Minha Rosa De Tinta escrita por Ganimedes


Capítulo 3
III • Brilho de Sol




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Acordo exausto depois da noite de ontem. Meus amigos e eu havíamos tentando explorar um pouco da mata da Ilha, o que provou ser uma experiência quase fatal ao chegarmos a um lago com águas surpreendentemente escuras à noite e um deles ter caído lá dentro. O nosso guia foi chamado às pressas e todo mundo achou que meu amigo havia sido comido pelo Bicho da Lagoa, o que, creio eu, devia ser alguma lenda na qual todos da Ilha acreditavam piamente. Depois disso ainda jantamos à luz de fogueiras no quintal da casa.

Levanto cambaleando, ainda mais pra lá do que pra cá, escovo os dentes e troco de roupa. Olho no relógio e vejo que já são mais de nove horas da manhã, o que me permite desenvolver dois pontos de reflexão: 1) estou atrasado pro café-da-manhã e vou comer sozinho; 2) meus amigos desgraçados não me acordaram e eu vou matar eles.

Uma dúzia de meninas me persegue pelo corredor quando veem que estou usando um short azul super curto, e eu tenho que voltar e vestir outra coisa pra não acabar sendo abusado por elas. Por fim, sento à mesa por volta das nove e meia. A empregada faz uma cara feia, pois ela havia acabado de arrumar as coisas de volta na cozinha. Peço desculpas e me sirvo de torradas com presunto e suco de laranja.

Nosso guia deve ter criado alguma atividade matinal, pois não vejo ninguém pelos corredores, nenhum barulho, e as meninas que haviam me perseguido também não dão sinal de vida. Percorro o labirinto de cômodos e chego àquele que me parece ser de valor sentimental dos moradores do lugar.

O lugar é um corredorzinho estreito, com as paredes apinhadas de quadros dos mais variados tipos. De paisagens até fotos de pessoas e bichos de estimação. Olho cada um deles, sem a menor pressa de ir fazer qualquer atividade matinal, até que chego a alguns que por algum motivo me parecem mais chamativos.

Um deles é a foto de um casal. O homem aparentava ter muito dinheiro, os cabelos loiros, lisos e penteados com uma espécie de gel das antigas. A mulher era estonteantemente bonita, com os cabelos morenos amarrados numa trança única que caía pelo ombro. A foto era em preto em branco, mas isso não apagava a felicidade nos olhos dos dois.

Um outro quadro me fez tomar um susto enorme. Era um vaso de flores, extremamente realista, e o que me chamou atenção é que as flores dele eram idênticas àquelas encontradas do lado de fora do jardim, onde o menino ficava. Rosas brancas, com um cor-de-rosa quase imperceptível na ponta das pétalas. Um calafrio percorreu meu corpo, pois a pintura era visivelmente muito antiga e as rosas eram perfeitamente iguais as do lado de fora da casa. Eles deviam ter uma técnica muito boa pra preservar as características da flor por tanto tempo.

Um grito do lado de fora me tira do transe, e vou correndo para a saída ver o que acontece.

Ao chegar lá, olho ao redor e encontro a multidão aglomerada perto do haras. Corro até lá, pois uma grande paixão minha são os cavalos e eu realmente estava com vontade de montá-los desde que os vi na Ilha.

Tento encontrar Ju entre as pessoas, e é fácil detectá-la com seu boné dourado ofuscando sob a luz do sol. Ela parece entretida com as amigas, e decido não interrompê-la depois de meu desempenho vergonhoso na noite passada.

O tratador, o homem negro de quase dois metros de altura e com ombros dignos de um touro, ajudava cada um de nós a montar e dar um passeio pelo circuito. Assim que chega minha vez, mostro a ele que não preciso de sua ajuda. Busco o olhar de Ju, e vejo que ela olha a cena, mas seu olhar se concentra no tratador, e não em mim. Acalmo minha fúria e arranco com o cavalo pelo circuito.

A estradinha de terra batida não era lá grande coisa perto dos centros de treinamento que eu costumava visitar, mas dava pra aproveitar por que o cavalo era manso e vigoroso e a paisagem imensamente bonita.

Quando estou mais ou menos na metade da volta, sinto que o cavalo começa a ficar tenso, e por nenhuma razão ele se inclina sobre as patas traseiras. O movimento é tão repentino que não posso me segurar devidamente nas rédeas e caio com tudo pra trás. Minha tentativa de cair de pé falha e tropeço numa queda dolorosa sobre meu tornozelo. Uma dor lancinante acomete o lugar, e estrelas começam a dançar na minha vista. Me pergunto porque ninguém veio ainda me ajudar. Será que não me viram caindo? Sério? A distância não é tão grande assim daqui pro começo da pista.

Olho ao redor, e assim que estou quase decidido a me levantar mesmo com meu pé completamente dolorido, ouço passos de alguém caminhando em minha direção, e vejo um vulto cortar a névoa de poeira que o cavalo levantou.

O menino do jardim corre ao meu encontro, com um kit de primeiros socorros nas mãos, e uma expressão tensa no rosto. Suas roupas parecem um pouco melhores do que as que eu vira ele usando antes, mas mesmo assim estão velhas e sujas, e com um colorido estranho.

Ele se aproxima, e eu o encaro sem entender. Será que ele é um caseiro daqui? Nessa idade? Meus pensamentos são bloqueados pela dor que surge quando ele toca no meu tornozelo.

– Ai! – Exclamo, e ele parece preocupado com minha dor.

O trabalho que ele faz é delicado e ao mesmo tempo firme, trabalhando ligeiramente pra arrumar as ataduras e o suporte. Durante esse tempo, seus dedos tocam minha pele, e o toque deles é... é macio. Faço de tudo pra bloquear a sensação, mas um calor que eu nunca senti antes parece percorrer os pontos onde sua pele toca na minha. Ele parece genuinamente preocupado com meu estado.

Olho pras suas roupas com atenção dessa vez. Ele usa uma camisa branca simples, de tecido gasto, mas o que me chama atenção são as manchas de diferentes cores: verde, laranja, vermelho. Vários respingos de tinta. Seus shorts cinza não estão em melhor estado.

O trabalho parece finalmente terminado, e ele se levanta apressadamente, recolhendo as coisas. Em pouco segundos ele parece que está indo embora, e antes que possa se afastar, seguro seu pulso.

– Espere! Por que você fez isso? Quem mandou você aqui?

Ele parece desesperado para que eu o solte, mas não menos desconfortável com minha insistência que ele fale.

– Vamos me diga! Me diga seu nome, pelo menos.

Ele tenta puxar a mão, e algo em sua expressão triste me faz soltá-la. Parece-me insuportável vê-lo sofrendo de algum modo. Ele sai correndo e eu começo a ficar realmente perturbado com essa situação. Esse menino vai acabar comigo, que diabos ele tem que não sai de minha cabeça?

Me levanto mancando e depois de um minuto aparecem umas cinco ou seis pessoas, entre elas o tratador, correndo ao meu encontro perguntando o que aconteceu e porque o cavalo voltou sozinho. Explico a eles tudo que aconteceu, dizendo que um menino ajudante da casa fez as ataduras. Eles mal ouvem o que eu digo, no afã de me levarem pra enfermaria e me deixarem melhor. Ah, o que o dinheiro não faz.

O resto do dia passa sem mais emoções, e a noite chega. Ju aparece em meu quarto pra ver como eu estou e me dá um beijo rápido. Adormeço já tarde da noite, pensando no menino e em como me senti bem ao receber seus cuidados. Finalmente o cansaço me vence e durmo um sono sem sonhos.


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