Estrela da Tarde escrita por Ametista


Capítulo 38
Lar


Notas iniciais do capítulo

Olaaaaar, meus amores! Bem-vindos ao último capítulo oficial da fic!
"Oficial", vocês me perguntam. Pois então, temos ainda os epílogos, e o que é narrado pelo Seth vai funcionar como uma espécie de capítulo extra, uma espécie de bônus

Bom, vocês verão o porquê (muahahahaha)

Enfim, eu demorei um pouquinho porque queria esse capítulo P-E-R-F-E-I-T-O, e se não chegou nisso, acredito que tenha chegado minimamente perto

Vou esperar a resposta de vocês, é claro ♥ Quero ver se concordam ou não

Enfim, bora lá



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Nenhum de nós dois, a princípio, disse alguma coisa. Nenhum de nós dois se moveu ou deu sinais de que pretendia se mover – ou fazer algo além de se encarar. Reparei vagamente no ar ganhando a liberdade dos pulmões de Seth, apesar de que sua pulsação se tornou acelerada, e fiquei um tanto confusa quando me dei conta de que aconteceu o mesmo comigo; meu coração já voava em suas batidas, mas quando foi que eu havia segurado a respiração também? E como foi que as horas passaram tão depressa? Eu tinha certeza de que momentos antes ainda estava na Noruega, diante dos restos de David e da mansão que um dia foi meu lar ardendo em chamas... Meus olhos marejaram conforme a névoa entre meus pensamentos ia se dissipando. De repente, eu estava dolorosamente consciente da realidade dos fatos; o massacre em Volterra e o suicídio de David foram de lembranças indistintas a imagens nítidas na minha memória, um acréscimo desnecessário ao sofrimento que eu já guardava por ter abandonado Forks.

Aquilo era Seth me arrancando do torpor, sem dúvida. Nada poderia tornar tudo mais verdadeiro e visceral para mim do que a sua presença. Ele usava somente uma bermuda velha, estava descalço, e pelo jeito acabara de chegar de um banho; o perfume do sabonete ainda era fresco na sua pele e o cabelo negro e espetado estava úmido. Era explícito o quanto ele havia mudado em pouquíssimos dias. Mais alto, mais musculoso – tinha olheiras maiores também. Não parecia ter sobrado um vislumbre que fosse do garoto sorridente de outrora; esse era um homem sério, circunspecto, de olhar ferido e perigoso.

Talvez a maior mudança tenha sido no comportamento. Minhas lágrimas represadas não o balançaram, como teriam feito em outros tempos, o que para mim foi um abalo enorme. Seth respondeu a elas com uma frieza atípica, cruzando os braços nus com força e contraindo o maxilar para reprimir uma reação involuntária.

— O que está fazendo aqui? – inquiriu com um sarcasmo ácido, uma faca serrilhada que eu jamais imaginei que veria Seth usando, que dirá comigo. – Ele sabe? – Suas sobrancelhas fizeram arcos arrogantes, mas ressentidos, acima dos olhos estreitos.

Fiquei tão perturbada com a atitude seca que meu corpo entrou no piloto automático na velha prerrogativa de revidar o sarcasmo com mais sarcasmo; minhas mãos se uniram nas costas, amassando a carta nos punhos cerrados, e eu dei de ombros para exibir indiferença.

— Suponho que deva saber – redargui por fim, abrindo um sorriso triste e irônico para minhas próprias palavras. Não era mentira.

Seth não demonstrou assimilar as conotações por detrás da minha voz retraída.

— E concordou? – Ele bufou. – Isso sim é surpreendente. – Depois de um riso sem humor, Seth se calou e começou a me escrutinar de cima a baixo, franzindo profundamente o cenho no processo. Uma cartela inumerável de emoções transcorreu o rosto dele, que subitamente ficou sem ação, como se somente então tivesse lhe ocorrido um detalhe. – Você parece muito bem – constatou, meio surpreso, meio acusatório.

Senti meu sorriso tomar outra forma, adquirindo um contorno de evidente alívio. Até as lágrimas contidas recuaram. Soube logo que ele estava se referindo à minha aparência saudável, tão diferente do incontestável estado cadavérico com que me despedi dele, e eu não poderia estar mais feliz por termos esse assunto para esclarecer. Tinha uma crescente esperança de que, se evitássemos falar a respeito de qualquer aspecto relacionado a David por ora, eu poderia me desculpar e finalmente entraríamos em clima de reencontro.

— Ótima, eu diria – suspirei, buscando seu olhar para descobrir como a novidade seria recebida. – Encontrei a cura.

Novamente, não foi nada do que eu esperava. Os braços dele se soltaram do lado do corpo, moles com o choque, e sua expressão mergulhou em uma espiral de pensamentos que, dada a sombra com que se fechou, não eram nem um pouco positivos. Pela primeira vez na vida, tive medo de ler uma mente.

— Por que voltou, Anna? – Seth expirou após o que me pareceu ser uma eternidade, e assim como seu tom, sua musculatura parecia cansada.

Desviei os olhos para o chão e me desequilibrei em cima dos saltos, sentindo como se alguém tivesse puxado com violência o tapete sob os meus pés. Não era assim que deveria ser. Seth não devia estar tão frio. Teria sido muita ingenuidade minha ficar na expectativa de beijos? Abraços? Ou, no mínimo, alguma manifestação de alegria? Balancei a cabeça, completamente sem norte. Se fosse sincera comigo mesma, admitiria que não havia aguardado coisa nenhuma, que voltara correndo para Forks em um impulso desenfreado de desespero porque tinha certeza de que encontraria nos braços dele o antídoto que afugentaria o estupor. Sem o apoio de Seth, largada em carne viva rente ao veneno da minha cabeça, estava torcendo muito para o nevoeiro retornar logo. Enterrada em mim mesma, era plausível que a agonia fosse menor.

— Eu... – Engoli em seco e pigarreei. – Preciso ler uma carta. E não sei se tenho coragem de fazer isso sozinha. – Hesitei. – Pensei que talvez você pudesse me ajudar.

Foi a minha vez de deixá-lo aturdido. Seus olhos de obsidiana se ampliaram ligeiramente e demorou quase um minuto para ele assentir, concordando, embora suas feições não tenham se atenuado. Seth fez um gesto eloquente para que nos sentássemos na borda da pedra, em uma extremidade onde era possível sacudir as pernas sem tocar na água borbulhante do riacho, curvando-se primeiro para me ceder um espaço amplo ao seu flanco.

Com a mão ainda agarrada ao envelope, larguei a bolsa que estava pendurada no ombro sobre as pedras e me despi do grosso casaco negro que cobria o vestido – eu havia comprado os dois em Bergen antes de embarcar no avião com o intuito de não levantar suspeitas, mas ali, com os neurônios funcionando, cheguei à conclusão de que os humanos deviam ter desconfiado de qualquer jeito, afinal, que pessoa fazia uma viagem intercontinental e não levava bagagem? Notei que Seth fez uma careta para o vestido rosa-bebê à medida que eu me sentava a uma distância confortável e fingiu não ver meus dedos trêmulos quando entreguei a ele o envelope.

Sem cerimônias, ele o abriu e puxou de dentro um papel texturizado e cheio de floreios, porém bastou desdobrar e bater com os olhos nas linhas escritas para que me devolvesse com um movimento ríspido.

— Está em russo – murmurou, pouco amigável.

— Ah, desculpe. – Senti o rosto esquentar e quis me socar por não ter deduzido antes. O bilhete no envelope já estava em russo, não estava?

— Apenas leia em voz alta. – Ele apontou impaciente para a carta ao mesmo tempo em que eu forçava o ar pelos meus pulmões, começando a leitura.

 

“Minha querida Anne,

eu realmente espero que você esteja certa e que, cedo ou tarde, acabe despertando. Não apenas para que possa ler essas palavras que lhe deixei, mas porque também sem você esse mundo seria um lugar muito menos colorido. Eu não menti ou exagerei quando lhe disse que não poderia existir em um mundo onde você não existe. Nada me amedronta mais do que a perspectiva de assisti-la fechar seus olhos para nunca mais abrir, e agora que me conheço o suficiente e conheço meus medos, posso afirmar isso com todo o meu coração. É irônico como as coisas mudam, como o tempo em alguma altura da vida nos faz repensar nossos princípios. Fez com que eu também repensasse meus sentimentos por você. Eu a amei desde o primeiro instante. Santo Deus, e como amei. E eu a odiei quando me rejeitou. Odiei-a ainda mais quando escolheu outro para o lugar que deveria ser meu. Mas por mais que eu a odiasse, jamais consegui querer – ou sequer imaginar – você morta. Mesmo quando Joseph morreu e eu próprio me vi a ponto de matá-la. Mesmo quando o rancor nos converteu em completos inimigos... Então aqui, enquanto escrevo, só posso desejar fervorosamente que você abra os olhos em algum momento e viva, minha adorada. Rezo para isso como nunca rezei na vida, sobretudo porque não estarei presente para vê-la acordar.

Você vai me odiar por isso, tenho certeza. Mas sei também que há de me compreender. Não me reconheço mais. Olho no espelho e sei que Joseph teria vergonha do que me tornei. Você o conhecia tão bem quanto eu; Joe era o melhor dos pais e jamais deixaria de abrir os braços para um filho pródigo, acolher uma ovelha desgarrada que se desviou do rebanho, afinal, ele mesmo já foi um integrante da Guarda Volturi, só que ele não teria me perdoado pela dor que causei a você. E ainda que perdoasse... Joseph apenas o faria se visse no fundo dos meus olhos algo que pudesse ser salvo, e nós dois sabemos que já não há mais nada. Fui vencido pelas sombras. Diferentemente de você, minha querida, eu lutei contra as trevas dentro de mim, contudo fui derrotado. E não é somente o sangue humano nos olhos... Vai mais além. É o vazio, um espaço oco no peito. O eco do abandono deixado pela alma. Porque eu sei que minha alma me abandonou – e faz tempo.

Sei no que está pensando – ainda conheço você o bastante para saber. E lhe garanto: está tudo bem. Tirar a própria vida é de fato um pecado inominável, mas convenhamos, e então lhe pergunto, há algum pecado maior que eu já não tenha cometido? Já matei, roubei, cobicei, mencionei o nome do Senhor em vão tantas vezes; será que me matar vai ser assim tão errado? Tenho comigo que não. Tenho comigo que na morte poderei me redimir, pagar minha dívida. Tenho comigo que o fogo vai me purificar. Funcionou com você, não foi? Vi você sair tão mais pura das chamas em Volterra, que me encheu de esperança que aconteça o mesmo comigo.

Você disse ainda há pouco que não se conserta cristal quebrado. Sendo filha de Joseph Dalaker e tendo seus poderes, deveria entender melhor do que ninguém que isso não é verdade. Já perdi a conta das ocasiões em que contemplei você e Joe fazendo justamente isso e, talvez, mais importante do que consertar, é poder transformar esses cacos em algo novo. Embora eu me arrependa amargamente de ter lhe ferido, não posso afirmar que sinto pelas coisas que disse e fiz ao seu vira-lata sarnento. Continuo achando que o garoto não é bom o suficiente para você, mas não sou eu quem tem que decidir isso, e para ser sincero, penso que homem nenhum seria. Você é boa demais para esse mundo. E é essa a razão que me faz acreditar que, com o tempo, eu volte a ter um lugar em seu coração e você seja capaz de se lembrar de mim com carinho.

Eu amo você, Anne. Do meu jeito torto, sujo e errado, mas amo. Não faz ideia do quanto. Obrigado por ser minha estrela-guia. Obrigado por ser meu pequeno milagre.

Seja muito feliz.

                                                                                                              Para sempre seu,

                                                                                                                             David.”

 

Deslizei os dedos pela assinatura graciosa e só percebi que estava chorando quando uma lágrima pingou na borda do papel. Aquele ponto final deixou para trás uma sensação esquisita comprimindo meu peito – a mesma fisgada de dor e aceitação que sempre surgia em despedidas – acompanhada de uma inconfundível onda de alívio; e não é que o filho da mãe se desculpou, afinal? De uma forma pouco convencional, é verdade, mas aquilo era bem David sendo David – ele nunca fez qualquer coisa por meios que eu pudesse presumir, e com isso não seria diferente. Sorri e apertei a carta contra o coração, querendo carimbar nele aquelas palavras que já ficariam permanentemente gravadas na minha memória, não deixando de fazer prece muda para que ele tenha partido em paz. No fim, David conquistara esse direito e eu certamente estava em paz. Era como se as portas do meu passado se fechassem às minhas costas e eu estivesse pronta para outras mil de possibilidades que se abriam adiante. 

— Bem, é isso – desprendi com um sopro de ar, e foi como se uma tonelada saísse dos meus ombros. Endireitei-me para a liberdade.

— Eu sinto muito, Anna – o sussurro pesaroso que veio de Seth me pegou desprevenida, fazendo com que eu me voltasse inteiramente para ele. Não havia mais espinhos em riste ou vestígios de animosidade. Aquele que me encarava de igual para igual nos olhos era o meu Seth, o meu garoto-lobo que estava de volta, com seus olhos inocentes e jeito de menino no corpo de homem. Foi quando eu descobri que não era a única que estivera em guerra com a catatonia.

— Eu também. – Ri baixinho no que ele torceu o nariz, sobrepesando o significado disso, e larguei a carta no ar, apreciando o seu movimento enquanto ela planava em direção ao riacho. Antes que a folha tocasse a superfície da água, o fogo irrompeu da ponta, consumindo-a até não sobrar nada. – Não dessa forma que você provavelmente está pensando, mas é. Sinto.

Seth teve um leve sobressalto com a aparição súbita da chama tremeluzente, entretanto se deteve a um segundo de levantar questionamentos, mudando de ideia:

— E agora?

Virei-me devagar para o horizonte, um pouco para baixo, onde as nuvens carregadas se derramavam sobre a cidade. Era bom observar o cair torrencial da chuva. Era bom saber que eu estava em casa – e sem amarras ou segredos com que me preocupar. Senti um sorriso tão largo, tão amplo se distendendo em meu rosto, que por um instante experimentei a mesma emoção da primeira vez em que voei, quando abri os braços livremente e me deixei levar feito uma andorinha pela imensidão do precipício. Eu não estava espreitando os pensamentos de Seth, nem tinha intenção alguma de espreitar, mas sabia com um rigor cirúrgico o que ele estava me perguntando – e sabia qual era a minha resposta.

— Agora acabou. Dei um fim digno a todas as pontas soltas do meu passado. Creio que agora posso respirar fundo e seguir em frente. – Tentei filtrá-lo pelo canto do olho, sorrateira, procurando antecipar como seria recebida. – Começando pelas desculpas que devo a você, Seth. É o primeiro para quem eu preciso pedir perdão.

Nem nas minhas piores hipóteses eu poderia conjecturar que seria tão ruim quanto foi. Uma tempestade de emoções pesadas o obscureceu – o garoto doce cedeu de novo o lugar para o homem gélido, que me fuzilou com tamanha intensidade no olhar irritado que a dor foi física. Ele se levantou rapidamente, ficando de costas.

— Não tem porquê se desculpar, Anneliese. Você não me prometeu nada, lembra? – atirou com o tom ácido de antes. – Teve todo um cuidado especial em não me fazer promessas.

Retraí-me com a violência do golpe – dada a precisão diligente com que fui atingida, estranhei não ter começado a sangrar. Eu não podia me fazer de desentendida acerca do que ele estava falando; era uma lembrança vívida, bastante recente, de uma tarde maravilhosa em que nos amamos até a exaustão e depois ficamos abraçados um ao outro, nus, conversando... Seth procurou meus olhos e me pediu para prometer que nunca o deixaria... E, apesar de eu não ter mentido ao dizer que minha vida estava toda dentro dele, portanto não poderia deixá-lo... Aquela promessa nunca foi colocada em termos limpos, de fato.

Eu não tinha chance de defesa. Não tinha argumentos. Fiquei quieta, vendo-me de mãos atadas ante à sua acusação, porém meu silêncio o ofendeu mais do que se eu tivesse gritado. Era reconhecer minha culpa calada.

— Você tem a menor noção do que eu passei aqui?! – explodiu repentinamente, girando os calcanhares na minha direção. Quando não tive reação senão engolir a saliva de modo sonoro, ele bufou e deu uma risada amarga. – Não, é claro que não tem nenhuma! – Houve uma pausa calculada, na qual eu pude sentir com ele suas barreiras se rompendo e as emoções devastando tudo feito uma avalanche. – Eu simplesmente não sabia como agir! A maior parte de mim queria atravessar o país correndo e depois o oceano, nem que fosse a nado, para trazer você de volta! Então eu me lembrava das coisas que me disse naquela maldita despedida. Saber que havia a possibilidade de eu chegar lá e encontrar você morta...! De ter que segurar seu corpo sem vida nos meus braços...! – Seth ofegou, como se forçasse as palavras a saírem, mas elas o sufocassem. Parecia quase cego pelas lágrimas se acumulando no canto dos olhos, só que ele não se deteve. – Era insuportável... Era demais para aguentar. Esse sentimento me destruiu inteiro por dentro... – Ele fungou para controlar o choro. – No final das contas, resolvi esperar. Viver com a angústia da imprecisão ainda era melhor que a dor da certeza. Dia após dia, eu definhava à espera de alguém chegar com a notícia inevitável do que tinha acontecido... – Sua voz falhou, embargada. – Aí eu partiria também, me jogando de um penhasco, uma bala na cabeça, qualquer coisa que me levasse para junto de você. Eu sabia que não era o que você iria querer para mim, mas quem ligaria? Que diferença fazia o que você queria se você não estava aqui?! Mas eu não podia evitar. Sua vida e a minha são uma coisa só.

Ao contrário de Seth, eu nem tentava esconder que estava sendo exaurida pelo choro; minhas lágrimas caíram pelas bochechas profusamente e eu me encolhi igual a uma flor murcha. Fiquei em pé de supetão, movida pelo impulso de sair dali o mais depressa que pudesse correr, afastando-me o máximo daquela tortura, contudo Seth não permitiu que eu fugisse tão fácil – senti sua mão firme se fechando em meu braço, puxando-me obstinadamente de modo que não tive escolha a não ser fitá-lo também.

Congelei no lugar, com um arrepio me percorrendo a espinha e borboletas vibrando no estômago. Minha mente ficou em branco. Por um momento, eu chegara a pensar que acabaria me deparando com raiva ou até repugnância se estivesse próxima o suficiente para enxergar, que veria a acusação implacável, a condenação por minha covardia... No entanto, à medida que ele projetava o queixo para frente, o abismo de seu olhar não revelava nada além de impaciência e frustração, que com o passar dos segundos se transformou em um afluxo violento de saudade.

Não sei dizer quando foi que nos beijamos. Uma hora nos encarávamos e na outra os lábios macios de Seth pressionavam urgentemente os meus, molhados, salgados pelas lágrimas que agora pertenciam tanto a mim quanto a ele, que já não lutava mais consigo mesmo para dominá-las. A mão no meu braço escorregou por minhas costas, apertando-me mais contra ele, mantendo-me tão perto e tão presa, como se através desse gesto Seth expressasse sua intenção de não tolerar que eu escapasse de novo – sua vontade primitiva de me manter ali para sempre.

Seth não me soltou quando nos afastamos um pouco, de testas unidas. Sua respiração irregular se misturava à minha, e talvez por essa razão eu tenha demorado para perceber que ele estava trêmulo; seu corpo estremecia com pequenos espasmos de desespero que me deixou de coração partido.  

— Droga, Anna – resmungou, arquejante, e eu fui envolvida pelo cheiro convidativo do seu hálito. – Você é um pé no saco, sabia?

— Eu sei. E me desculpe, garoto-lobo. – Inclinei-me para beijá-lo de leve. – Eu amo você.

— Quieta, eu ainda estou furioso. – O braço na minha cintura se contraiu e sua mão livre subiu minha coxa. – Eu ainda não lhe perdoei.

E, realmente, Seth estava furioso. Eu podia sentir na ponta de seus dedos cravados na minha pele. Na forma sem qualquer gentileza ou doçura com que ele me beijou logo em seguida. No jeito como ele rasgou o vestido com um único puxão e me deixou totalmente nua em questão de segundos, para então me deitar sobre as pedras. E eu tinha que admitir: eu estava adorando. Talvez fosse a herança do que no passado era o monstro, mas cada vez que Seth me mordia, segurava mais forte ou repuxava meu cabelo, eu me contorcia de prazer debaixo dele.  

— Eu deveria enfurecê-lo mais vezes – rouquejei à certa altura, fazendo-o erguer o rosto dos meus seios, a expressão desafiadora. Sua boca estava inchada, seus olhos negros ardiam na claridade do fim da tarde e, por Deus, eu nunca o vi tão lindo. Aproveitei que ele já havia se despido da bermuda para girar por cima dele sem pedir ou avisar, assumindo o comando. – Deixe-me buscar meu perdão.

Seth reparou que havia algo diferente. Mesmo se ele não tivesse descoberto por conta própria os indícios na minha fisionomia, seria impossível não identificá-los na natureza ao redor, que exteriorizava a mudança à sua maneira; as águas se agitando e batendo com mais ímpeto nas pedras seguindo o ritmo dos meus movimentos, o rolar de algumas rochas acima do riacho sincronizado com a frequência dos arranhões que eu fazia em sua pele castanho-avermelhada, a vivacidade do vento acompanhando meus gemidos suaves. Ele reparou, mas não se assustava – parecia reconhecer que, assim como ele, eu agora também fazia parte da paisagem silvestre. Claro que essas observações em pouco tempo pararam de ter importância; Seth se perdeu tanto no meu corpo quanto me perdi no dele, e já era começo de madrugada quando nos deitamos, abraçados, tentando contar o punhado de estrelas que pontilhavam o céu noturno.

Depois de minutos de uma quietude acolhedora, senti um beijo tocar minha testa com ternura antes de ouvi-lo indagar, aos sussurros:

— Como se curou?

Apoiei o queixo no seu peito para analisá-lo melhor. Eu não queria deixá-lo preocupado, mas estava decidida a não mentir ou omitir mais fatos de Seth. Respirando pela boca para abafar o nervosismo e começando a sentir um suor pegajoso nas palmas das mãos, permiti que meu corpo assumisse seu o recém-adquirido estado de defesa e não levou nem dez segundos para que meus batimentos cardíacos reduzissem em detrimento da pele enrijecida, que ficou mais pálida e perdeu calor. A alteração mais impactante, eu estava ciente, era a cor de meus olhos, que não pude evitar encobrir por detrás das pálpebras no que o vermelho-carmim veio à tona, hesitando em revelá-los. Seth foi um dos que mais sofreram nas mãos do monstro e eu tinha medo de qual seria sua reação, entretanto percebi que estava absolutamente equivocada no que ele levantou meu rosto com o indicador, impedindo que eu me esquivasse de ser examinada.

Seth não se intimidou diante da face da predadora, como conjecturei que teria feito, e demorei a compreender que, para quem tinha um lobo gigante guardado dentro de si, era uma trivialidade aceitável ter que lidar com olhos sangrentos e uma pele mais dura e gelada – desde que eu, a consciência da Anna, também estivesse presente. Suspirei de alívio no ato, trazendo meu corpo de volta ao normal, e notei que a única prova de que ele estava impressionado era um mínimo vinco de dúvida na testa, entregando sua curiosidade em entender como aquilo havia acontecido.

— É uma longa história, eu conto mais tarde – prometi solenemente com um sorriso travesso, sentando-me para me espreguiçar com os olhos fixo na direção onde, eu bem sabia, se localizava a casa dos Cullen. – Melhor guardar para quando estivermos todos juntos.

Ele captou de imediato o que eu estava insinuando.

— Tem razão, eles vão ter tantas perguntas quanto eu – concluiu, pondo-se de pé em um estalar de dedos. – Talvez já devêssemos ir.

Mal pude disfarçar o meu desapontamento por vê-lo abotoando a bermuda. Eu gostava de apreciá-lo sem ter roupas atrapalhando minha visão – era como ter sua estátua particular de deus grego, porém com atributos muito melhores. Deduzi que eu devia estar secando ele igual a uma pervertida, porque Seth estacou no lugar, questionando o meu sorriso lascivo, que tratei logo de abafar me concentrando em calçar as sandálias.  

— Precisava mesmo ter rasgado o meu vestido? – reclamei ao que estudava as tiras de seda rasgada pendendo para as margens do riacho. Levitei-os no ar e ateei fogo neles também; eu não era do tipo que deixava lixo maculando a montanha.

— Precisava. – Ele gargalhou. – Não vejo você usando uma coisa tão terceira idade desde aquele quadro. Quil até se ofereceria para ajudá-la a atravessar a rua, se visse você com ele.

Enrubesci.

— Engraçadinho. – Revirei os olhos e me apressei em afivelar cuidadosamente o casaco de modo a esconder minha nudez. Ficou razoável; desde que não erguesse os braços para o alto, poderia se passar por um traje social. Seth me estendeu a mão para que descêssemos juntos, contudo eu demonstrei incerteza em aceitá-la. Ainda havia um assunto inacabado para resolver. – Espere. – Parei para tomar fôlego e ele arqueou a sobrancelha, cauteloso. – Sei que o que fiz, apesar de ter justificativa, foi algo horrível...

Seth se distanciou de mim todo retesado, como se eu tivesse lhe espetado agulhas. Refreando um acesso de ódio selvagem que o deixou à beira da transformação – a fumaça subiu pelos ombros e pelo topo da cabeça –, ele praguejou entredentes e apertou a ponte do nariz.

— E o pior é que não se arrepende – cuspiu quando terminou a enxurrada de palavrões.

— Não pode me culpar pelo que fiz – teimei, pertinaz. – Os cães fazem isso, não fazem? Eles não se afastam dos que amam para que não os vejam morrer?

— Você não é um cachorro, Anna. – Seus olhos me censuraram, cortantes.

Enviesei o sorrisinho malicioso que costumava desarmá-lo.

— Mas posso morder, se pedir com jeitinho – provoquei com voz aveludada. Quando ficou óbvio que ele não ia cair na armadilha, desisti e entreguei os pontos. Tentei não pensar. Desejei que as palavras viessem sozinhas, porque, quando viessem, teriam a sinceridade com que apenas o coração é capaz de confessar. – Olhe, não vou mentir e dizer que me arrependo. Seria um insulto à sua inteligência. Se eu pudesse voltar no tempo, faria tudo exatamente igual e sem pensar duas vezes, se fosse para garantir esse resultado. Ter você, Eddie e os outros, as matilhas, todos a salvo, os Volturi destroçados, o meio-termo de paz com David... Tudo isso valeu cada filete de dor, cada gota de sangue, cada lágrima que derramei e eu andaria descalça nesse calvário de novo se fosse necessário. Porque essa história era minha, Seth. Minha. Eu comecei. Eu terminei. – Dei um sorriso tímido, sendo tomada mais uma vez por aquela onda de liberdade. – E, agora, sinto que estou pronta para começar uma nova história. Mas eu não quero segurar a caneta e preencher as páginas sozinha. Quero você comigo para isso.

Seth fechou os olhos e tremeu. Por um segundo, temi que o outro lado dele – o homem sombrio – fosse quem me desse a resposta.

— É errado eu ter medo e não conseguir acreditar nas suas palavras nesse momento? – confidenciou, quase que inaudível. – Suas atitudes e escolhas até aqui não depõem a seu favor e só me fazem considerar o contrário. Por favor, não me culpe por ter perdido a confiança em você.

Tomei isso como um indicativo para me aproximar, abraçando-o e pousando a orelha sobre seu coração, que batia feito louco na caixa torácica.

— Não culpo. E está tudo bem. Vou ter a eternidade toda para reconquistar. – Ergui o queixo para olhá-lo. – Na verdade, penso que é uma ótima forma de começar uma nova história. Eu amo você, Seth Clearwater.

Ele sorriu. Vencido e contrariado, mas sorriu.

— E eu amo você, Anna Masen. – E me puxou para mais perto. – Para sempre.

— Sempre – concordei, procurando seus lábios.

Caminhamos sem pressa pela floresta rumo à minha casa. A terra estava úmida, os saltos finos daquela sandália ridícula afundavam a cada dois passos e Seth riu com gosto quando eu os arranquei, furiosa, e resolvi ir descalça, segurando os sapatos junto com a bolsa. Na proporção em que avançávamos, ele foi me atualizando do que perdi durante o período no qual fiquei fora da cidade; era basicamente o que eu acompanhara nas visões, com a exceção daquela manhã. Jacob convocara uma reunião com a matilha porque foi comunicado pelos Cullen a respeito de um terremoto em Volterra... Ninguém sabia bem como interpretar aquela notícia, então para evitar as suposições dos irmãos, Seth passara o dia na casa da mãe e só retornou à montanha pela tarde, quando sentia que algo estava próximo de acontecer...

Comecei a ficar ansiosa ao chegarmos a uma distância em que podia ler os pensamentos acelerados da minha família. Encontravam-se todos em casa, até Renesmee. Engoli em seco. Como eu contaria a eles acerca do ocorrido em Volterra sem apavorá-los? Como eles reagiriam à minha metamorfose? Será que seriam tão receptivos quanto Seth foi à minha nova condição? Fiquei remoendo isso por tanto tempo que tardei a perceber Edward sintonizando a mente de Seth, mal podendo acreditar no que via através de seus olhos.

Igual da outra vez em que parti de Forks, Edward me aguardava na varanda da casa completamente restaurada sem mover um músculo – a diferença era que agora os demais membros da família foram surgindo em seus flancos, um a um, ao som de nossos passos. Imaginei que o interrogatório teria início ali mesmo, mas eu não poderia ter me enganado mais; ele nem esperou que parássemos para vir correndo ao meu encontro, puxando-me para o interior do seu abraço. Só me dei conta de que chorava convulsivamente quando caímos de joelhos, ainda abraçados, e ri quando o restante da família se juntou a nós, formando uma grande gruta de braços entrelaçados. Eu não poderia me sentir mais amada.

Os questionamentos viriam, isso era certo. Eu não tinha ilusões de que seriam esquecidos. No entanto, assim como eu e Seth, teríamos a eternidade inteira para esclarecê-los. O que importava era que eu estava de volta ao lar.

E nada era tão bom quanto isso.


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Notas finais do capítulo

Ahhhhhh o que acharam?? Me contem!!!



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