Estou consciente de que é um sonho, mas as cores e formas são todas muito nítidas. Enormes vigas de cor amanteigada alastradas ao redor do salão dourado, cobertas por pinturas em vinho e verde oliva, traços delicados que me lembram um pomar. O assoalho, por sua vez, brilha como se recentemente lustrado. Debaixo de meus pés há um desenho marrom abstrato que parece se mexer conforme eu me movo. Estranhamente, estou vestida em cetim. Um longo vestido escarlate que não me cobre os ombros, justo e acinturado até meus quadris, como um corpete. A saia, em contradição, é leve, solta e cobre meus pés. Quando subo-a para olhar os sapatos, o tecido gira e cria a sensação de estar cercada por labaredas. Vejo meu reflexo borrado no mármore brilhante e ofego. Estou deslumbrante. Minha pele parece feita de cera, sem as típicas olheiras debaixo dos olhos ou as cicatrizes corriqueiras. Os lábios que costumam estar secos, agora parecem cheios, cobertos por uma camada de batom vermelho do mesmo tom quente que o vestido. Os cabelos loiros caem nos ombros em cachos rebeldes e armados como sempre estão, porém mais brilhantes. Subo os olhos quando outro reflexo junta-se ao meu.

Henry.

Posso ver apenas relances de suas diversas tatuagens, cobertas por uma camisa elegante que não deveria ficar tão excepcional nele. Mas fica. O colete riscado e a gravata azul deixam-no ainda mais encantador, como um príncipe. Seus cabelos também estão bagunçados, a pele também parece feita de cera quase translúcida. A aura gira em torno dele, cada vez mais clara. Do preto ao cinéreo, então branco. Apesar da aura clara, quando seus olhos encontram os meus tudo parece ainda mais errado. Isso não me impede de cair em seus braços imediatamente. Abraçados, sua respiração leve soprando minha nuca e deixando-me arrepiada. Aperto-o com força, quero que meus braços virem barras de metal para que eu prenda seu corpo ao meu. Posso sentir suas mãos quentes acariciando minha cintura, seus braços também parecem não querer me soltar. “Senti sua falta.” Ele sussurra em meu ouvido, causando cócegas. Chego minha cabeça um pouco para trás, meu nariz arrastando por sua bochecha até encontrar o seu. Nossos pulmões trabalham em sincronia, quando expiramos, ambos podemos ter uma ideia do que seria um beijo. “O que isso significa?” Sibilo, meus batimentos cardíacos tão descompassados quanto acelerados. Imagino que Henry perceba isso, já que meu coração está colado ao seu.

“Eu te amo, Harriet.” As costas de meu vestido rompem para dar lugar a um par de asas. Por sorte, alguma coisa ainda prende o tecido ao meu corpo. Estranho, nunca acontecera antes. Como se minhas asas fossem extensão sólida de meus nervos. Foi sem querer, automático, uma euforia manifestada fisicamente, já que não é momento para eu gritar e chorar. Meus lábios gélidos separam-se e eu inclino meu rosto. Estou tão próxima de alguém como jamais estive. Posso perceber cada movimento, cada célula de meu corpo. Posso sentir o cetim escorregando por minhas pernas, as mãos quentes e firmes que seguram minha cintura e deixam-me na ponta dos pés, o tecido liso que roça meus braços e parece quase não existir; o calor que o garoto transmite faz parecer que estou tocando sua pele e não suas roupas. Os lábios que parecem ferver de encontro aos meus, transformando inverno em verão, gelo em fogo, anjo em humano. Não sei o que estou fazendo quando puxo-o para mais perto, como se não houvesse espaço o suficiente no mundo para nós dois, como se precisássemos virar um só para continuar coexistindo. Minhas mãos percorrem suas costas assim como as dele percorrem as minhas. Seus dedos brincam com minha pele no lugar em que o vestido se rompeu.

Então uma música começa a ecoar, ricocheteando nas paredes creme e atingindo-nos num susto. Nossos pés movem-se involuntariamente numa valsa, interrompendo o beijo, mas não o abraço e os toques quentes da mão de Henry em minhas costas. É um longo tempo dançando. Meus olhos azuis encarando suas íris que mudam de cor em tons marcantes. Do verde esmeralda ao azul cobalto. "Você sabe que também te amo." Murmuro, acariciando o rosto dele com tanta delicadeza quanto possível. Só quando seus braços não estão mais me prendendo e os meus são inúteis ao redor de seu pescoço, percebo que há platéia. Henry ergue minha mão direita até seu rosto e a beija antes de entregar-me para Igor.

Estou tão confusa que meu coração não poderia estar mais exausto. Meus pés, não obedecendo a comando nenhum, seguem o ritmo da música. As mãos de Igor substituem as de Henry, ainda mais quentes. O suficiente para me queimarem. Se tivesse forças para falar, resmungaria um ‘ai’. Temo por seu toque ter chamuscado meu vestido. Preocupação tola. Quando finalmente seus dedos encontram a fenda no tecido, guincho, esbaforida. Igor está queimando, literalmente, cada camada de pele. Corroendo-me. Literalmente. Olho para baixo. Meu vestido vermelho que poderia facilmente imitar um incêndio, mescla-se à elegante roupa do loiro. Pareço estar costurada a ele. Suas mãos, não contentes em ferir-me num único ponto, sobem até estarem firmes em minha nuca. “Você está… Fervendo.” Digo, contendo algumas lágrimas provenientes da dor. Sinto como se estivessem pressionando-me em ferro quente. Com um olhar de desculpas bastante gentil e ingênuo, próprios dele, puxa meu rosto para mais perto. Reluto, mas não posso resistir mais. Seu toque está queimando e destruindo cada parte de mim. Deixo meus lábios serem tocados e me sinto uma vadia por beijar dois homens na mesma noite.

Primeiro, há a sensação de estar beijando brasas. A dor que se espalha por minha boca é tão intensa que posso esquecer da queimadura atrás de meu pescoço. Mas então, tudo some. Ao contrário de quando beijei o ruivo, agora não há mais nada além do mórbido e estranhamente agradável gosto de sangue em minha língua. Quase posso ouvir o crepitar da fogueira que criamos ali. Nós somos a fogueira. Meu corpo está dormente, estalando como lenha sendo consumida a cada vez que meus pulmões expelem ar. Tenho a breve consciência das mãos que somem em meus cabelos loiros e inclinam ainda mais meu rosto. Então alguém ri, tirando-me do transe. Meus olhos cruzam o salão até congelarem ao leste. Henry segura a cintura de Abigail. Laura. Não com a mesma intensidade de quando estava comigo. Ele contou alguma piada? Certamente não disse que a amava. Acho que estou sentindo ciúmes, e não é bom. O sorriso que atravessa o rosto de minha duplicata parece rasgar suas bochechas. Seu vestido é preto, há um véu negro cobrindo seu rabo-de-cavalo dourado. O tecido rendado é todo coberto por flores de seda. Tão deslumbrante como eu. Os olhos de um azul ainda mais intenso. A pele ainda mais pálida. O corpo ainda mais esguio. Talvez ela esteja mais graciosa.

Não tenho esse… charme? Sou prática, não encantadora. “Não se preocupe, Harry. Ela não é tão quente como você.” Igor sussurra, talvez lascivo. Irônico, porque foi ele quem ateou fogo em mim.

x

Desperto ofegante. Igor está sentado no colchão ao meu lado. Desvio de seu toque temendo uma possível queimadura, mas ele insiste. Um sonho. Não está tão quente assim. Ele afasta algumas mechas de cabelo de meu rosto num movimento mecânico e nada cálido. “Você está febril.” Ele exclama, preocupando-se imediatamente. “Eu sou quente?” Pergunto, ainda um pouco zonza. “Pergunte-me isso num outro momento e talvez eu responda o que você quer. Mas agora você está quente.” Diz, subindo as escadas e abrindo o cadeado da porta com ômega. Começamos a usá-la sempre que possível, para compreendermos que diabos aquela coisa não abre. “Ok.” Respondo, sem dicção suficiente para formar uma frase maior. “Fique aí, vamos torcer para que sua parte humana tenha pegado uma gripe.” Some na névoa que se forma ao redor da porta e meu corpo desaba novamente.