Estrela da Tarde escrita por Ametista


Capítulo 37
Redenção


Notas iniciais do capítulo

Olaaaaaaar genteney o/

Tô realmente bastante entusiasmada com as reações sobre o último capítulo :D
Eu temia que vocês não concordassem muito com os rumos dados aos personagens, mas fico feliz de que confirmar que era só paranoia hahahahahah

Especialmente porque, bom, se vocês não detestaram o último capítulo, não vão poder me condenar por esse, né? (risos altamente nervosos)

Bora lá



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Os contornos das árvores que nos cercavam viraram borrões indistintos à medida que avançávamos floresta adentro. Seus tons de verde e marrom se perdiam em meio ao escuro quase que completo sob o céu sem Lua. A única luminosidade que recaía sobre nós era a que provinha das estrelas, e elas eram numerosas; espalhavam-se pela vastidão do firmamento, que se dividia entre um azul-marinho e o roxo profundo, feito os cristais da mais preciosa tapeçaria. Seu brilho pálido abraçava de modo tímido a copa das árvores, sendo talvez sutil demais para os olhos humanos, mas eu tinha certeza de que até eles conseguiriam apreciar a beleza singular. Era como se o universo, com todas as suas estrelas e planetas, nebulosas e nuances coloridas, estivesse se colocando ao alcance de nosso toque, separado apenas por poucos metros. 

Distraí-me ligeiramente fitando o alto através das frestas dos galhos. Eu podia contar nos dedos as vezes que vira uma noite assim tão bonita. Pareceu-me até um tanto profético, embora injusto, eu contemplar uma paisagem como aquela depois de ter vencido uma batalha. Injusto porque, por mais deslumbrante que fosse, não era a noite que prendia a minha atenção.

Encarei David à esguelha pelo que calculei ser a sétima vez, sorrateira como um lince, apesar de ele estar metros adiante e não ter como flagrar o meu olhar. Ele corria livremente à esquerda, os sapatos engraxados mal encostando na vegetação ao passar, e vez ou outra eu pensava ter vislumbrado a sombra de um sorriso na sua bochecha. Apertei o cenho mais fundo. Se a dualidade entre eu e o meu lado animal estava resolvida, o conflito entre meus sentimentos por David mostrou que não estava – uma descoberta que não me deixou exatamente satisfeita, dado que eu já dava o assunto por encerrado. Eu apenas... não tinha definição alguma para o que estava sentindo. Tinha convicção de que meus sentimentos antigos haviam ficado no passado – sepultados, como eu afirmara a ele –, mas não havia como negar a existência de algo. Se não era um sentimento esquecido que fora reavivado, era um sentimento inteiramente novo.

Isso não somente me intrigava, como me aborrecia. Muito.

Eu sabia que havia gratidão. Não havia meios de esconder isso de mim mesma. David me impediu de concluir o ato que apagaria qualquer rastro de humanidade que eu pudesse ter, e por mais que eu ainda quisesse dizimar cada vampiro que se atrevesse a levantar o emblema dos Volturi, era libertador ser racional o bastante para decidir não me sujar com a sujeira deles, não me permitir sucumbir aos instintos. Eu não era uma assassina – era uma sobrevivente.

Entretanto, gratidão não era o suficiente para me acorrentar a ele. Não era o que me impelia a segui-lo de volta à Bergen. Enquanto corria em seu flanco, cheguei a conjecturar por um breve instante que esse senso de obediência se devia à promessa – a maldita promessa que eu lhe fizera quando parti de Forks – e a despeito de esse pretexto ter me convencido de início, já que eu jamais daria a minha palavra em uma promessa que não me esmerasse para cumprir, descartei a alternativa logo que parei para analisar melhor. Além de não ser a primeira teoria em que eu pensava, não explicava a gradativa sensação ansiosa ebulindo na boca do meu estômago. Como se estivesse à expectativa de alguma coisa.

A viagem de retorno à Noruega não foi necessariamente uma das mais fáceis, apelando para eufemismos. A princípio, deduzi que cortaríamos por dentro do continente, que apesar do desvio imenso nos pouparia de ter que atravessar o mar, porém David rumou direto a noroeste em direção a Suíça. Meu primeiro pensamento lógico foi que ele planejava parar em algumas das cidades maiores ao amanhecer – talvez a própria Zurique ou Berna – para tentar acessar alguma de suas muitas contas bancárias e nos comprar passagens de avião ou, provavelmente, fretar um jato particular de novo, mas à proporção que o Sol surgia no horizonte e as horas corriam mais depressa, nós nos distanciávamos cada vez mais das áreas de elevada densidade populacional para atravessar as regiões montanhosas dos Alpes. David até poderia alegar que tencionava se esconder dos humanos, afinal, não havia nuvens no céu e sua pele refletia a luz feito um cristal iridescente, no entanto minha intuição estava longe de confiar nessa alternativa. Se eu bem o conhecia – e isso era sempre questionável –, David estava tentando procrastinar. Não teríamos que começar um diálogo se estivéssemos correndo.

Depois de cruzarmos a Alemanha e alcançarmos a ponta da Dinamarca, adentramos de modo clandestino em uma balsa que ia de Hirtshals até Larvik, e logo que pousamos o pé em território norueguês, nossos corpos se lançaram no ar de um único impulso, a velocidade furiosa com que voávamos fazendo o vento ricochetear violentamente nos meus cabelos desgrenhados. Senti o coração bater mais forte ao reconhecer a vegetação tão familiar, que se distinguia por completo da flora mediterrânea da Itália, e fiquei realmente surpresa por não estar chovendo quando ultrapassamos os limites da cidade, parando próximos ao bom e velho lago Svartediket.

Mesmo no verão, era incomum o dia em que Bergen não estava sendo atolada por uma tempestade que caía em bicas. Ainda assim, ignorando as leis da natureza, não tinha uma nuvem sequer maculando aquele céu de fim de tarde, que apresentava uma paleta indizível de cores à proporção que o Sol se despedia no horizonte. Caminhamos sem pressa por entre as coníferas envoltas de um nevoeiro indolente, quase etéreo, e abrimos espaço por uma cortina de úmidas samambaias antes de nos encontrarmos do quintal da mansão no exato instante em que os últimos raios solares incidiam sobre a fachada.

Era estranho estar ali novamente. Tudo parecia estar fora de lugar, deslocado. Errado. As cores da casa pareciam mais escuras, o ambiente soturno; não tinha metade da alegria que eu me lembrava quando pensava em Joseph. A claridade era, sob meus olhos, algo absolutamente desconexo – um aspecto tão inadequado ao cenário das minhas memórias que parecia artificial, como se um holofote espalhafatoso pairasse acima do telhado. Esses fatores, além do fato da interação entre David e eu estar em clima de bandeira branca, davam a impressão vertiginosa de ter sido transportada para uma dimensão paralela.

David se inclinou para pegar a cópia das chaves escondida atrás de um vaso de lírios – agora mortos – e abriu a porta, fazendo um eloquente gesto cordial para que eu entrasse:

— Bem-vinda ao lar – murmurou baixinho, encarando o tapete.

Estaquei na soleira, a postura dura se empertigando, e o fuzilei com os olhos até que ele se sentisse obrigado a me olhar. David tentou resistir à minha tentativa de intimidação, como reparei pelos ombros levemente recurvados, todavia acabou desistindo com um suspiro audível. Os olhos, de um vinho quase negro pela sede, mas decididamente vermelhos como o pecado, acuaram-se diante da severidade da minha expressão.   

— David, não se engane, nada mudou – salientei, a voz com o fio mordaz de uma foice. – Aqui não é meu lar, não mais. E eu não também lhe perdoei. Reconheço que você me ajudou em uma situação complicada e de grande necessidade... Só que isso não apaga o passado, não some com as mágoas das coisas horríveis que fez e não vou retirar uma vírgula do que eu disse.

Apesar de David já estar esperando pelas mordidas de chicote estalando no seu couro, ele se retraiu com as farpas atiradas e se afastou para o interior do hall, recostando-se na mesa de canto à proporção que entrelaçava os braços.

— Então seus sentimentos por mim morreram – concluiu e, embora soasse definitivo, entreouvi uma faceta especulativa na sua articulação.

— Sim – firmei sem pensar duas vezes, decidida a destruir qualquer esperança que ele pudesse cultivar. – E não há possibilidade de ressuscitá-los. Você me machucou demais, David. Não se conserta cristal quebrado.

Uma emoção muito característica reluziu nos olhos dele – o contentamento de quem sabe que pegou o outro em uma arapuca. Seria impossível para mim não detectar seus sinais; eu era especialmente predisposta a essa manobra. Repassei a afirmativa em meus pensamentos à caça do deslize que não percebi que cometi.

— Bem, é que em Volterra, você disse que me odiava – David esclareceu antes que eu pudesse especular mais a respeito. – Como é que pode me odiar se não sente nada por mim?

Merda.

— Você e seu talento de virar minhas próprias palavras a seu favor. – Revirei os olhos e bufei, sorrindo contra a minha vontade. Maldição, ele ainda conhecia os meus pontos fracos. Puxei o ar com força e esse pequeno descuido se dissolveu tão rápido que era como se nunca tivesse ocorrido. – Veja, eu não menti. Meus sentimentos morreram, fiz questão de sepultá-los. O que quer que tenha aparecido hoje... É algo totalmente inédito.

— Isso significa que você está cultivando novos sentimentos.

Assenti de cara amarrada.

— É provável. Há uma semelhança com os sentimentos de antes... – enfatizei para que não tivesse o risco de que ele viesse a se confundir. – Só que mais real. Menos idealizado. – Dei de ombros. – Se é bom, isso eu já não sei. Mas você deu um excelente passo para isso hoje. – Aproximei-me devagar, detendo-me junto ao seu ombro sem tocá-lo e imitei sua pose esquiva. – Obrigada por não deixar eu me perder.

Seu sorriso foi seco, porque ele entendeu que aquilo seria o máximo que ele conseguiria de mim; um agradecimento expressado em frases curtas e desprovidas de calor, nada de abraços ou demonstrações de afeto carinhosas como no passado. Nada mais seria como antes. 

— Eu não posso viver em um mundo onde você não vive – declarou de qualquer modo, e eu reconheci nessas palavras as mesmas que ele usou na fortaleza dos Volturi, quando pensou que eu estava à beira da morte. – E eu não poderia existir em um mundo onde você não existe. Não tem porquê me agradecer. – E, de fato, eu não tinha. As motivações de David não tinham nada a ver comigo, eram puramente egoístas. – Tenho que buscar minha redenção de alguma forma, certo?

— Avise-me quando encontrar.

O sorriso dele amoleceu. David detestava que eu fosse tão sarcástica, mas não podia deixar de achar meus comentários adoráveis. Quase que em companhia ao sorriso, o último raio de Sol se infiltrou pela porta aberta e recaiu sobre nós dois, iluminando nossos rostos com uma cor dourada e branda. Notei que David congelou no lugar. Defronte à mesa onde estávamos apoiados havia um largo espelho horizontal, e nosso reflexo foi um absoluto choque para ele. Sem precisar de contato mental, eu entendi o que ele estava vendo – o contraste era berrante, a verdade era inequívoca. Por mais que eu estivesse despenteada, usando um vestido ridículo e toda manchada de sangue e fuligem de vampiro morto, ainda era possível me reconhecer por debaixo de tantas camadas, saber que era eu, enquanto que ele, um cavalheiro exemplar e sem um fio de cabelo desalinhado, mal podia encontrar a si mesmo.

Sua mão, incrustrada de pontos cintilantes, disparou para o rosto pálido de traços finos e arranhou a pele marmórea, como se desejasse confirmar que a imagem era real. David nunca havia se importado com as particularidades que especificavam nossa espécie e, em meu íntimo, eu sabia que não eram elas que o incomodavam, porque eu podia enxergar o mesmo que ele. Era a face do monstro. Eu não havia me perdido, mas David se perdeu, e estar ali na casa onde vivemos com Joseph tornava tudo mais evidente, mais palpável.

Os olhos vermelhos no espelho ardiam e o condenavam.

Acabei me compadecendo dele, embora tivesse lutado contra essa tendência desde a chegada em Volterra. No entanto, não tinha como ser diferente – não depois de ter enfrentado meu próprio demônio interior.

O Sol esmoeu e a escuridão despontou com o crepúsculo, e tão repentino quanto surgiu, aquele momento terminou. David piscou de modo demorado para se livrar do torpor e me girou os calcanhares, recompondo a expressão que pouco fazia para encobrir o tormento nos olhos.

— Você devia tentar descansar – expirou de súbito, parecendo constrangido que eu tivesse presenciado seu conflito pessoal. ­– Dá para ver que está exausta.

Não discuti, apenas fiz que sim e me virei para as escadas, subindo os degraus sem olhar para trás. Eu compreendia perfeitamente sua intenção de não querer testemunhas, porque, afinal de contas, essa foi uma das razões que me levaram a partir de Forks – não suportar a ideia de Seth e os outros ficarem reféns daquela coisa no espelho. Cheguei na porta do meu antigo quarto e deixei escapar um engasgo de choque quando a abri; em vez do palco de guerra que eu esperava da minha última estadia, o ambiente havia sido restaurado ao auge de sua glória, exatamente o que era, dos móveis até a decoração. O único detalhe que faltava era o retrato na parede.

— Consertou meu quarto? – esganicei, ciente de que ele escutaria no andar de baixo.

Pensei tê-lo escutado rir de presunção.

— Você não é a única que tem apreço por essas paredes, querida. – Houve uma pausa. – Além do mais, eu tinha pretensão de trazê-la de volta para cá. – E fez um pigarro de embaraço. – Em outras circunstâncias.

— Entendo. – E eu não precisava mesmo de mais explicações. Ele estava se referendo à primeira vez em que foi me buscar em Forks e essa definitivamente era uma lembrança que era melhor não reviver.

Deitei-me no colchão macio de olhos fechados, não dando a mínima para o meu estado sujo e maltrapilho, e devia estar a um segundo de adormecer quando o sussurro hesitante de David alcançou meus ouvidos, tão débil e frouxo que tive a impressão de que ele não planejava realmente que eu captasse.

— Anne? – Outra pausa. – Posso lhe fazer uma última pergunta?

— Já fez. – E o tom austero com que respondi tornou perceptível minha desaprovação quanto àquele nome.

— Há alguma chance de você não acordar? – continuou como se eu não tivesse falado.

Apertei os lábios, absorta. Fiquei quieta por tanto tempo considerando a questão que ele deve ter inferido que eu acabei dormindo.

— Não – suspirei por fim. – Eu me resolvi comigo mesma. Eu me curei.

Algo no silêncio que sobreveio me entregou que David não acreditava cegamente nisso. Levou um minuto inteiro para que ele voltasse a exprimir qualquer coisa, e quando o fez, não havia nada além de resignação na sua voz.

— Então descanse – pediu com suavidade. – Bons sonhos, minha irmã.

Um pouco mais tarde, quando eu já havia sido embalada pelos braços da inconsciência, ocorreu-me de forma muito vaga e um tanto incômoda que David já me chamara de Anne, de querida e minha adorada. Existia uma infinidade de outros nomes e apelidos, mas de uma coisa meu subconsciente estava convencido e minha memória não falhava.

David jamais chegara a me tratar por minha irmã.

 

Espreguicei-me ao despertar, os ossos estralando conforme eu me esticava e soltava um bocejo preguiçoso. O resplendor da alvorada se insinuava pelas cortinas, os pássaros cantavam com uma alegria matinal do lado de fora da janela e de algum modo, ainda remansosa e grogue, eu estava certa de que não havia apagado por muito tempo dessa vez.

Senti-me renovada ao levantar da cama. Meu corpo estivera tão cansado por conta dos dias anteriores que eu não tive qualquer sonho ou pesadelo durante a noite, e apesar disso não revigorar o meu humor fechado, ao menos servia para me dar um pouco de disposição. Tomei um banho demorado – agradecendo a Deus por enfim me livrar daquele vestido em frangalhos, o qual incinerei e dei descarga nas cinzas –, esfreguei bastante a pele até que qualquer vestígio de Volterra estivesse indo por ralo abaixo, cortei os cabelos no nível dos quadris assim que me sequei e, pela primeira vez em semanas, resolvi escolher algo de que eu realmente gostava para vestir. A maioria das minhas roupas dali havia ficado para trás quando me mudei para Forks, já que Alice simplesmente não podia admitir uma nova irmã que não viesse com um guarda-roupa novo, e desde que não me importasse com o cheiro de mofo, teria várias opções para trabalhar.

Mas percebi que não seria assim tão fácil logo que puxei as portas do closet. Nada estava como eu havia deixado. Minhas botas e coturnos haviam desaparecido, sendo substituídos por sapatilhas e sapatos de salto alto. Puxei os cabides; no lugar das camisetas de bandas, havia camisas acetinadas e blazers de alfaiataria em vez das jaquetas de couro. Ao que tudo apontava, não foi somente na restauração do quarto que David metera o nariz.

A ponto de cuspir fogo pelas ventas, porém já acostumada com a intromissão de David, enfiei-me na roupa menos grotesca que encontrei – um vestido liso de seda rosa-bebê e uma sandália de tiras – e desci as escadas à sua procura, imaginando que ele estaria me aguardando pronto para rir da minha careta de desgosto ou, no mínimo, para conversar sobre o que faríamos quanto ao futuro.

Eu estava enganada. Não havia indícios de sua presença quando estaquei no térreo. Seus pensamentos não estavam a uma distância que eu pudesse localizá-lo e o rastro de seu cheiro estava particularmente forte perto do hall de entrada.

— Mas que diabos...? – praguejei no que vi a pasta de couro sobre a mesa com uma carta por cima. Nem precisei examinar o envelope para reconhecer a caligrafia elegante de David formando as palavras em russo.

                Para Anne (para o caso de acordar):

“Pelo tempo em que me quiser ao seu lado. E pelo tempo em que eu viver.”

Creio finalmente ter encontrado minha redenção.

                                                                                              David.

Dei uma espiada no conteúdo da pasta e tive um sobressalto ao me deparar com alguns documentos falsos em meu nome, um rolo de dinheiro vivo trocado em dólar e coroa norueguesa, além de passagens de avião que, em duas escalas, tinham destino a Port Angeles. Franzi a testa. O que significava aquilo? David estava me libertando da promessa, dando aval e colaborando para que eu voltasse para casa? Parecia bom demais para ser verdade. E para onde ele iria? Ele não podia ser tão burro a ponto de querer retornar para os Volturi, sobretudo com o caos que devia estar tomando conta da fortaleza. Tentei enxergar suas decisões no futuro... mas não havia nada.

Que estranho.

Determinada a me orientar pelo seu cheiro, larguei a pasta e o envelope na superfície da mesa e segui o rastro porta afora. Minha parte racional estava convicta de que o esforço não passaria de uma perda de tempo, afinal, se David tinha pretensão de não ser seguido, bastaria ir embora planando no ar que não deixaria pistas. Contudo, contrariando as minhas suposições, seu cheiro impregnava a grama úmida, contornando os terrenos da mansão em direção ao leste.

O Sol da manhã, uma singularidade em Bergen, por um momento obstruiu minha visão. Estreitei os olhos para o clarão atípico, que apesar de ser capaz de ludibriar, não conseguiu omitir o filete de fumaça que se escapava do topo das árvores. Isso por si só já seria bastante alarmante, uma vez que se tratava de uma área florestal pouquíssima adepta a incêndios, mas o principal é que essa fumaça tinha uma cor peculiar, uma cor que se meus olhos não estivessem equivocados... possuía um denso matiz arroxeado.

Meu coração parou e eu desatei a correr.

Eu já sabia antes de chegar lá.

Tarde demais, recordei-me que agora eu detinha o poder de Demetri, o dom de rastrear qualquer pessoa em qualquer localidade do mundo, mas para isso era necessário o teor mental, e não existia mais o teor mental de alguém que estivesse...

Morto.

Ofeguei ao pisar no espaço aberto da campina em que Joseph havia sido assassinado e constatar que, na lateral do túmulo improvisado, havia uma fogueira ardendo em suas brasas derradeiras. Não senti a dor da perda, não havia lágrimas ameaçando cair ou mesmo marejando meus olhos. Não havia nada além de uma raiva crescente, que foi inflando em meu peito feito lava no vulcão.

— Seu idiota! – rugi para seus restos, chutando as cinzas para aplacar a fúria de meu corpo que bramava por uma manifestação física. Debaixo das brasas, achei um isqueiro prateado. – Por que é que você tem que estragar tudo mesmo quando faz alguma coisa certa? Por quê?!

Gritei para os céus. Gritei para as árvores. Sacudi os punhos de ódio. Enquanto eu estava ali, desmanchando-me em cólera diante do que restava do meu irmão adotivo, eu descobri o que havia me prendido a ele. Parte de mim desejava dar a David uma chance de se desculpar, de ganhar o meu perdão e recomeçarmos do zero. Então ele seguiria o seu caminho, e eu o meu.

Até isso o desgraçado me tirara.

De repente, eu não podia mais permanecer naquela campina. A fumaça me queimava os olhos, o cheiro era sufocante. Cambaleei de volta a casa tropeçando nas raízes soltas, e meus dedos estavam trêmulos quando apertei a carta contra o peito, o coração pulsando tão forte que conjecturei que saltaria pela garganta. Desnorteada, com os olhos girando turvos, comprimi a pasta debaixo do braço e mal percebi quando o fogo começou a lamber as paredes da mansão. As labaredas cresceram até o teto, mas não tentei impedi-las; abandonei-as à própria sorte, ganhando vida sozinhas, à medida que eu me afastava de tudo para nunca mais voltar a Bergen.

Eu não estava em condições de viajar. Isso era visível. Mas foi exatamente o que eu fiz. Passei as próximas horas afundada em uma poltrona de avião, não fazendo outra coisa senão encarar a maldita carta, que continuava intocada porque eu ainda não tinha reunido coragem o suficiente para abrir. Mal dei pela existência das escalas e o percurso não parecia ter levado mais do que minutos quando desembarquei em Port Angeles, pegando um taxi na saída do aeroporto, indicando para que me deixasse no centro de Forks.

Estava chovendo naquela tarde – não que isso tenha tido efeito sobre a minha catatonia. Em outros termos, até teria sido reconfortante, uma espécie de boas-vindas ao lar, mas para o estupor que me envolvia era apenas um detalhe irrelevante. A casa dos Cullen estava a meros quilômetros de distância, e por um segundo ponderei ir até eles primeiro, mas por mais que eu os amasse, não era do apoio da minha família que eu precisava – só um único alguém tinha o necessário para me salvar do torpor, para aliviar o meu abalo e devolver a paz ao meu coração. E eu sabia bem onde encontrá-lo.

Adentrei discretamente nas margens da floresta e disparei para o alto das montanhas, os batimentos cardíacos ficando acelerados a cada passo – e não por causa da corrida. O riacho que cortava a encosta íngreme foi meu guia, levando-me até o descampado de pedras que sempre seria o nosso lugar especial. Eu vi suas costas antes que ele desse pela minha presença, que reparasse em mim ali parada, imóvel dos pés à cabeça na sua retaguarda. Percebi que Seth prendeu sua respiração para então virar o corpo, colocando-se frente a frente comigo.

Era a hora de conseguir a minha própria redenção.


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Notas finais do capítulo

Lembrando que o próximo é o último capítulo, hein! Depois tem dois epílogos beeem longos ;)



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