Minha Rosa De Tinta escrita por Ganimedes


Capítulo 4
IV • Portas do Céu




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O almoço do dia seguinte é talvez o melhor de todos até agora. Minha perna já está bem melhor depois de toda a noite e manhã de repouso, e as brincadeiras de meus amigos me fazem me sentir melhor. Ju já parece bem mais amena em relação a mim, me abraçando a toda hora. Vejo uma de suas amigas, talvez a menos patricinha de todas, olhar pra cena com o olhar torto, e não entendo o motivo.

É impossível negar que me senti tentado diversas vezes pela manhã a me levantar e ir procurar o menino. Já era questão de honra descobrir alguma coisa, pelo menos seu nome, ou ouvir sua voz de algum jeito. Um impulso estranho se manifesta dentro de mim aos poucos, e eu prefiro acreditar que é o senso de retribuir o fato de que ele me ajudou lá na pista dos cavalos.

– A-di-vi-nha, Caio, meu amor. – Diz, Ju, se aproximando de mim, baforando seu hálito de morango no meu rosto. – Hoje é nosso terceiro dia na ilha né, daí deixaram a gente fazer o que a gente quiser! Amanhã é o último dia e vai ter o Luau, então vamos aproveitar essa noite.

As intenções por trás dessa proposta são óbvias, e me vejo aceitando. Ju anda num fogo desde que chegou aqui, acredito que deve ser o clima tropical acentuando seu desejo. Ela faz mil planos para o dia e combinamos de nos encontrar de noite na praia.

Digo isso porque foi a única parte de seu discurso que peguei. Meu olhar desviava inconscientemente a todo momento para a janela, na direção dos jardins, procurando algum indício de que o menino está lá. Há um funcionário andando pra lá e pra cá, molhando a grama com uma mangueira, mas é um adulto.

Assim que Ju termina de falar, me junto aos meus amigos, que estão falando sobre a retomada do campeonato de futebol assim que as férias terminarem. Eu sou um dos atacantes do time, mas não me sinto nem um pouco animado em participar da conversa. Fico na roda, mas não falo nada. Meu pensamento está longe, – ou não tanto, apenas a alguns passos dali, no jardim. Fico viajando na maionese por alguns minutos, e meus amigos se dispersam. O único que sobra, Mateus, olha pra minha cara e estala os dedos na frente dos meus olhos, me fazendo voltar dos devaneios.

– Ué meu brother, não dormiu o suficiente não, foi?

Olho pra ele, tentando me estabelecer na realidade.

– Não é isso, é só que... – Prendo minha própria língua. Eu e Mateus somos amigos desde crianças, e era simplesmente natural eu contar qualquer coisa que me acontece a ele, mas evito falar sobre o que está acontecendo dessa vez.

De acordo com a expressão dele, é óbvio que ele sabe que estou escondendo algo.

– Vamos lá, meu velho, você sabe que pode contar comigo pra contar qualquer coisa. – Ele diz, se encostando na cadeira, de braços cruzados, como sempre se apoiava em qualquer lugar em que pudesse fazê-lo.

Será que é muito vergonhoso contar que não consigo parar de pensar em um menino?

– É, que... erh. Mateus, você acha que é normal...

– Hun? – Ele diz, me impelindo a continuar.

– Um menino... ahn, uma pessoa gostar de outra com a qual nunca falou? – Me pego contando uma meia verdade. Ele desconfia se eu falei realmente o que eu queria, mas acaba aceitando responder.

– Acho perfeitamente possível. Olha, você sabe que eu sou seu amigo e quero seu melhor.

Fico calado, esperando ele concluir o que quer dizer.

– E, cá entre nós, eu não vejo a Ju fazer seus olhos brilharem há muito tempo. Eu posso estar enganado, mas eu não sei se vocês se gostam de verdade.

Eu paro, encarando-o. A verdade-que-nunca-foi-dita parece me descer como uma pedra enorme pela garganta. Eu não amo Ju. Há muito tempo não sei o que é beijá-la com amor. Eu odeio seus defeitos e suas manias. Será que é isso que estou sentindo ultimamente? Esse aperto no coração?

Minha demora em responder faz com que as palavras dele acabem sendo verdade confirmada.

– Se você está gostando de outra pessoa, tanto faz se você nunca falou com ela ou não, vá em frente. Melhor amar alguém de verdade do que insistir no erro.

O conselho dele parece me consolar. Dou um abraço de companheiro nele, e ele parece saber que estou passando por algo difícil, pois dá uns tapinhas no meu ombro.

– Valeu, cara. – Digo, sinceramente agradecido.


Algumas horas depois, estou sozinho jogando bola, chutando-a na parede pra tentar me recuperar do finzinho de dor no tornozelo. A cada chute consigo visualizar os momentos desnecessários que passei com Ju, e sei que ela também não me ama. Passamos muito pouco tempo juntos do outro de bom grado.

Minha mente viaja a mil, até que, pelo canto do olho, um movimento na parte de trás da casa chama minha atenção. Não há mais ninguém por ali, e com um pouco de esforço consigo ver o menino do jardim carregando um embrulho de formato quadrado, como uma porta, só que menor.

Meu coração dispara. Decido segui-lo, contornando a casa e chegando até a parte de trás, onde nunca havíamos ido. Ando furtivamente, me encostando na parede de vez em quando, para que ele não me veja, sem, no entanto, desviar meu olhar dele. A parte de trás da casa era relativamente menos bem-cuidada que a da frente, com o chão sendo de terra batida e com árvores menos glamorosas, como uma mangueira e uma goiabeira. Vejo o menino andar até o canto encoberto pelas sombras frescas das árvores, e desaparecendo dentro de uma barraquinha de madeira, digna o suficiente para um casal de vassouras morarem.

Aproximo-me, tentando não fazer barulho, e vejo-o saindo da barraca, sem o embrulho nas mãos. Que diabos ele está fazendo? Ele desaparece pra dentro da casa, e resolvo descobrir o que ele esconde.

Chego até a barraca, olhando com cautela o lugar. De perto ela parece até mais arrumada, como se fosse um lugar mesmo bem precário pra morar, embora cuidado com muita dedicação e amor. A porta de madeira está apenas encostada. Estendo meu braço até ela e com um pouco de força ela se abre, revelando seu interior.

Lá dentro é, no mínimo, surpreendente. A barraca parecia bem menor e bem mais velha vista de fora. Uma cama coberta com um lençol com estampa de cavalinhos desenhados está a um canto. Parece tudo normal demais, até que um raio de sol aparece e... tento esconder meu arquejo de surpresa. O que vejo é demais pra mim.

Dezenas, quem sabe até uma centena de telas dos mais variados tamanhos espalham-se por todos os cantos do quarto que não estavam ocupados pela cama. Todas elas exibem pinturas exuberantes e impressionantemente realistas de rosas de todas as formas e cores. Rosas amarelas, vermelhas, cor-de-rosa, mas definitivamente as mais numerosas eram as brancas. Ao olhar mais pro fundo do quartinho, vejo uma tela inacabada de um buquê de rosas brancas. Imaginar aquele menino pintando-as era algo que fazia meu cérebro fritar com alguma coisa que eu não conseguia lembrar, mas estava em algum lugar, como uma lembrança perdida. Chego até perto da tela, para senti-la, quem sabe até... imaginá-lo, tocando ela também. Um calor bom toma conta de meu corpo, mas um barulho de latas caindo no chão me faz recuar. O menino está do lado de fora da barraca, me olhando petrificado, como se eu tivesse botando fogo em minha cara. Ele parece prestes a desmaiar de medo.

Percebendo sua fuga iminente, me jogo até ele. Ele sai correndo na mesma hora, mas eu consigo segurar em seu pulso como da última vez.

– Espere! Espere, por favor!

Ele parece desesperado, puxando o braço como se minhas mãos lhe queimassem a pele.

– Por favor, me escute, eu...

Ele faz força pra correr, e acabamos tropeçando nos galhos jogados ali.

Me levanto, olhando em seus olhos que mais parecem olhos de criança, assustados. Negros como a noite.

– Me diga... seu nome, pelo menos. – Eu digo, e não consigo entender a súplica em minha voz.

Ele me olha, dessa vez com mais intensidade, e seu olhar já não esboça mais tanto medo. Vejo uma lágrima cair e isso me parte o coração.

– Heitor. Meu nome é Heitor. – Ele diz, e foge pra longe de mim, desaparecendo aos poucos nas sombras das árvores.


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