Estrela da Tarde escrita por Ametista


Capítulo 3
Encontros




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O voo foi exatamente a completa chatice que eu previ. Senti-me aliviada quando desci ao continente – era ótimo pensar que eu só dependia dos meus pés despertos para chegar ao meu destino. Passei correndo feito um tornado pelas cidades sem ser notada e admirava cada paisagem ao meu redor tentando prender a atenção a sua magnificência. Era espetacular. As folhas cor verde-esmeralda – que lembravam muito meus olhos – se fechavam ao meu redor, tendo poucas brechas pelas quais eu passava. Fui reduzindo a velocidade quando as florestas ficaram mais densas e a brisa imponente me trouxe fragrâncias conhecidas. Suspirei, sentindo de novo. Sem dúvida eram eles. O rastro estava fresco, portanto deviam estar por perto.

— Nahuel! Você está aí? – gritei para as árvores. – Huilen!

O som da minha voz ecoou fundo na floresta. Olhei para os dois lados. Nada. Em um suspiro pesado, sentei em uma pedra enorme que estava por perto e olhei minhas roupas, percebendo que ainda estava na limpeza imaculada de antes de embarcar no avião na Noruega.

Não durou um segundo. Barulhos começaram a chegar de oeste e logo um vulto passou voando, carregando-me consigo a três metros no solo poeirento, criando uma cratera por onde passamos. Lá se foi a roupa limpa.

— Anna! — gritou Nahuel. – Que saudade! É bom ver você de novo.

— Olá, Nahuel. Fico satisfeita por ver que sentiu minha falta – murmurei, sarcástica, enquanto olhava o buraco que se abriu por onde ele me arrastou. – Faz com que eu me sinta amada.

Ele riu e saiu de cima de mim. Fui me levantando e tirando as folhas das minhas roupas.

— As coisas andam paradas, ao que parece. Levando em conta a sua reação ao me ver, é o que posso deduzir – falei enquanto batia nas roupas para tentar se livrar do pó também. Minhas luvas rasgaram, então eu as arranquei e as joguei longe.

— Quem dera. Hoje em dia eu estaria pagando para ter de novo aquela boa calmaria. – Ele deu de ombros, rindo. – Isto, é claro, se eu tivesse dinheiro.

Foi quando Huilen surgiu detrás de uma seringueira, os olhos franzidos.

— Agora consigo entender porque ele saiu correndo feito louco – Huilen resmungou. – Não precisava ter me deixado falando sozinha, Nahuel. Eu sei correr também. Olá, Anna. Que prazer tê-la aqui novamente, querida. Você está linda, como sempre.

— Obrigada, Huilen. Você também está ótima. – Sorri. – Fiquei com saudades, então resolvi visitar. Espero não ter chegado em uma hora ruim.

— É claro que não. Venha me dar um abraço.

Sorri mais largo, atirando meus braços em seu corpo moreno e frio. Minhas mãos quentes, agora livres das luvas, tocaram seu rosto sorridente e as imagens vieram. Os olhos rubis em um rosto de papiro dando um contraste perturbador com o cabelo escuro e liso, dois grupos enormes separados em uma campina com restos de neve espalhados pela grama, o rosto incrível e familiar emoldurado por um cabelo cor castanho-avermelhado impossível de esquecer.

Caí no chão. Meus olhos estavam arregalados de descrença e minha respiração foi aos poucos se tornando acelerada e ofegante. Fiquei olhando para o nada, analisando as imagens que vieram da mente afetuosa de minha anfitriã.

— Anna, o que aconteceu? – Nahuel perguntou, alarmado.

Eu não estava ouvindo. Levantei-me em um átimo e, de repente, estava sacudindo Huilen pelos ombros.

— Huilen, onde você o viu?

— Viu quem?

— O homem de cabelo castanho-avermelhado na campina com vampiros. Onde e quando?

— Como você sabe? – ela mudou de assunto sem querer.

— Meus poderes. – Foi resposta suficiente, mas em seguida voltei à pergunta crucial. – Onde você viu o Edward?!

— Há algumas semanas, na península de Olimpic. Mas você o conhece? Quem ele é, para você ficar assim, exaltada dessa forma? Você sabe até o nome dele.

Caí sentada no solo empoeirado outra vez, sem conseguir escutar mais nada. Só o que eu conseguia pensar era que ele estava vivo. Não exatamente vivo, pois estava evidente que pelos olhos, cor da pele e pelas companhias, Edward era um vampiro.

— Ele é meu irmão – forcei-me a responder.

Eu não sabia muito bem o que estava fazendo. Não, essa não é a afirmação certa. Eu realmente não sabia o que estava fazendo. Só apenas estava seguindo meus instintos e meu coração. Minha mente ficou encarregada dos detalhes mínimos e importantes, como por exemplo, as roupas – Nahuel transformou as minhas em frangalhos, então comprei novas e atirei as outras na primeira lixeira que vi. As novas eram mais alegres, exatamente como meu estado de espírito naquele momento, mas sem tirar a marca atrevida de minha personalidade. Como eu estava no Brasil, eu optei por um moletom com estampa militar, uma camiseta preta escrita “Incomodo? Problema Seu”, uma calça cor verde musgo despojada e mantive as botas. Escolhi também um colar choker e pulseiras. Bom para deixar uma impressão clara de mim logo de início.

Mas eu continuava na mesma. Além de não saber o que estava fazendo, eu me sentia... estranha. Uma pequena parte de minha mente achava que eu estava agindo feito uma idiota. Essa parte tinha bons argumentos; pelo que eu sabia Edward morreu em 1918. Entretanto, a maior parte não via a hora de chegar a Forks – a suposta cidade em que meu irmão vampiro agora residia. Meu cérebro, ao menos, estava analisando as informações básicas: os meus longos anos de estudo apontavam que a península de Olimpic – na qual onde se encontra a insignificante cidadezinha – é um lugar que vive constantemente embaixo de chuva. Queria dizer que as informações batiam; vampiros não podem aparecer na luz do Sol, isto é, na frente dos humanos.

À medida que a esperança ia crescendo dentro de mim, eu tentava exterminá-la. Eu não podia me dar ao luxo de ter esperança. E se fosse tudo mentira? Uma ilusão? Pronto, aí temos mais uma ferida aberta, sua imbecil. À essa altura era surpreendente eu ainda não me sentir anestesiada rente às feridas.

Esse voo foi ainda pior do que o de Bergen à América do Sul. Nele, eu me sentia cada vez mais ansiosa. As memórias de Edward se remexiam alvoroçadas dentro de mim, as melodias impossivelmente doces se arrastando devagar pelos fios danificados de minha mente torturada e encheram minha cabeça até o ponto de eu quase podia ouvir as teclas do piano soando e ressoando. Outra das merdas da semi-humanidade é a memória de elefante. Quando me modifiquei, as lembranças de minha vida humana e vampira passaram a ser uma só, com a mesma nitidez entre si, como se eu tivesse sido híbrida a vida toda. A memória era tão boa que eu podia até lembrar a voz do meu pai quando eu estava no ventre de minha mãe. O que não ajudava em nada quando se quer jogar fora todo um passado turbulento.

Eu não tinha parado para pensar como sentia falta de Edward até ser obrigada a pensar nele, depois de tantos anos. Seu rosto toldou minha visão, o verde de seus olhos sendo aos poucos substituído por um par intimidador de olhos cor topázio, o que me fez abrir um sorriso. O dourado queria dizer que Edward não matava gente inocente. É claro que ele não matava. Ele era o Edward. O Edward certinho, que não quebrava regras. Ele era igual a mim... e a minha antiga família. Senti-me um pouco incomodada com essa linha de pensamento, mas feliz demais para me sentir mal novamente. Egoísta, censurei-me.

Pela sondagem pude ver que, como eu, Edward iniciara a sua vida outra vez, só que – como sempre – teve mais sucesso. As visões flutuavam como nuvens de algodão diante de meus olhos. Edward e a esposa. Edward e a filha. Edward e a família. Uma família muito numerosa, na verdade. Eu sabia todos os seus nomes. Bella, Renesmee, Esme, Carlisle, Emmett, Rosalie, Alice e Jasper. Fiquei carrancuda de repente. Minhas informações eram muito vagas, era tudo que havia na cabeça de Huilen e Nahuel. E eu queria muito mais. Ansiava saber tudo sobre eles. Exatamente como eles iam querer saber de mim.

Gemi internamente no estofado do avião. Seria uma longa história. Na verdade, mais de cem anos de história – o lado da história que ninguém sabia, sobretudo Edward. E ele ia querer saber como eu ainda estava viva, quando já era para ter virado poeira a sete palmos debaixo da terra havia décadas. Eu sabia disso porque queria saber a mesma coisa dele. Omitir alguns pedacinhos disso seria essencial e de extrema importância também, só que seria difícil. Edward lia mentes. Por incrível que pareça, pouco não me surpreendeu; ele lia as minhas expressões com muita facilidade, embora a mentira fosse sempre uma de minhas principais habilidades. Esconder coisas dele ia ser quase impossível agora, mas era o preço a pagar para se ter uma parcela de um passado feliz de volta. Um preço justo, na verdade.

O piloto anunciou em português e depois em inglês o pouso em Nova York. Respirei fundo, nervosa. Agora seria uma escala de Nova York a Seattle. Depois, era cada um por si. Nesse voo, eu queria tirar um cochilo, mas eu estava com medo; embora eu estivesse feliz conscientemente, era capaz de na inconsciência voltar a ter pesadelos. Meus poderes ficavam descontrolados com esses pesadelos, causavam catástrofes. E eu duvidava que se pedisse uma garrafa de Whisky 1953 a aeromoça, ela iria trazer.

Após o que me pareceu serem mil vidas, finalmente me vi na entrada do Seattle-Tacoma International Airport, esperando um táxi. Minha única bagagem uma bolsa preta com os sempre úteis documentos falsificados e vários rolos de notas em dólares. Adentrei em um carro com um motorista moreno e baixinho, que arqueou a sobrancelha quando me sentei no banco de trás.

— Qual o destino, senhorita? – perguntou educadamente, coçando a barba farta e crespa.

Olhei para fora da janela e inspirei fundo, ignorando o cheiro de inseticida do carro. O céu estava nublado e não devia ser mais do que dez horas da manhã. A cidade não era tão movimentada como as outras que já visitei; era um pouco mais calma, pacata. Previ que a cidade onde se encontrava meu irmão mais velho era ainda mais tranquila. E tranquilidade era exatamente do que eu precisava.

— Forks – respondi, ainda que meio indecisa.

— Não, é sério, garota. Para onde?

Ocultei um riso e tentei manter minha expressão séria ao olhar em seu rosto de meia idade.

— Pareço estar brincando?

— E eu pareço ser idiota? Caia fora já do meu táxi. Seus pais devem estar atrás de você com as fraldas.

Com um suspiro dramático, remexi na minha bolsa. Tirei três notas de cem dólares e entreguei a ele. O humor sarcástico que corria em meu sangue veio aos meus olhos.

— Sim, não só parece como é idiota. Que tal agora fazer parte da minha brincadeira, senhor?

Ele não disse nada. Apenas corou, pegou o dinheiro e começou a dirigir. Recostei-me delicadamente do estofado, olhando a paisagem e, pelo canto do olho, flagrei o motorista me fitando pelo retrovisor.

— Então... – começou ele. – O que uma moça como a senhorita vai fazer em uma cidadezinha como Forks? — Ele claramente estava tentando compensar a grosseria.

Levantei uma sobrancelha e um leve sorriso rebuscou nos cantos da minha boca:

— O que quer dizer com “uma moça como a senhorita”? – Eu queria mesmo saber o que as pessoas pensavam de mim sem que eu precisasse tocá-las.

Ele deu um sorriso acanhado.

— Até cego vê que a senhorita não é daqui. E quando digo daqui, quero dizer dos Estados Unidos. 

Ri alto.

— Bem, na verdade nasci em Chicago. Meus pais faleceram quando eu era muito nova –tive o cuidado de não empregar a palavra pequena – e fui adotada depois disso. Meu novo tutor era da Europa, e me levou para lá. Passei a maior parte da minha vida no continente europeu e, quanto a sua pergunta sobre o que estou fazendo aqui, bem, vim visitar amigos. Mas o que me entregou que não sou daqui?

— Seu sotaque. E seus modos. Meus pêsames pela perda de seus pais. – Ele pigarreou, desconfortável.

— Aconteceu há muito tempo. Mas obrigada.

Meu rosto se desmoronou um pouco. Ele viu isso e logo mudou de assunto.

— A propósito, meu nome é Mark.

— Sou Anna.

— Bem, Anna, em que lugar da Europa você morou?

Meu íntimo estava lavado das lembranças ruins. Agora eu só conseguia tinha recordações boas dos lugares em que vivi.

— Já estive em vários lugares, como Bélgica e Escócia. Mas onde me mantive por mais tempo foi em Bergen, na Noruega. Já morei também em lugares fora da Europa como a Índia, Rússia, Brasil e Colômbia.

Mark arregalou os olhos.

— Já conheceu tanto do mundo, sendo tão nova? – refletiu ele. – Pode me contar um pouco sobre esses lugares, Anna? Parecem deslumbrantes.

O resto do percurso se resumiu aos meus relatos do lago Svartediket e a rica beleza das cidades indianas. Parte de mim estava divertida, se entusiasmando com as minhas descrições dos lindíssimos lugares que já visitei; a outra parte, porém, definhava em nervosismo. Podia ser tudo uma ilusão com uma espécie de lavagem cerebral que fizeram na cabeça de Nahuel e Huilen; vampiros podia sim ter tais dons. Era ver o meu para acreditar na veracidade indiscutível desses fatos. Mas acabei cedendo à curiosidade, decidindo encarar a situação de frente, como sempre acabava por fazer ao me deparar com um problema.

O carro foi reduzindo a velocidade. E meu estômago virou do avesso, então deduzi que já estávamos chegando aos limites de Forks. Pareceu mesquinho da minha parte, mas a paisagem, por mais bonita que fosse, pouco me impressionou. A cidade parecia tanto com a área florestal de Bergen que era como se eu nem tivesse saído de casa. Claro que quando vi a área comercial mudei logo de ideia. Bergen era uma cidade chuvosa, sim, mas muito industrializada e Forks era tão calma que era quase possível ver teias de aranha se formando sobre a população.

A chuva caía serenamente quando chegamos. Olhei a loja de presentes à esquerda e pensei em usá-la como pretexto para não dizer onde o taxista tinha que me deixar.

Distraída, disse-lhe:

— Du kan la meg her, Mark.

Mark olhou para mim como se tivesse acabado de nascer um terceiro olho na minha testa.

— Como é, senhorita?

Pensei em seu comentário por um instante. Eu estava tão distraída que não percebi que tinha percebido que havia falado norueguês.

— Oh, desculpe-me. Eu quis dizer que pode me deixar aqui, Mark.

Mark fingiu compreender meu engano.

— Mas está chovendo.

— Pretendo comprar um guarda-chuva ou uma capa de chuva. Fui pega desprevenida, mas quero levar presentes para eles também.

Ele assentiu, parando no acostamento mais próximo. Desci do táxi com um suspiro, entrando na chuva ruidosa.

— Bem, Anna, até mais. Cuidado para não tomar um resfriado nessa chuva!

— Obrigada, Mark! – Acenei enquanto o táxi dava meia-volta em direção à Seattle.

Bem, pensei, ao olhar para cidade úmida. Agora não dá mais para voltar atrás. Sorrateiramente, me dirigi à ponta de floresta mais próxima que havia dali. Quando cheguei lá, comecei a correr. Não havia dito a Mark onde me deixar porque nem eu mesma sabia onde exatamente ficava a casa. Huilen e Nahuel tinham vindo pela floresta quando estiveram em Forks e saíram do mesmo jeito. Eu tinha desenvolvido muito bem o dom de ler mentes com contato físico, mas não bem o suficiente para conseguir sentir os cheiros também.

Basicamente, isso era a tradução de “Se vire”.

Corri sem saber ao certo a direção – era quase como um tiro às cegas. A vegetação – igual em casa – parecia nunca se alterar; tive a impressão que corria em círculos, o que não era verdade, porque eu sentiria meu cheiro na relva molhada se isso acontecesse. Eu podia ouvir um barulho de água perto de mim; um rio borbulhante a mais ou menos duzentos metros. E então que uma coisa muito estranha aconteceu. Passei por um rastro e parei, pois o cheiro me surpreendeu e, ao contrário do que parecia, não era o cheiro do meu irmão. Era um cheiro horrível, um fedor de cachorro-molhado mesclado com um fraco odor humano. Nunca antes tinha cheirado nada assim. Fedia mais que o frango estragado na minha geladeira da semana passada. Era tão repugnante que me fez gemer e recuar.

— Cazzo— praguejei. – Mas o que morreu aqui?!

Ao leste, pude ouvir patas baterem o chão úmido. Vinha a uma velocidade absurda, coisa que eu achava que só vampiros conseguiam fazer. Não pareciam patas grandes, pareciam ser patas enormes. Pude reconhecer então o portador do fedor de cadáver de lobo. Um calafrio subiu a minha espinha. Os pelos dos meus braços se eriçaram. Senti-me confusa; fazia tempo que eu não sentia algo parecido. Surpresa, reconheci o temor, o medo, o grito de autopreservação – uma coisa enterrada em mim há tanto tempo que eu jurava que nunca mais iria sentir. Chocada, optei por uma opção que normalmente eu nunca iria sequer cogitar; fugir do que quer que estivesse se aproximando. O ato me deixou atordoada – eu sempre fora curiosa demais para deixar qualquer dilema sem resposta. Parecia estupidez, mas eu podia sentir que estava fazendo a coisa certa. A bolsa que eu carregava, deixei para trás, sem nem me importar com ela.

As patas ficaram mais rápidas, estavam me alcançando. Foi nesse instante que me toquei estavam me seguindo. A adrenalina, outras das heranças da humanidade, pulsava desesperadamente no meu sangue denso e eu reprimia o impulso de parar e enfrentar a coisa. Dobrei a velocidade, correndo o máximo que pude, porém a coisa ainda assim parecia mais rápida que eu. Comecei a ficar realmente assustada; que tipo de besta estava me seguindo, que tipo de fera? Com o excesso de funções corporais ativadas, minha audição se tornou mais aguçada e pude distinguir que não apenas dois pares de patas me alcançavam, mas sim seis. Merda, pensei, me ferrei. E me ferrei feio. Demônios fedidos estão me caçando.

Nesse exato instante uma forma negra passou assoviando por cima de mim. Pude distinguir cada detalhe, como se estivesse dentro de Matrix. Um lobo preto gigantesco parou defronte para mim com os dentes pontudos a centímetros do meu rosto. Seu hálito era tão podre quanto o seu cheiro, mas naquele momento meu corpo ficou amordaçado a qualquer reação a cheiros ruins. Seu olhar era feroz e ele rosnava para mim, e isso fazia com que seu corpo todo, muito mais que meu um e sessenta e oito, tremesse. Seus olhos tinham uma estranha inteligência, dotados de uma racionalidade assustadora. Eu nunca havia visto nada parecido.

Eu ainda era bastante mentalmente competente para perceber que outros dois lobos me cercavam; um de cor castanho-avermelhado, que era tão alto quanto o lobo preto, talvez até maior, e um de cor chocolate, que era mais baixo. Seus modos eram igualmente raivosos quanto os do lobo cor de meia-noite. Por mais imbecil que pareça, me senti mais calma ao vê-los. A consciência me voltava; eu podia agora lembrar que vampiros eram incrivelmente fortes e lobos, mesmo lobos gigantes, não eram páreos para nós. Na verdade, eu começava a ficar maravilhada; eles eram fascinantes. Seus olhos ainda irradiavam ira e eu julguei que eles temiam a ameaça que viam em mim.

— Ah, lobinhos...? – me senti um pouco confusa e idiota por isso, mas ninguém estava vendo a não serem eles. Eles eram lobos, não eram racionais, mas foi estranho, porque ao pronunciar as palavras, pude ver pela visão periférica que o lobo castanho-avermelhado pareceu perdido e depois tossiu como se estivesse dando risada. Hesitante, estendi a mão para afagar a cabeça do lobo negro. Ele rosnou e fui bastante rápida para retirar minha mão antes que ele a agarrasse em uma mordida.

Fitando seus olhos, pude ver de novo aquela consciência, aquela inteligência que havia visto anteriormente. Seu fedor invadiu outra vez minhas narinas. O mesmo odor humano que tinha sentido no seu rastro se destacava, mas não como se ele tivesse matado um e engolido, o que era bem plausível para um lobo desse tamanho. Era como se... sangue humano corresse em suas veias e estivesse misturado ao sangue animal.

Uma palavra, tão decisiva e explicativa surgiu em minha mente e mostrou-se a resolução do mistério.

Lobisomem.

Eu havia me encontrado com lobisomens. Mal podia acreditar na minha falta de sorte. Só um ser tão desprovido da sorte para encontrar não com um, mas três, três lobisomens.

Eu já havia lido sobre eles nas bibliotecas que eram as casas em que morei. Joseph me falou muitas vezes sobre eles. Que até os valentões dos Volturi os temiam. Eu também sabia, ou melhor, ouvi que eles haviam sido extintos. Que eles não andavam em bando. Mas o que eu via agora questionava avidamente esses fatos.

Ficou evidente que o lobisomem negro viu a compreensão chegar aos meus olhos. Ele se aproximou lentamente, como os monstros fazem em filmes de terror se aproximando da mocinha indefesa, e desde o começo do século XX, eu não me considerava uma mocinha indefesa. Foi quando vi minha imagem refletida nos espelhos de seus olhos; as esmeraldas líquidas de meus olhos estavam arregaladas, mas não de medo e sim de surpresa. Os instintos gritavam para eu me proteger e desta vez obedeci sem questionar. Meus dedos se contorciam em ordem aos metais e minerais afundados na terra fofa. Para o meu alívio, o ferro, em pouca quantidade, se encontrava espalhado no subsolo. Senti uma faceta microscópica de diamante bem no fundo, e era mais do que o suficiente. Eu estava evocando os metais e os minerais ao meu socorro, enquanto que, por debaixo da terra, eles esperavam obedientemente as minhas ordens. A briga começou, pensei.

Corri para outra direção, tentando evitar o confronto, porém o lobo chocolate me bloqueou. Voltei ao lobo preto e ele pensou que eu fosse confrontá-lo, mas a apenas um instante antes do nosso impacto passei derrapando com os pés na terra por baixo de suas patas. Pernas-para-que-lhes-quero, pensei, correndo mais do que meus pés, contudo eles já estavam atrás de mim com uma boa dianteira.

Felizmente eu tinha o elemento surpresa do meu lado. Juntei os pulsos com as mãos em garra e girei o corpo e nesse exato instante seis nacos de ferro – da espessura de uma das minhas coxas e de dois metros cada – saíram da terra em uma espiral furiosa e prenderam o lobo castanho-avermelhado ao chão na forma de uma tenda de índio. Ainda correndo, dei uma cambalhota no ar, vendo tudo em torno, e quando vi o lobo chocolate atrás de mim – com uma expressão confusa, mas determinada – estendi os braços como se estivesse empurrando algo e grades de diamante surgiram da terra, bem a tempo do lobo se chocar de cara contra elas e cair no chão. O lobisomem negro já estava na minha frente – caramba, como eles são rápidos!— e se jogou contra mim, não me dando tempo de evocar mais nada, então, com as mãos em punho, cruzei os antebraços no ar, como se estivesse criando um escudo invisível. A gravidade o empurrou e ele passou voando a dois centímetros por cima de mim.

Rá, Rá, Rá. Se ferraram, otários. No entanto, ainda me mantive na defensiva para o caso deles continuassem me seguindo, correndo a todo vapor a oeste. Foi quando eu ouvi. Mais e mais patas corriam ao meu encontro, vindo de todas as direções. Eb tvoju mat, mais deles. Parei e esperei, me preparando. Com todas as minhas forças, conjurei todos os metais e minerais que se encontravam no solo debaixo de meus pés. Se fosse necessário, eu usaria até os poderes que eu jurei nunca usar, mas eu não iria perder. Eu estava em uma área aberta na floresta, coisa de no máximo quinze metros quadrados, que logo foi povoada por mais sete lobisomens do tamanho de ursos, de cores variadas, do marrom ao cinza. Não havia escapatória; eles estavam por toda a parte.

Lutei sofregamente contra eles sem ter matado nenhum; a luta foi de certa forma tão intensa que eu quando ia ferir um, já estava lutando com outro. Ferro e diamante iam de encontro a eles, a telecinese os fazia bater uns contra os outros. À medida em que lutava, ponderei a possibilidade de matar todos de uma vez – eu apenas os levitaria e faria seus corações pararem de bater –, mas alguma coisa me dizia – talvez meu subconsciente – que eu iria me arrepender muito do ato. Eu praticamente havia me decidido quando ouvir mais patas ao longe. Pude distinguir mais quatorze pares de patas chegando, por onde eu lutei com os três primeiros. Ótimo, pensei, ácida. Eles vão se juntar aos outros. Praguejei uma onda de impropérios. Eu enfrentando dezessete deles? Isso exigia medidas drásticas. Tentei desesperadamente me livrar dos sete, mas já era tarde. Mais sete lobos irromperam as árvores e entraram em sincronia na campina úmida, em minha direção. Com a força da mente, joguei outros dois que estavam em cima de mim para os lados e afastei os sete para trás.

Foi quando aconteceu.

Alguma coisa me atingiu de lado e, como Nahuel no Brasil, me arrastou por seis metros no barro. O lobo cor areia – um que eu ainda não havia lutado, eu tinha certeza disso –prendeu meus braços longe do corpo embaixo de suas patas dianteiras e fitou meu rosto. Minhas mãos balançavam impotentes, tentando se livrar dele. Seu hálito envolvia minha face e até uns respingos de baba de cachorro gigante molhavam a minha testa. Eca. Nos momentos iniciais, pude reconhecer em suas feições aquela mesma determinação furiosa dos demais. Mas então sua expressão se modificou. Transformou-se em uma expressão maravilhada e adoradora, como o cachorro que vê o dono chegando em casa após um longo dia de trabalho. Era muitíssimo estranho ver esse tipo de coisa em um lobo. Encarando seus olhos escuros e seu rosto aparvalhado, um pensamento, um rosto, um alguém, a tanto esquecido se arrastou por minha mente e eu me ouvi murmurar um nome.

— Hans.

Tudo bem. Tudo bem. Ok. Enlouqueci de vez. Simples assim. Era impossível eu me sentir mais retardada. Como eu poderia dar ligação à essência de minha adolescência humana a um lobisomem que encontrei na malfadada península de Olimpic? Sem falar que – considerando que um estava na forma de um lobo – eles não tinham qualquer semelhança que pudesse justificar um aspecto em comum. Seja lá o que tenha acontecido comigo naquele momento, apenas decidi que aquele lobo eu não iria e nem deveria machucar. O que quer que tenha dado conexão a dois seres tão diferentes me fez tomar a decisão de poupá-lo.

Novamente usando a força mental, eu o tirei de cima de mim, o atirando ao outro lado da campina. No instante seguinte, um dos lobos se jogou contra mim e me atingiu com tudo na cabeça; o golpe me deixou atordoada e eu tombei de joelhos no chão. O lobo cor areia uivou, como se estivesse com raiva e dor ao mesmo tempo, embora eu tivesse certeza de não o ter ferido. Outros dois agarraram meus braços com os dentes de adaga e eu gritei de dor ao mesmo tempo em que ouvia pés humanos correndo na nossa direção. Salve-se enquanto puder, pensei. Eu me sentia meio apagada, como se algo me puxasse. Então me dei conta que estava desmaiando. Há quanto tempo algo assim não acontecia?  De certa forma, me senti feliz; eu estava prestes a me encontrar com Joseph aonde quer que fosse o outro lado. Mas lembrei que eu era a principal culpada por sua morte e que a última coisa que eu merecia era o Paraíso. Inferno, aqui vou eu, pensei.

— Parem! Parem! – uma voz feminina gritou, uma voz que parecia ser jovem. – Não a machuque! Deixem-na!

Minha consciência estava longe demais para dizer para a garota fugir enquanto podia. Ou até mesmo agradecê-la por tentar me salvar. Todavia, por mais incrível que pareça, eles soltaram meus braços e eu caí de cara na grama molhada que nem um saco de batatas. Meus olhos estavam girando nas órbitas e ao focalizarem algo novamente, eles se encontraram com olhos negros como a noite.

E então eu me perdi naquela escuridão.


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Notas finais do capítulo

Eb tvoju mat, no caso, seria um belo palavrão em russo correspondente ao nosso VSF.



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