar. Não consigo pensar direito, aquilo tudo ficou marcado a fogo dentro de mim, e a cena se repete em loop na minha cabeça. Não o vi desde o que aconteceu, e não sei se estou preparado pra ver.

Sua voz é tão... doce. Não consigo me aceitar dizendo isso, mas é exatamente como posso descrever.  Entendo o recado de que já é hora de dormir quando desligam as luzes da sala de jantar mesmo eu estando lá ainda. Me levanto no escuro e caminho até o corredor, me orientando mais pelo barulho que vem dos quartos do que pela minha visão. Pedaços de luz estão dançando em minha visão, e algo me diz que nunca estive tão perto de desmaiar, mas me mantenho forte.

Entro em meu quarto, e meus companheiros já estão em seus sonos altos. O rosto de... Heitor, parece me acompanhar. Mateus acorda e olha pra mim, bêbado de sono.

– Já voltou? – Ele me fala, e não entendo o que ele quer dizer.

Então uma montanha cai sobre minha cabeça. Me esqueci completamente do meu encontro com Ju na praia! Eu estava tão chocado com tudo que nem me lembrei. Havíamos marcado às dez, e já são onze. Conto com a folga habitual de que ela costuma se atrasar uma vida pra se arrumar e parto em direção à praia.

Lá fora a noite está fria e iluminada pela Lua quase cheia. Caminho com facilidade pelos jardins, evitando olhar pra parte das rosas e a parte detrás da casa. Atravesso a estradinha de tijolos que leva até a entrada da propriedade, me malhando mentalmente por ter esquecido tão completamente do encontro.

Antecipo o cansaço pela caminhada de mais de quinze minutos quando, ao passar pelo haras, vejo um vulto estranho se mexendo na luz fraca da Lua.

Me sinto acuado. Pode tanto ser Heitor quanto qualquer outra coisa. É besteira, eu sei, mas o velho que morava na beira do lago era um contador de histórias excepcional, e ainda fico pensando se realmente não existe o tal Bicho do Lago.

Me aproximo devagar, confiando que a escuridão da noite está ao meu favor, e o que vejo faz minhas poucas estruturas que sobraram desabarem.

– Ju? – Digo, sem acreditar no que vejo.

Ju está encostada na parede do estábulo dos cavalos, se agarrando efusivamente com o tratador. Aquele homem de dois metros de altura! Minha visão não consegue assimilar, e a fúria impera sobre mim.

Sua cachorra! Não achei que você pudesse fazer isso! – Digo, minha voz soando reverberante por todo o haras.

– Caio, meu amor, c-calma, ela diz, tentando vestir a parte de cima da blusa.

Nada de calma! – Grito, e saio pisando forte até a floresta.

Minha visão se torna turva, por tantas coisas acontecendo no mesmo dia, que acabo sem saber onde estou. Completamente perdido naquele lugar desconhecido. A única coisa que consigo fazer é sentar em algum lugar e deixar a exaustão me dominar, me lembrando apenas da Lua refletindo em meus olhos.

Acordo com algo cheirando meu nariz. Me levanto num sobressalto e algo parecido com um rato do mato sai correndo pra longe de mim. Avalio minha situação. Minha roupas estão sujas de terra, minha cabeça está latejando de dor e o sol já nasceu. A lembrança dos acontecimentos da noite passada fazem minha cabeça doer ainda mais e tento apagá-los por alguns segundos dos meus pensamentos.

Volto andando por aquilo que eu acho ser o caminho até a casa. Pela minha intuição deve ser mais ou menos seis da manhã, ou seja, meus colegas da escola ainda estão dormindo. Isso é uma boa notícia, pois não notarão que passei a noite jogado na floresta.

Lembrar de Ju faz ódio crescer em meu coração, e ando com cada vez mais rapidez, até que vejo a casa e procuro chegar disfarçadamente. Os hóspedes acordavam às sete, mas mesmo antes do Sol nascer os funcionários já estavam de pé. Se eles me verem, vão querer saber onde estive e acabarei tendo que contar que fui traído.

Aproximo-me cautelosamente, mas algo me faz parar no meio do caminho. Não consigo assimilar o que vejo, e pisco várias vezes pra ter certeza de que isso não é minha cabeça recentemente perturbada me enganando.

Os jardins onde Heitor costumava ficar estão aparentemente normais para qualquer outra pessoa que passasse ali, mas eu percebo com um choque o que não está ali. Todas as rosas desapareceram. Há apenas os arbustos verdes e sem nenhuma flor especial. Uma gota de suor se forma na minha testa, e não posso deixar de olhar para o jardim, que costumava estar repleto de rosas até a noite passada.

A noite passada... será que Heitor ficou com raiva de mim e arrancou todas as flores? Isso me parece meio difícil, pois eram muitas. Um turbilhão passa por minha cabeça nesse momento, e lembro que tenho que estar no meu quarto antes que meus colegas acordem.

O caminho até lá não passa de um borrão, e antes que eu me dê conta já estou deitado na cama. O alarme de um de meus companheiros de quarto toca alguns minutos depois, e todos descemos para o café.

Quando estamos todos à mesa, percebo que tem muitas pessoas olhando pra minha cara, que deve estar péssima. O tempo passa indistintamente, até que em certo momento Ju passa ao meu lado, e nossos olhares se cruzam. O desdém em seus olhos transforma minha fúria em frustração e tristeza. Como eu me enganei esse tempo todo com ela?

Termino de comer e penso em voltar pro meu quarto, mas subitamente me lembro de uma coisa.

Ando até o corredor dos quadros, e procuro aquele da rosa branca, que eu tinha achado bonito. Encontro-o no mesmo lugar, ao lado da foto do casal. Observo a forma de pintar, a textura e as cores que foram usadas. Na mesma hora sei que ele é idêntico aos que eu vi na cabana de Heitor. Mas, diferente daqueles, esse deve ter uns cem anos de idade.

– Gostou dos quadros, foi? – Ouço uma voz feminina me perguntar ao meu lado.

Viro-me e vejo a mocinha que arruma a mesa, e que provavelmente também é a cozinheira da casa. Ela devia ter uns cinquenta anos, mas seu olhar era juvenil. Os cabelos começando a ficar branco em meio aos fios negros.

– É... foi, são muito bonitos. – Respondo.

– Eles estão aí desde que cheguei nessa ilha, quarenta anos atrás. O casal do lado eram os antigos donos daqui, linda história de amor deles. – Ela aponta para dois pedacinhos de pano emoldurados. Em um deles havia um camafeu e no outro algo parecido com uma esmeralda.

Ficamos ambos olhando para os quadros até que decido perguntar.

– Hun... ei, aqui tem algum jardineiro?

Ela parece surpresa com a pergunta.

– Tem sim, o Nestor.

– Quantos anos ele tem? – Pergunto.

– Vai fazer sessenta daqui a um mês. – Ela responde, e decido continuar.

– Não tem nenhum adolescente trabalhando aqui?

Ela parece pensar um pouco.

– A pessoa mais jovem daqui é nosso tratador de cavalos, o Beto, mas ele tem vinte anos.

Algo que parece ser medo se forma em meu coração. Se aquele palhaço era a pessoa mais jovem... Resolvo prosseguir com as perguntas.

– Essa rosa é bonita. – Digo, apontando para o quadro, fingindo desinteresse. – Tem quanto tempo que tiraram elas desse jardim?

Ele me olha realmente surpresa dessa vez.

– Como você sabe disso? – Ela me pergunta, os olhos arregalados. Fico com medo de me comprometer e não respondo. – Fazem mais de cem anos que nenhuma rosa floresce aqui nesses jardins, as últimas morreram com os antigos donos.

Não consigo acreditar no que ela está dizendo. Mas como pode... eu segurei naquelas rosas, as vi desde que cheguei aqui pela primeira vez. Saio correndo pro meu quarto, eu tenho que tirar a prova.

– Espere... – Ela me grita, mas já estou longe, subindo as escadas.

Subo como um raio para meu quarto, e vou direto pra gaveta do criado-mudo. Abro-a e encontro apenas papéis e um relógio quebrado. A rosa que Heitor havia me dado não está lá. Procuro debaixo da cama, do guarda-roupa, mas a rosa simplesmente desapareceu.

Sei que minhas mãos estão tremendo agora, e a tensão está estampada na minha cara. É como se todas as coisas que tivessem a ver com Heitor tivessem se desmaterializado no ar.

Desço as escadas com rapidez e dou a volta na casa, correndo até onde eu sabia que ficava a barraca com os quadros e a cama de Heitor. Fico um pouco mais tranquilo quando vejo que a barraca está lá, mas ela parece bem mais velha, a madeira cheia de buracos. Empurro a porta e sinto vontade de gritar de desespero quando vejo que está completamente vazia. Teias de aranha em todos os cantos, como se coisa viva não passasse por ali desde a independência do Brasil.

Me afasto devagar, pensando no que aquilo significava. Heitor, tudo aquilo, ou foi invenção da minha cabeça ou... Sinto calafrios percorrerem meu corpo. Não é possível que...

Saio dali o mais rápido que posso. Mas eu sei que ele me ajudou a cuidar de meu pé quando caí do cavalo, e se bem que... ele nunca aparecia do lado de outras pessoas. Todas as vezes que “conversamos” estávamos apenas nós dois.

O resto do dia passa sem que eu lembre de nada que acontece. Repasso na minha cabeça tudo que aconteceu nos três dias anteriores. Não posso conceber que Heitor não exista. Eu segurei em seu braço, ele era bem real, de carne e osso.

Procuro ficar sozinho o máximo que posso, pra tentar assimilar isso tudo. Estou sentado num tronco de árvore caído, na beira da propriedade, olhando para o horizonte da mata lá longe, perdido em pensamentos, até que sinto alguém tocar em meu ombro.

– Ei, Caião, não vai se arrumar não? Hoje de noite vai ter luau, cara, melhor ir tomar banho porque vai ser daqui a pouco. – Diz Mateus.

Pela primeira vez percebo que o Sol está se pondo. O céu está pintado de um azul quase escuro. Me levanto e vou com Mateus até nosso quarto. Tomo um banho e estou pronto para o luau, mas sei que não vou me divertir. Minha felicidade desapareceu junto com a rosa branca da gaveta.


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