Estrela da Tarde escrita por Ametista


Capítulo 36
O monstro


Notas iniciais do capítulo

Olaaaaar pessoal o/

Chegamos ao capítulo pelo qual todo mundo (principalmente eu) estava se descabelando!

Confesso que eu já estou rindo de nervoso antecipando as reações (mesmo. Bota nervoso nisso)

Não vou falar muito nessas notas iniciais, pra não entregar o ouro, mas peço, PELO AMOR DA DEUSA, PRESTEM ATENÇÃO NAS NOTAS FINAIS

Segue o infarto:



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Não havia respiração além da minha. Não havia som a não ser a água escorrendo pelas úmidas paredes de pedra. O escuro se derramava pelas aberturas retangulares do teto elevado, o que denotava que devia ser noite alta do lado de fora, e os archotes de bronze pendurados nas colunatas exalavam um odor forte e fresco de querosene, ainda que estivessem apagados. A falta de luminosidade não era desconfortável, entretanto. Assim como eles, eu podia ver tudo— Aro e Caius de pé, flanqueados por Felix e Santiago; Marcus esparramado sobre seu trono, junto de Athenodora, Sulpicia e Corin; Chelsea e Demetri com as garras presas em advertência nos ombros de Amun e Benjamim; Jane e Alec estrategicamente parados próximos de David, estático à minha direita.

David, aliás, foi muito mais lento do que eu para captar os sinais nada sutis de que se tratava realmente de uma armadilha. Seus olhos lampejaram feito os de uma corça por cada rosto duro no salão, demorando-se especialmente nos batedores defronte à porta dupla atrás de nós e aos buracos que serviam de saída, parando por fim na face inexpressiva de Aro, que poderia muito bem ser catalogado como uma estátua, se não fosse as mãos unidas se apertando com avidez.

— O que está acontecendo? – David sibilou, e sua voz foi um eco vazio pelas paredes, sem resposta. De imediato, sem ao menos ser necessário ler seus pensamentos, eu soube que ele não tinha nada a ver com aquela tramoia.

Baixei a cabeça e apertei o cenho, sentindo um misto de cansaço pelos três dias em que fiquei desacordada com vergonha alheia das grandes. Tentar me encurralar sozinha já era por si só uma loucura, mas tentar pegar David e eu desprevenidos era simplesmente burrice.

— Olhe, eu sei o que estão planejando. Não vai dar certo e vocês vão se dar bem mal – avisei com um tom rabugento, embora pacífico. – Agora, que tal se eu sair por aquela porta, fingir que não vi o que eu estou vendo, e todo mundo aqui continuar inteiro?

De novo, silêncio. Minha proposta passou sem surtir efeito na Guarda, que permaneceu imóvel em suas respectivas posições, no entanto encontrou lugar nos ouvidos atentos de Aro. Os pés descalços deslizaram acima do calçamento com a graça de um sopro e, pela primeira vez, seu séquito de defesa não se moveu com ele.

— Eu nunca cobicei tanto um talento como cobicei você, Anneliese Masen – sussurrou depressa, como se confessasse seu maior pecado. – Nunca. Nem quando desejei recrutar Alice Cullen ou o seu brilhante irmão Edward, nem quando eu trouxe Jane e Alec para estas fileiras... Nunca um dom me foi tão precioso quanto o seu. – Seus olhos, de um vermelho vívido que denotava uma alimentação recente, cintilaram de ganância. – E como eu poderia não querê-la? Ter tudo e a todos dentro de si. Ter a invencibilidade ao alcance do toque. O real significado de poder. Não imagina o quanto eu ansiei por tê-la aqui, nestas paredes, minha cara. – Ele sorriu. – Meu maior tesouro, a maior aquisição de nossa pequena reunião. Porém, agora que a tenho, posso enfim ver a verdade. – O sorriso esmoreceu um pouco, e para quem não o conhecesse, ele poderia se passar por pesaroso, mas não havia qualquer tristeza emanando de Aro. Muito pelo contrário; a onda de contentamento que emanava dele deixava evidente a sua intenção de me fazer sentir seu júbilo com o triunfo, de se certificar que eu o visse desfrutando da sua vitória. – Tanto poder nas mãos de uma única criatura é perigoso. É volátil. Um risco do qual não precisamos. Mesmo que estivesse do nosso lado, cedo ou tarde teria se voltado contra nós.

Antes que eu pudesse prever, rápido demais para que pudesse impedir, alguém parou do meu lado esquerdo, junto ao meu ombro. Girei a cabeça a tempo de flagrar Demetri sorrindo, um sorriso perverso e convencido, sua mão já agarrada à minha erguendo as duas para o alto feito um troféu – a luz pálida e esbranquiçada que bruxuleava da minha palma era a única fonte de claridade do salão. Meus joelhos ficaram impotentes ante à descarga selvagem de dor que me perfurou com a precisão de mil agulhas; tombei aos pés de Aro tal qual como o monstro o obrigara a se prostrar diante de mim.

— Anna! – o grito de David, embora ele estivesse a não mais que meros centímetros, soou distante e disforme como se atravessasse um túnel. Sem forças para me virar para ele, encarei-o pela minha visão periférica e no momento exato em que ele também caiu, as mãos de Alec que desapareciam em meio a uma neblina leitosa o segurando pelo pescoço conforme os gêmeos o arrastavam para longe.

Era isso. David seria poupado. Enquanto Alec o destituía de sentidos, imobilizando-o, meu poder seria explorado até o limite – eu seria entupida de duplicatas até não aguentar mais, e quando estivesse no meu estado mais vulnerável, mais frágil e inofensiva, eles atacariam. Apenas eu. David não era somente talentoso; era uma ferramenta que Aro poderia manipular. Uma preciosidade, uma raridade, e depois que eu morresse, único.

Minhas pálpebras pesaram e a escuridão me abraçou – familiar, como o monstro que a acompanhava. O monstro. Eu arquejei de alívio quando ela veio ao meu socorro e, igual das outras vezes, não tive medo e nem hesitei em entregar as rédeas para ela, que as empunhou com entusiasmo. Ao invés disso, entreouvi-me suspirar de prazer à medida que minha pele endurecia feito uma armadura, ficando tão fria quanto uma, e perdia a cor rosada à proporção que meus batimentos se tornavam mais lentos, pesados. Esperei também que a dor sumisse – a dor sumiu em alguma ocasião, não foi? –, mas ela permaneceu presente, firme e devastadora, e foi quando eu comecei a lembrar do ocorrido na sala de música, de como a dor não cedeu e meu corpo se confundiu, sucumbindo. Recordei-me com uma nitidez assustadora da sensação nauseante de instabilidade, do ir e vir urgente entre a minha consciência e a do monstro, e então sim eu temi – senti o pânico se espalhar em sincronia com as mudanças que advinham com ela, porque se eu desmaiasse naquele instante, seria o fim para nós duas.

 Meu desespero deve ter transparecido de alguma forma, pois de súbito Aro se agachou e pegou meu maxilar entre os dedos, compelindo-me a olhá-lo nos olhos. A cor vermelho-rubi do monstro, outrora espantosa e intimidativa para quem a confrontasse, não teve qualquer peso sobre o ancião, que se restringiu a um arquear arrogante da sobrancelha.

— Não é certo que algo tão grandioso fique apenas sob sua responsabilidade, menina. Ninguém deveria ter tanto, tal disparidade não deveria existir. É por esta razão que estamos hoje, regendo este julgamento, tendo Amun e Benjamim por testemunhas de sua condenação. – Aro se inclinou como se fosse depositar um beijo na minha bochecha, mas os lábios de papel foram além; senti-os se escondendo nos meus cabelos e roçando na orelha, junto com o hálito. – Nunca cobicei um talento como cobicei você – repetiu, aos sussurros, e o pior dos calafrios fez um passeio horrendo pela minha espinha. – Parece apropriado que seja sentenciada a morte detendo todos os dons que eu quis ter.  

Reagindo a um convite que eu devia estar absorta demais na dor para assimilar, Chelsea substituiu Demetri ao tomar minha mão para si, e ela fez questão de me olhar de cima para não perder nenhum detalhe do estrago que seu dom me causaria. Foi como se eu absorvesse ácido corrosivo. Tanto eu quanto o monstro não conseguimos conter um guincho inumano de agonia. O som lancinante subiu reverberando pelas paredes. Senti o monstro protestando, revoltado, dentro de mim. Ela queria lutar. Queria matá-los um a um. Queria deixar o instinto primitivo de defesa prevalecer para fazê-los se arrepender amargamente do maldito dia em que nasceram. Seu desejo era tão sobrepujante que se exteriorizou através dos poderes que já tínhamos; as pedras do pavimento se sacudiram com a gravidade sendo despertada, as paredes tremeram, os archotes de bronze e qualquer metal ao alcance de nossos domínios rangeram enquanto se dobravam, a realidade à nossa volta tremulou para exibir uma série de paisagens aleatórias e visões incoerentes. Aro e Chelsea recuaram poucos passos, porém continuaram com a atitude vigilante – sabiam que a ruptura, o momento pelo qual esperavam tão ansiosos, estava por vir.

O monstro também sabia. Ela sozinha não era o suficiente. Nosso final estava próximo – já podíamos sentir a morte fazendo cócegas na nuca. Ela não tinha o que meu corpo precisava para abranger tanto poder, tantas emoções, tanto instinto e força de vontade ao mesmo tempo. E o que faltava a ela... era o que cabia a mim. Eu a completava tanto quanto ela me completava.

A descoberta foi tão chocante que meus braços afrouxaram; sem o apoio que ofereciam, minha bochecha foi de encontro ao frio das pedras no chão, batendo com um estalo. Meu corpo, de bruços, ainda se sacudia com a intensidade brutal dos espasmos, que a cada onda trazia uma nova espiral de tortura, mas agora eu mal sentia – eu havia encontrado uma solução, uma saída, uma cura, e ter tudo isso personificado no monstro, a criatura interior e puramente instintiva que repudiei por tanto tempo, era o que bastava para eclipsar todo o restante.

Mas os vampiros ao redor não tinham conhecimento do meu pequeno lapso epifânico. Para eles, eu me desdobrava no auge do sofrimento em meus últimos suspiros, e cada lágrima involuntária que pingava de meus olhos eles comemoravam com o fervor excitado de um brinde – ou assim eu sentia, dadas as emoções que externavam. Somente um deles não se encontrava em deleite com a situação; mesmo que imutável na sua habitual expressão entediada, Marcus se mostrava incapaz de assistir, e depois de cruzar com meu olhar por um segundo, seus olhos enevoados fuzilaram Aro em pura repugnância.

— Não vou participar deste disparate. – Ele levantou de supetão e, para minha surpresa, Corin, Sulpicia e Athenodora o acompanharam calmamente rumo às portas. – Com sua licença.

Aro não se abalou com a falta de apoio do irmão. Ele tinha o ímpeto violento de Caius a seu favor, e isso era o bastante. Sob o fechar das portas, pareceu que a saída de Marcus e das esposas suscitou um sentimento de impaciência nos que ficaram; Demetri deu um empurrão brusco nas costas de Benjamim, incitando-o a vir na minha direção, e os batedores se retesaram, pois estavam convictos de que ele seria a última cartada.

Não culpei Benjamim por vacilar nos passos, demonstrando dúvida. Os próprios Volturi e os de alta patente da Guarda não escondiam o receio, especialmente porque as pedras em contato comigo começaram a virar pó. Ele trocou um olhar conspiratório com Amun, que mal conseguia engolir em seco, e acabou sendo persuadido pelo olhar mortífero de Jane, que me apontou com o queixo.

— Toque na mão dela, jovem Benjamim – Aro incentivou, vendo-o se ajoelhar devagar. – Toque-a, e poderá ir embora em paz.

Benjamim me fitou como se me pedisse desculpas – era um olhar límpido, verdadeiro. Fiquei grata pela delicadeza e compreendi depressa porque Edward gostava dele. Quis facilitar. Quis que Benjamim se salvasse do que eu já sabia que iria acontecer. Fiz que sim com a cabeça, confirmando que eu tinha entendido o recado, e abri minha mão para encorajá-lo; a princípio, abalado pelas circunstâncias, ele interpretou o ato como um pedido moribundo de misericórdia, contudo, quando meus pensamentos ecoaram uma mensagem nos seus, os olhos se ampliaram. Depois que me tocar, ao meu sinal, corra, instruí. Corra sem olhar para trás... Você e Amun. Fujam o mais rápido que puderem. Vou segurá-los aqui.

Demorou alguns segundos, mas ele assentiu de modo tão imperceptível que mesmo eu tive dificuldade de distinguir, embora eu não precisasse de mais. Fechei os olhos e me preparei; não para a agonia iminente, mas para me unir a ela, a parte de mim que eu renegava. Nenhuma de nós duas tínhamos ideia de como fazer isso. Nenhuma das duas sabia se daria certo ou quais seriam as consequências. Se sobreviveríamos. Minha única certeza era que seria permanente. Que não teria volta.

Mas nós pagaríamos para ver. De um jeito ou de outro, aquilo acabaria ali. Não tínhamos escolha.

Então Benjamim encostou em meus dedos. Veio mais dor. O solavanco que se apossou de mim foi tão truculento que meu corpo se virou sozinho para cima. Encarei o teto enquanto a sensação cruciante de ser queimada viva – sem dúvida, dez vezes pior que a da transformação – se associava com a angústia de me sentir ser partida ao meio; meus músculos, meus ossos, tudo em mim parecia querer se dividir. No entanto, nós os forçamos a permanecerem no lugar, eu e o monstro. Nossa concentração era tamanha que o grito incessável rasgando pela minha garganta mal nos incomodava, mal percebíamos. O corpo convulsionava, rebelando-se contra o domínio autoritário imposto pelas duas; braços e pernas se contorciam em movimentos duros pouco naturais, estalos aflitivos preenchiam o salão.

— Agora! – o silvo cortante de Aro desencadeou o ataque, porém a um centímetro antes de qualquer um deles roçar em mim, eles congelaram como se o tempo tivesse parado.

A porta do salão se abriu lentamente. Benjamim e Amun, livres da pressão gravitacional, desapareceram por ela. Meu grito virou uma horripilante gargalhada – uma gargalhada sádica, crescente, gélida, que parecia emergir direto do próprio Inferno. A dor virou um formigamento; as convulsões terminaram inopinadamente. Por uma partícula de segundo, mergulhei em um mar profundo de trevas, e quando retornei à superfície havia me transformado por inteiro – em meu âmago, eu ainda sentia a mesma índole da Anna de sempre, porém renovada. Renascida. Coloquei-me de pé, sem o menor indício de pressa, e os encarei com meus olhos vermelhos. Olhos cor de rubi que agora também me pertenciam – tanto quanto os verde-esmeralda com os quais vim ao mundo.

Estava acabado. Minha consciência havia se fundido completamente com a do monstro. Eu e ela havíamos nos tornado uma coisa só, uma unidade indissociável.

Estudei os semblantes incrédulos dos vampiros paralisados no entorno. Jamais antes eu estivera tão ciente de minha própria periculosidade – jamais conhecera tão bem meu corpo, minhas habilidades, a total extensão dos meus poderes. A pele sólida, eu tinha certeza de que poderia normalizar, se quisesse, assim como a pulsação arrastada. Os olhos, eu poderia recobrar o verde sem muito esforço; afinal, as aptidões do monstro eram minhas também. Poderia, só não queria. Não ainda. Aquela aparência selvagem era bem mais adequada para o que eu estava imaginando.

A telecinese ao meu comando fechou as portas uma última vez – o metal da fechadura entortou para garantir que não voltariam a abrir. Afastei Alec de David com um movimento dos dedos e desfiz sobre todos o campo gravitacional que os prendia; não teria a mais remota graça se eu não os assistisse se desesperando. Eles tropeçaram quando foram libertos, quase caindo, virando um bando de esculturas logo em seguida, porque ninguém respirava, ninguém se movia. Aguardei pacientemente que David saísse do transe e me visse para que eu me colocasse frente a frente com Aro e Caius; eles tremeram e eu sorri, um sorriso mais afiado e mortífero do que qualquer faca ou espada. Sabia que poderia entrar nas suas mentes, torturá-los, obrigá-los a enfrentar seus piores pesadelos, todavia ilusões já não me satisfaziam. Meus planos iam além.

Naquela noite, eu seria seu pior pesadelo.

— Sugiro que comecem a rezar, cavalheiros – anunciei, solícita. – E se regozijem por isso. – Os archotes de bronze, maltratados e retorcidos, mas ainda cheirando a material inflamável, explodiram em línguas de fogo. – Esta noite vocês vão finalmente descobrir se Deus existe.

Matei Caius primeiro. Investi contra ele, que até tentou se esquivar, mas não teve jeito; quando o agarrei pelo pescoço, tirando seus pés do chão, meus dedos foram lambidos por pequenas chamas alaranjadas e foi questão de segundos para elas se espalharem pelo comprimento de seu corpo usando o veneno como combustível. Tive o gosto de ver o pavor nos olhos de Aro, sua exasperação em recorrer à defesa da Guarda – particularmente ao escudo de Renata, apesar de intuirmos que seria inútil –, e notei que muitos deles se mostravam indecisos; não sabiam se fugiam ou se morriam tentando socorrer seu mestre. Esse dilema foi meu melhor aliado; aproveitando de sua desatenção, o fogo dos archotes escorreu pelas pedras e subiu pelas paredes, fechando o salão e todas as saídas em um círculo de fogo inescapável.

Uma vez que eliminei todas as possibilidades de eles escaparem, resolvi prosseguir indo nos mínimos detalhes. Desmembrei Felix no ar e no ato ateei fogo em seus pedaços – o infeliz havia feito o mesmo com Joseph, portanto parecia justo pagar na mesma moeda. Logo depois, foi a vez de Chelsea; ela havia cogitado em partir para Forks atrás de Seth após a minha morte, e eu não podia permitir que ela vivesse tendo arquitetado o assassinato da minha alma gêmea. Demetri. Santiago. Tantos deles viraram cinzas. Contemplá-los queimar, sentir o fogo de perto foi glorioso. Sublime. Com o dom de Benjamim, eu tinha a terra, o ar, a água ao meu serviço, mas era o fogo que me estimulava, foi do fogo que eu ressurgi tantas vezes, inclusive aquela última. A sensação daquele poder, do calor me aquecendo, era tão prazerosa que bloqueou totalmente os gritos de terror ou até os que imploravam por clemência. Eu já tinha incinerado sem dó sete ou oito vampiros quando decidi começar com a principal parte do espetáculo; Jane, a psicopata impiedosa queridinha de Aro, ainda continuava inteira, e se havia uma coisa da qual eu não abriria mão era de que Aro presenciasse a destruição de seus venerados tesouros antes de enfrentar a própria morte.

Eu a trouxe para mim pendurada pelo pescoço, imobilizada de forma que ela não podia nem piscar ou dobrar os dedos. Adorei constatar o dilatado das suas pupilas, o negro do medo tomando conta de sua íris, porque aquilo só confirmava o que eu já sabia; o fato de valentões não serem mais do que covardes na sua essência. Seus olhos me enojavam. Enchiam-me de ojeriza. Era através dos olhos que ela queimava suas vítimas; seria através deles que eu a queimaria. Enterrei meus dedos entre sua pálpebra esquerda e arranquei o globo ocular inteiro do lugar – Jane gritou, um grito que faltou pouco para tremer as dobradiças que apenas ficou mais agudo quando seu olho foi consumido em brasas, intensificando o cheiro doce e enjoativo da fumaça roxa que intoxicava a atmosfera do salão.

Sorri mais largo e eu me encontrava a ponto de arrancar o segundo olho quando uma onda telecinética irrompeu pelo ambiente, abafando as labaredas das extremidades. O escuro recaiu sobre nós novamente ao que as portas se racharam; se eu tivesse sido um segundo mais lenta em congelá-los, metade dos que ainda estavam vivos teriam encontrado sua rota de fuga. Larguei Jane rispidamente e me voltei furiosa para a direção que eu sabia que o localizaria – David surgiu como uma sombra em meio a fumaça, a expressão dura feito diamante.

Não precisei pensar muito para interpretar aquela expressão:

— Não se atreva— ameacei, a voz baixa e mordaz saindo em um rosnado animalesco. – Eles são meus.

— Anna, pare. – Ele espalmou as mãos acima da cabeça conforme seus pés o traziam para mais perto. – Muitos deles estão apenas seguindo ordens. Você não pode matar todos.

— Claro que posso. E vou. – Bufei e arqueei a sobrancelha. – Quer assistir? Se não quer, creio que já conhece o caminho. – Indiquei a saída com o queixo.

— Não vou deixar que faça isso. – David puxou meu braço, exigindo meu olhar para si. – Não posso permitir que você se condene, que se perca assim!

Minhas narinas se inflaram, o instinto reagindo à façanha ousada dele de impor contato físico, e reprimi o impulso de incluí-lo na contagem de corpos carbonizados à medida que projetava o maxilar para frente.

— Por que se importa? – obstinei-me sem me deixar perturbar.   

— Porque você tem coração. A Anna que eu conheço jamais se voltaria contra inocentes.

Isso foi o suficiente para o estopim:

— Não são inocentes! – rugi, minha indignação alimentando a histeria. Não era possível que David estivesse defendendo aquele bando de parasitas. – São Volturi! É a droga da Guarda! Os bastardos que fomos ensinados a temer desde que Joseph nos acolheu! Inocentes é a última coisa que esses desgraçados são!

— Eu não dou a mínima para eles, eu me importo é com você! – rebateu em igual afinco. – Olhe para mim, Anne! Olhe nos meus olhos! – E me sacudiu. – Mas olhe de verdade, olhe você!

Eu compreendi o que ele estava querendo dizer. David queria o verde, não o vermelho. A prova de que meu espírito não havia sido corrompido. De que por mais que eu tivesse mudado, minha natureza permanecia a mesma. Meus olhos marejaram, o rosto dele ficou embaçado com as lágrimas inundando minha vista. David estava com a razão. Não valia a pena matá-los se para isso eu me perdesse.

Soltei-me de seu aperto e senti meu corpo se curvar, apoiando-se nos joelhos enquanto minha respiração se tornava mais carregada. Minha pele respondeu ao fluxo mais rápido da frequência cardíaca, espalhando o calor pelos músculos e recuperando o aspecto macio, suave. Meus poderes fraquejaram ligeiramente – já não era tão fácil controlá-los sem o meu estado de defesa –, no entanto não falharam em nenhum momento; se os vampiros correram porta afora, foi porque assim permiti. Alec, Jane, Heidi, Renata... Nenhum deles hesitou em fugir, ninguém sequer olhou sobre o ombro uma última vez. Só restou Aro. Ele era o único que eu me recusava a deixar incólume.

— Eu odeio você – murmurinhei para David, endireitando a coluna e ofegando de forma audível. – Sério.

David desprendeu o ar ao se deparar com o verde-esmeralda dos meus olhos e arriscou um meio sorriso aliviado.

— Você ainda é você. – O sorriso ficou mais amplo.

Dei de ombros.

— Eu jamais poderia deixar de ser.

— Que bom. Sempre foi a garota mais determinada e teimosa que já conheci. Ninguém nunca conseguiria coagi-la a ser algo que não quer. Fico satisfeito por ver que isso não mudou. – Ele tirou meu cabelo do rosto e me encarou profundamente, procurando dentro de mim o dualismo que já não existia. – Se essa coisa, o que quer que seja, tem que fazer parte de você, tudo bem. Que seja. Mas você vai encontrar dentro de si a força que precisa para não permitir que isso a domine.

Sorri também, porque pela primeira vez em tempos, eu não tive vontade de recuar do seu toque. Por mais que a nossa história apontasse uma estrada contrária, enxerguei isso como algo bom; um presságio otimista de que ainda havia muita humanidade em mim, e o bastante para que eu não me desviasse de quem de fato era, não importando o quanto as circunstâncias ficassem ruins.  

— Eu sei – confirmei e, de verdade, eu confiava que seria assim.

A mão dele se apegou na minha em um chamado quase tão antigo quanto o nosso laço:

— Vamos sair daqui – pediu. – Vamos para casa.

E eu teria concordado se não estivesse tão consciente da presença de Aro a não mais do que alguns metros. David não demorou muito para me ler. Para ele, eu continuava transparente. Chegamos a um acordo não-verbal; a linguagem de nossos corpos tensos falava o necessário. Foi como sempre trabalhávamos quando irmãos – David começou e eu terminei. Ele avançou em Aro com a velocidade de um raio, decepando parte por parte, ao que eu ateava fogo em cada uma delas, uma por uma. A peça final, sua cabeça, eu insisti em segurar ao nível da minha, de olhar em seus olhos à proporção em que o fogo se distendia por meus braços e se abria como asas nas minhas costas, bramando para a vida enquanto ele era acolhido pela morte. Suas cinzas tombaram e se misturaram às de tantos outros, que foram varridos pela correnteza de ar que vinha dos corredores.

Ali, junto de David, eu dava o meu adeus à Volterra.


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Notas finais do capítulo

Ráaaa, acharam que eu fosse colocar o Benjamim pra lutar contra a Anna, né? Mas nem por um decreto eu trairia um personagem foda assim, Benjamim é independente demais para acatar esse tipo de ordem

E então, o que acharam do massacre?

Certeza de que vai ter alguém puto por ela não ter matado o David (ou não). A única coisa que tenho a dizer é: temos mais dois capítulos e dois epílogos (um da Anna e outro do Seth) pela frente

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