Sinto frio, mas muito mesmo. Dá para imaginar o exterior antes de abrir os olhos. Dá para imaginar flocos de neve delicados batendo em minha pele nua e derretendo. A água escorre e forma uma poça gelada que esfria meu corpo. Quando resolvo olhar, no entanto, não é bem assim. Estou coberta com dois edredons grossos e há um termômetro debaixo de meu braço esquerdo. Em questão de segundos, ele começa a apitar. É um barulho fraquinho, mas Igor atende ao chamado e surge detrás da escada. Não me mexo, nem me sinto capaz disso. O loiro escorrega o pequeno aparelhinho de volta para sua mão e encara-o, preocupado. “Harriet… Isso… Isso não pode ser uma febre.” Ele murmura, automaticamente descobrindo-me. Estou vestindo uma regata fina e bermudas jeans, as roupas mais simples do meu antigo guarda-roupas. A brisa que pega-me de surpresa faz-me sentir de frente ao oceano durante o inverno. Estou com tanto frio que um sopro parece ventania. Resmungo e abraço meus joelhos, ainda deitada, tentando proteger meu corpo ao máximo. Estou congelando.

“Você quer que eu tenha uma hipotermia?” Sussurro, a voz treme assim como eu. “Não seria nada mau se você esfriasse um pouco agora. Sabe o que é 47°?” Diz enquanto desenrola meus braços fracos e coloca um deles em volta de seu pescoço. “Eu sei que sou um anjo e isso não devia me afetar.” Respondo, pouco coerente. Sei que devo parecer horrível e que isso diminui a confiabilidade de minhas palavras. “Eu temo por isso, Harriet. Temo que sua parte humana esteja ganhando mais espaço que deveria.” A voz de Igor está trêmula, apesar de não tanto quanto a minha. Passa o braço que não está nas minhas costas por baixo de meus joelhos e me ergue com facilidade. Minha parte humana ganhando mais espaço que deveria… Isso não soa bem. E se acontecer? Sentindo-me tão vulnerável com uma parte divina, terei de usar fraldas e dormir num berço sem ela.

Em algum momento enquanto subimos a escada, durmo com a cabeça apoiada no ombro de Igor. Escondo meu rosto em seu pescoço quando o vento frio e que cheira a donuts de NY atinge-nos. Ele parece arrepiar-se com minha respiração quente afagando sua pele, mas não me afasta. O sonho começa a voltar em relances, emoldurado num medo completamente vão. Henry. Seu beijo, seu toque, seus olhos que mudam de cor em fração de segundos e não permitem que eu distinga cada uma delas. Igor. Seu toque inflamável, que queimou cada centímetro de mim. Seu beijo. É tão ridículo que eu tenha sonhado com isso. Um beijo. Seria aceitável se tudo tivesse acabado enquanto estava valsando com o ruivo, mas… Não posso ignorar a continuação quente daquela cena. Seu olhar de desculpas enquanto segurava a parte posterior de meu pescoço e trazia meus lábios de encontro aos seus. E a dor. Agora, sentindo tanto frio, sei que é a minha pele a ferver sob a do loiro.

Não sei para onde estamos indo até chegarmos ao Central Park. O caminho não é longo até lá. Está nevando muito, não há um centímetro quadrado de vegetação visível por lá. Neve, toda uma paisagem pálida. “Por favor, eu… Está muito frio.” Resmungo, meus dentes batem uns nos outros conforme meu corpo trêmulo se encolhe nos braços de Igor. “Se você esfriar, vai passar. Eu prometo.” Ele coloca meu corpo no chão, sinto a neve estalar debaixo de mim. “Pode ser só um resfriado.” Retruco, apesar de saber que não é. Igor pega um pouco de neve com as mãos e coloca em meu peito por cima da regata. Estou tremendo ainda mais no começo, mas vou permitindo vagarosamente que o gelo faça seu trabalho. Com mais neve, dessa vez na minha nuca e depois na testa, minha temperatura baixa e eu volto a sentir tanto frio quanto o loiro deve estar sentindo. O normal. Também retomo um pouco mais de minha lucidez. Mas para não arriscar, preferimos ficar ali na neve por mais tempo.

Não quero levantar-me. Quando todo aquele frio passou, comecei a apreciar os flocos de neve que escorrem do meu queixo para o pescoço. “Tem alguma coisa pra me contar?” Ele pergunta, sentado ao lado de minha cabeça, interceptando os flocos de neve que caem em seu rosto. “Tive um sonho diferente dessa vez.” “Não sei nem como você teve tempo de sonhar em meia hora de sono. O que foi?”

“Eu estava em um salão lindo, vestida em vermelho. Henry apareceu, nós nos abraçamos e tivemos uma dança.” Omiti o beijo sem um motivo evidente. “Isso parece normal.” Igor ergue uma de suas sobrancelhas e me olha, esperando por uma continuação. Hesito, mas lembro-me de que preciso confiar nele. É tão difícil. “Ele me entregou para você e… Você estava realmente quente. No sentido literal da coisa.” Fecho os olhos tanto para poder ter uma lembrança mais vívida do sonho quanto para não encarar a expressão de Igor. “Seu toque realmente me queimou, nós estávamos muito próximos, e você me puxou para um beijo. Peço desculpas por ter cedido, mas estava doendo muito. Doeu ainda mais quando nossos lábios se encontraram e eu me senti como pegando fogo. Depois de um tempo a dor passou, o beijo acabou. Laura estava no mesmo salão, pude vê-la, vestida de preto, com Henry.” Minha voz é um pouco mais baixa a cada frase dita, como fade out de uma música acabando. “Harry, você é intensa demais até para mim.” O tom dele é tão baixo como o meu. Eu não respondo, até porque não consigo entender o que quer dizer com intensa. “Sabe, seu sonho te colocou num quadrado romântico incendiário. E daí você acorda tão quente que sua respiração parece fogo.” Lembro-me de ele ter retesado-se quando aproximei meu rosto de seu pescoço. Claro, eu estava o queimando. “Desculpa.” Apesar de saber que é uma bobeira, preciso me redimir por tê-lo deixado desconfortável.

“Imagino que você saiba como te enxergo, Harriet. E sabe que não estou pedindo para se desculpar.” Não preciso abrir os olhos para saber que ele está por cima de mim. Sinto seus punhos fechados ao lado de meus braços e mantenho-me imóvel até que ele caia deitado a meu lado. “Não.” Digo entre um suspiro e outro. “Você é a única pessoa a quem eu entregaria minha vida. É assim que te enxergo. E se é assim, preciso te manter viva a todo custo.” Abro os olhos imediatamente. Há uma sensação estranha quando pisco, há um eco silencioso dentro de mim, uma inércia, o frio começa a se intensificar novamente. “Estou quente de novo? Pareço congelar.” Pergunto, passando minha mão por seu braço. “Não.” Responde, puxando meu corpo para o seu e enrolando-se em mim. Quero soltar-me, mas seus braços impedem a neve de aproximar-se dos meus, e isso cessa o frio. “Você odeia Laura?” A pergunta pega-me de surpresa, arquejo um pouco e viro meu corpo para poder encará-lo. É arriscado, alguém pode nos ver, mas mesmo assim o loiro abre suas asas para nos proteger do frio. E isso faz-me lembrar Henry de um jeito doente. “Não, eu só… Ela mentiu tanto… Ok, eu não conhecia os amigos dela e…” Amigos da Laura. Como eu não pensei nisso antes?

“O que foi?” Igor interrompe os devaneios e se assusta com o sorriso bizarro que rasga meus lábios. “Eu conheço uma amiga de Laura e não sei como achá-la… Mas a semelhança dela com Caroline me leva a pensar que sejam parentes. Precisamos procurar aquela mulher.” Minha ideia não é animadora, mas parece razoável. “E ela vai dizer todas aquelas coisas de novo… Não estarei calmo dessa vez, Harry.” Suas mãos apertam meus ombros e eu me esquivo. “O que mudou?” Reviro os olhos. Não imagino alguém fazendo Igor perder o bom senso. Pelo visto, eu consegui fazer isso. Ele me solta sem tirar os olhos dos meus e se levanta num salto. Levanto-me também e corro atrás dele. Sou mais ágil e rápida, mas sei que não é inteligente seguí-lo, e volto andando – e tremendo – para nosso “lar”.