Estrela da Tarde escrita por Ametista


Capítulo 2
Despertar




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A paisagem familiar ainda era doce aos meus olhos quando passei correndo pelo declive da floresta na companhia de David, a alegria dos longos passeios de final de tarde ainda impressa em nossos rostos. Então paramos repentinamente na porta de casa. Vazia. Além do cheiro de Joseph, outros rastos frescos e estranhos se encontravam pela entrada. Olhamos um para o outro, temerosos. Os acontecimentos a seguir vieram a um jato fantasmagórico; imagens rápidas que pareciam compostas de fumaça, que sumiam ligeiras seguidas por outras – a corrida impetuosa, o choque da surpresa, a cena paralisante, a crueldade dos visitantes, a ira em meu corpo, a luta rápida e violentamente cessada. A última, em vez de se esvair, se manteve, a tempo suficiente para que eu pudesse desfrutar de seu deleite doloroso: os pedaços de Joseph no chão sendo transformados em uma fogueira.

Horrorizada com a triste visão, virei-me para fugir, mas o chão embaixo de meus pés se abriu e eu caí no negro profundo daquele espaço, com um grito agonizante em meus lábios e a mão estendida para a luz, rezando desesperadamente para que alguém me puxasse. O breu se fechou sobre mim e o grito se calou.

 

Acordei no susto. No arfar rápido de minha respiração, tentei me acalmar enquanto sentia as lágrimas se acumularem nos cantos dos olhos. Sentei na cama, vendo-me outra vez em uma luta perdida contra o choro. O relógio na mesa de cabeceira anunciava ser duas e meia da madrugada, a chuva caía forte lá fora e eu sabia que não conseguiria voltar a dormir tão cedo. Soltei um suspiro pesado de decepção; queria que fosse pelo menos nove da manhã – o que era demais a se esperar quando se ia dormir às sete. Ri sozinha, sarcástica. Era uma verdadeira pena que soníferos e drogas do tipo “Boa Noite Cinderela” não funcionavam comigo – se funcionassem, eu me tornaria a própria Bela Adormecida e viveria em um sono imutável.

Era mais fácil enfrentar os pesadelos ao dormir do que encarar os fatos acordada. A culpa era minha. Aquilo não era nada menos do que eu merecia.

De olhos fechados, como se pudesse assim impedir as lágrimas de transbordarem, estendi a mão pelo ébano do quarto, encontrando facilmente o interruptor e enchendo o quarto de luz. Olhei em torno. Pelo menos desta vez não havia quebrado nada enquanto dormia – a tequila tinha tido efeito, felizmente. Abracei as pernas, encolhendo-me em uma bola e continuei com o exame curioso aos detalhes de meu quarto. Comecei pelas portas ao sul, as quais a da esquerda dava entrada para o closet e a da direita ao banheiro. Depois a parte oeste, onde se encontrava a saída para a sacada com a mesa do computador à direita. Sobre a superfície lustrosa de marfim, perto do monitor, havia porta-retratos com fotos de Dave e eu na Disneylândia – em um dia chuvoso, é claro – e partituras de minhas composições espalhadas de forma desordenada.

Tentei engolir o nó que inchou na minha garganta ao olhar aquelas fotografias e prossegui. No alto da mesa, um pouco mais à direita, estava meu quadro pintado com tinta a óleo, uma cópia perfeita de meu rosto no outono de 1917. Nele, eu aparecia com meu vestido favorito, o branco com fita de seda verde-jade na cintura e a saia longa revestida de renda, com um chapéu bem típico da moda da época combinando. Eu lembrava nitidamente do dia em que foi pintado. Eu estava usando sapatilhas por debaixo do vestido – sempre odiei usar salto, apesar da minha mãe me obrigar a usá-los com frequência – e não conseguia passar dois minutos sem coçar as mãos escondidas naquelas luvas de renda, que pinicavam feito formigas. Apolo, o cão filhote cor de areia que eu trazia nas mãos, não fez muito para facilitar a situação; ficava se revirando e dando mordidinhas no meu polegar o tempo todo, tornando quase impossível manter a pose refinada de uma Masen que Elizabeth exigira de mim – eu ainda podia sentir seu olhar me recriminando, como se a culpa do meu cachorro não saber posar para um pintor fosse minha. Sorri um pouco ao lembrar de Apolo – ele era uma bola de pelos. Vivia mascando os sapatos de meu pai e...

Esquivei abruptamente das lembranças, passando direto pelo violão preto e pela guitarra vermelha penduradas próximo ao quadro – as marcas registradas de alguém com fortes tendências ao bom e velho rock –, pela enorme estante de livros, que continha todos os meus livros favoritos – de clássicos a contemporâneos –, e saí da cama para analisar a parte leste do quarto, os pés se afundando na lã escura do tapete.

Encarei com bravura o que para outros era uma cena do cotidiano, mas que para mim era como uma sentença no purgatório. No alvo de meu olhar choroso, estava a habitual cama de madeira com seus lençóis desarrumados pelas horas mal dormidas. Do lado esquerdo, continha um aquário embutido na parede que não via o movimento de um peixe nem o borbulhar da água havia anos – uma boa analogia para o que eu me tornara. Na mesa de cabeceira e perto do relógio, permanecendo ali como um advogado de ataque apontando as provas contra o réu, a foto de Joseph, David e eu como a família contente que éramos antes era como uma serra elétrica em meus ossos. Joseph, o amável Joseph, com um dos braços sobre o ombro de Dave e com o outro envolvendo minha cintura, os lábios colados na minha testa em um beijo paternal.

Por um momento senti o chão sumir e meu corpo oscilar. De repente, eu estava no chão, o rosto grudado no tapete, a posição de quem pede desculpas por um ato indesculpável – e era exatamente essa a situação. Meu choro era atípico aos meus próprios ouvidos. Como alguém doente reconhecendo os sintomas, vi-me outra vez no ermo caminho rumo à histeria, mas já era tarde demais para me deter.

Em uma velocidade furiosa, peguei o porta-retratos e o lancei na estante; o vidro se espatifou em mil pedaços antes de cair no chão, restando apenas metal retorcido e minúsculas pedrinhas preciosas acima da foto. Aproximei-me então da foto mergulhada em cacos e comecei a rasgar um a um os rostos ali duplicados. Terminado o ataque de fúria, caí de joelhos rente aos fragmentos de vidro e daqueles que eu amava, aos prantos. Era dor, raiva, desespero – tudo girando dentro de mim em uma espiral vertiginosa. O ataque que se formou em resposta a ele foi brutal e violento – ainda agarrada aos pedaços da fotografia, um grito estridente saiu rasgando por entre meus lábios e os vidros da janela e o aquário explodiram, a cama deu três piruetas no ar e se partiu ao meio antes de cair estraçalhada na porta do closet, a mesa do computador saiu de encontro à mesa de cabeceira e os dois se espatifaram com o impacto raivoso. E, como último movimento da gravidade – uma serva e devota obediente de minha vontade –, a estante voou e se chocou contra a porta do banheiro, se partindo em três, deixando minha valiosa coleção literária espalhada pelo piso. O barulho foi ensurdecedor, mas a pessoa que residia mais próxima da casa devia estar a mais de três quilômetros, além da floresta densa.

Derrotada, levantei, decidida a tentar dormir na própria floresta. Estava chovendo, mas ainda assim parecia melhor que ficar dentro de casa; na vegetação espessa não tinha tantas lembranças e talvez isso me ajudasse a voltar para minha sessão especial com Freddy Krueger. Eu me arrastava devagar em direção a porta, meus pés parecendo âncoras me puxando com força para baixo em direção ao abismo. Pela visão periférica pude ver que a água da chuva abundante entrava pela janela quebrada em direção ao tapete negro e aos livros. Não dei importância; de qualquer forma o quarto já estava uma porcaria. Peguei um travesseiro que estava já estava na rota, imaginando a esponja que ele viraria ao sugar um pouco da água empoçada no terreno lamacento, o que não me incomodou. Concentrei-me unicamente em manter a cabeça baixa enquanto andava do meu quarto no segundo andar até a porta da frente; a casa era repleta de recordações. Quando a alcancei, fitei a noite chuvosa e obscura – parecia que o mar estava nascendo do céu, de tanto que chovia. Mas o que se esperar quando se morava no lugar mais chuvoso e úmido da Europa? Bergen tem uma média de 240 dias molhados por ano. Úmido demais para meu gosto, mas isso nos permitia viver, embora afastados, como pessoas normais na comunidade – o que era inútil naqueles dias, sob vários aspectos. Acabei desistindo da floresta também. O porão, diante das circunstâncias, parecia ser a melhor opção.

De todo o tempo que morei naquela casa, eu nunca havia entrado no porão, pelo simples motivo de que nunca tinha visto necessidade. Os meus dias eram tão alegres e felizes com Joseph e David que, embora a imortalidade se estendesse pelo horizonte, pareciam horas curtas. Por isso era um lugar seguro; me era um completo estranho. Não tinha como haver lembretes ali. Andei rumo ao corredor no canto esquerdo da sala ainda sendo arrastada, puxada pela âncora; quando cheguei a última porta, abri e olhei para o cômodo desconhecido. Havia uma escada que descia, mas dava para ver alguns dos objetos trancafiados na escuridão, como alguns tacos de golfe. Nada que cutucava as feridas; eu nunca nem quis jogar golfe. Desci a escada agora ansiosa para dormir tranquilamente, mas quando parei no último degrau e olhei de verdade o local, meu corpo virou uma estátua viva.

Meio esquecido junto à parede do porão imenso, o piano de cauda coberto de poeira foi uma estaca violenta no meu coração. Mais uma de minhas falhas com Joe se jogou contra minha mente perturbada e se encravou nela sem dó como uma faca enegrecida de ferrugem. Desatei a correr, dando meia-volta sem parar para pensar, porque se parasse, eu tinha certeza que meu corpo cederia e desabaria ali mesmo, se contorcendo pela dor que corroía. Abandonei o seco do tapete persa e da casa aquecida e deixei o véu da chuva me cobrisse por inteira, o que não levou muito tempo.

Indo em disparada mata adentro, já não consegui deter a memória nítida e cristalina como cristal.

 

Os sons delicados de teclas conhecidas subiam corrimão acima, formando uma das mais belas sinfonias que já ouvi na vida. Era a década de trinta e estávamos morando em Bruxelas, na época em que eu ainda possuía olhos dourados e coração gelado. A melodia ascendia escada acima até chegar ao meu quarto enquanto eu estava terminando de me trocar. Coloquei um vestido bege claro, que tinha alças finas e uma faixa contornando a cintura, deixando a saia soltinha até o joelho, toda graciosa e esvoaçante. Meus cabelos estavam parcialmente presos por uma fivela na parte de trás da cabeça, as ondas castanho-avermelhadas terminando em cachos grossos no nível do quadril; o penteado deixou meu rosto pálido na época com uma doce inocência, ainda mais combinado à suavidade do vestido. Quando deduzi que estava apresentável, desci as escadas rapidamente em direção à música.

E lá estava Joseph, sentado defronte ao majestoso piano de cauda no lado norte da sala, acariciando com ternura as teclas e com um sorriso apaixonado nos lábios. Ele me flagrou, parada na escada feito um dois de paus, e disse:

— Olá, querida! – Seus adoráveis olhos dourados analisaram minha vestimenta e seu sorriso ficou mais amplo. – Está parecendo uma boneca de porcelana.

Sorri também.

— Quem sabe eu não seja uma? – brinquei na minha voz de um soar agudo de harpa, delicada e agradável.

Ele riu, lendo meu olhar especulando o piano logo em seguida.

— Comprei na exposição de Paris, há duas semanas. Chegou hoje pela manhã. Sei tocar há um bom tempo e sentia falta desse som.

— Onde está Dave? – perguntei, estando ciente da brusca mudança de assunto.

— Treinando no jardim.

Apurei a audição. Ouvi um silvo de um objeto sendo erguido pela gravidade e ri abertamente.

— O que ele está tentando levantar desta vez? – perguntei entre os risos. – Seu carro? 

— Não. A cama do quarto dele, todos os copos e pratos da casa e algumas de minhas coisas velhas do porão. Ah, e também tem o faqueiro. – Seus olhos se estreitaram e um sorriso zombeteiro reformulou sua expressão. – Cuidado ao sair. Pode ser atingida por uma faca de desossar ou algo parecido.

Revirei os olhos, ao que ele continuava a dar vida e corpo à canção. Encolhi-me ligeiramente quando o som das teclas reviveu uma dor antiga em meu corpo de pedra.

— Er... Vou lá ajudá-lo. – Ele não pareceu notar minha hesitação.

Saí da casa e desci saltitante as escadas da entrada, alegre por ter escapado da melodia do instrumento conhecido e por não ter deixado margens para que a desconfiança despertasse em Joseph. Esse tipo de atitude evasiva sempre deixava Joe desconfiado. Não demorei para encontrar Dave. Ele permanecia na extremidade norte do terreno, nos fundos da mansão antiga.

Os pratos de porcelana e os copos de cristais giravam em volta dele como os planetas giram em torno do Sol. Os objetos subiam e desciam em sua órbita ligada ao ponto parado feito estátua no meio deles. Não consegui ver sua expressão; ele estava com as costas voltadas para mim. Suas mãos permaneciam fechadas em punhos rígidos nas laterais do corpo; os tendões brancos com a profundidade da sua concentração. Alguns metros adiante, a cama do seu quarto tremia e eu podia apostar como seus lábios estavam colados em uma linha firme pela força mental que ele exercia para levitar o material de madeira. Pelo que eu pude deduzir, ele queria manter os objetos à sua volta em perfeita rota enquanto ele levantava a cama também. O faqueiro se encontrava jogado na grama, mais próximo de mim do que de David. Eu sabia que ele estava consciente de minha chegada, mas também sabia por experiência própria que para esse tipo de coisa, cada gota de foco era necessária.

Um sorriso largo e malicioso nasceu nos cantos da minha boca. Com a mão direita, levantei todas as facas do jogo de talheres – o jogo possuía pelo menos cinquenta peças – e as deixei no ar por um segundo. Com a outra mão, abaixei os utensílios que dançavam em torno dele. Isso atraiu sua atenção – o ato tirou quase toda a força que ele fizera. Ele se virou abruptamente e eu lancei as facas em sua direção. Em vez de desviar, como pensei que faria, Dave ficou parado e apenas estendeu a mão para as facas pontudas. Elas pararam no ar exatos a cinco centímetros de seu corpo escultural.

— Bela tentativa, Anne – disse ele.

Arqueei uma sobrancelha.

— Tentativa? – redargui com um sarcasmo ultrajado.

E então dobrei a força da gravidade. As facas tremeram e continuaram com a ordem que eu lhes ditei. Elas alcançaram seu corpo de mármore e eu o levitei junto com elas, prendendo-lhe no carvalho mais próximo – que estava a cem metros. As facas preencheram e prenderam cada cinco centímetros do perfil de sua roupa na árvore, como o truque de um atirador de facas de circo. Abri-lhe um sorriso largo.

— Maldição! – bradou ele, carrancudo. – Como seus poderes podem ser mais fortes e mais fáceis de controlar, se eu tenho os originais?

— Não faço a menor ideia – respondi com sinceridade. – Talvez por ser falsificação.

David bufou e riu baixinho. Contraí as mãos delicadamente e as facas afrouxaram, depois balancei a mão para a direita e elas acertaram o carvalho ao lado.

— É. Talvez. – Ele olhou para os objetos caídos no chão e para a casa. – Vamos entrar, cansei de treinamento.

Gemi internamente. No mesmo cômodo que o piano de novo?

— Vamos. – Tentei soar natural.

Ele segurou minha mão e fomos caminhando sem pressa até a casa. Era uma coisa simples de nós, éramos como irmãos mesmo. Embora eu sempre soubesse das verdadeiras intenções dele, nunca fomos mais do que aquilo; sempre tive um amor imenso e puramente fraternal por David. Independentemente disso, eu não conseguia deixar de me maravilhar com sua beleza perfeita toda vez que o via. O cabelo castanho-claro, quase louro, alcançava o nível dos olhos, sendo que ele os penteava para o lado. Eu costumava brincar com ele sobre isso às vezes; eu dizia que seu cabelo era uma tigela de mingau de aveia derramada em sua cabeça. Os olhos eram de um ouro derretido, resultado de uma dieta de sangue animal, as linhas do rosto eram finas e os lábios desenhados. Ele era lindo. Era gentil, inteligente, mas eu não queria o amor – já tinha me apaixonado quando humana e fomos separados pela morte, um amor por toda a vida me bastava. Também nunca iludi David com relação aos meus sentimentos e foi um alívio quando ele declarou que ficava satisfeito por eu querer ser qualquer coisa dele, mesmo que fosse amiga ou irmã. E eu de fato enxergava isso em seu olhar – a felicidade, a certeza.

Foi o que eu vi nos olhos naquele instante.

Adentramos e eu intuí que Joseph estava no final da melodia, dado o tom melancólico que as notas sugeriam. Com uma dramaticidade floreada, a música acabou e ele se virou para nós – outro sorriso iluminava seu rosto de anjo envolto da moldura chocolate de seus cabelos.

— Bem vindos, filhos. – Seus olhos correram para o rosto de David e depois se prendeu no meu. O que ele havia visto ali? – Você gostou, Anne?

Considerei com cuidado suas palavras. Eu certamente devia estar com a cara azeda de quem lambeu limão. Em seguida, pensei na melodia doce e suave, preparando uma crítica totalmente sincera.

— Claro. É majestosamente linda. Quem não gostaria?

Ele pesou meu comentário por um minuto. Sem dúvida, ele viu a verdade transparente. Sua mão voou para baixo do queixo, buscando outro motivo para minha expressão amarga.

— Você gostaria de aprender a tocar piano? Sei que você adora música.

Minha cara se contorceu no ato. Bingo, ele deve ter pensado. Tentei desesperada achar uma resposta que servisse e minimamente astuta. Pensei em inventar que nunca conseguiria. Mas Joseph, como o pai paciente que era, me lembraria de que eu teria a eternidade inteira para aprender. Então pensei em dizer que não gostava de piano. Era um pretexto inócuo e, juntado à minha expressão, ele veria que havia algo doloroso nessa história e não perguntaria. Eu sabia que era egoísmo deixá-lo preocupado dessa forma, entretanto aquela dor era antiga e imortal demais e acabou com o meu altruísmo em apartar a sua preocupação. Foi a opção que escolhi.

— Eu... – Desviei os olhos. – Não gosto muito de pianos.

 

Eu continuava voando pela floresta regada pela chuva quando a lembrança teve fim. Depois de ultrapassar uma fileira fechada de árvores, a margem do lago Svartediket se revelou para mim, largo e barulhento na tormenta. Uma minúscula parte de mim concluiu que eu devia estar tão absorta na recordação que nem percebi quando passei pela rodovia.

A maior parte de mim perecia na beira do lago e desabava na lama.

Lentamente, talvez para que eu não percebesse, Joseph foi reduzindo suas horas ao piano, o que acabou por desaparecer de vez. Ele fez isso por mim, claramente. Mas era fácil notar o sacrifício por detrás do ato – como eu, Joe sempre alimentou um amor irremediável pela música. Com o tempo, ele passou a optar por outros instrumentos, como saxofone, flauta e violão, mas ainda se podia enxergar a falta que o piano lhe fazia. Como pude ser tão egoísta? Deixá-lo sofrer desse jeito, pela privação e pela preocupação. Ele via o apelo gritante que a música tinha sobre mim também. E o que a falta dela me fazia.

É claro que isso não durou por muito tempo. Foi impossível não ver como ele nadou em satisfação quando reatei meu laço eterno com a magia musical, que reneguei por alguns anos. Violão era uma forma menos dolorosa de me lembrar do passado, da minha família, do meu amor.

Contorci-me um pouco no barro ao reavivar as lembranças da vida humana.

O tempo lavou a preocupação de Joseph. Ele ficou ainda mais alegre quando eu voltei – para ele, comecei— a compor e aprendi a tocar guitarra também. Ver a felicidade e a satisfação na minha expressão supriu qualquer vestígio de seu apelo a pianos. Joseph ficava radiante. E eu também.

Mas isso não me livrou da culpa. Aparecia agora, quando eu tinha tantas outras na lista. Embora a vida dele tenha, desse ponto em diante, passado a ser puro êxtase, eu ainda havia mentido e tirado algo de Joseph. Mentido, porque eu havia dito que não apreciava pianos, quando na verdade eu amava irrevogavelmente cada som que as teclas desse instrumento produziam sob meus dedos.

Chorei de dor novamente. O quanto eu havia privado de Joseph, quanta alegria eu havia lhe roubado? Quanto contentamento eu havia lhe tirado ao recusar tocar apaixonadamente, que era como eu me sentia perto daquelas teclas? O quanto eu havia lhe negado ao não permitir que ele compartilhasse dessa paixão?

Minhas lágrimas se misturavam a chuva e formavam um atoleiro no travesseiro sob minha cabeça – como eu havia previsto – enquanto eu sucumbia até adormecer na beira do lago.

 

Acordei descansada, sentindo-me satisfeita por não ter mais nenhum pesadelo, mesmo que mesmo dormindo eu estivesse consciência da dor e de tudo. As horas bem dormidas não tornavam as coisas mais suportáveis, apenas me preparavam para mais um dia de açoite. Deixavam meu cérebro pronto para pensar e procurar evitar ao máximo o possível, porque encarar o problema só estava me empatando. Fez-me entender que aquilo seria uma parte interminável da eternidade.

Planejamento era a base de tudo – era uma das poucas coisas úteis que aprendi nessa vidinha azarada. O primeiro passo, sem sombra de dúvida, era sair de Bergen o mais depressa possível. Ficar na última cidade onde estivemos juntos e onde Joseph foi assassinado não ajudava em nada. Isso só cutucava as feridas abertas, embora eu considerasse Bergen meu lar.

Mas... Ir para onde? Eu já estava cansada de rodar o mundo à procura de coisa alguma. Desde que Joseph se foi e David sumiu, era rotina eu estar sentada em uma cadeira de aeroporto esperando o próximo voo para lugar nenhum. Foi o que me fez voltar – o enjoo de praticamente todo dia ter uma aeromoça perguntando se eu estava precisando de algo. Portanto, precisava bolar uma distração muito boa, qualquer passatempo que me tirasse o impulso de retornar para casa ao primeiro sinal de fraqueza.

Resolvi considerar as opções no caminho de volta e no banho, pois esse era o primeiro item na lista de prioridades. Meu corpo quase me implorava por um; eu estava parcialmente enterrada na lama, coberta por meu próprio cabelo embaraçado cheio de folhas e galhos. Minha pele cremosa cor baunilha estava mascarada por uma grossa camada de barro, que parecia ter impregnado. Eu realmente parecia personagem de um filme de terror – ou pelo menos um bom quebra galho para o clipe Thriller do Michael Jackson.

Levantei-me e olhei para o lago que se estendia à minha frente. Seria bom tirar a lama, pelo menos. A temperatura deveria estar geladíssima, pois era o início de fevereiro e a temperatura não passava de 4° graus. Mas que diferença faria? Minha pele era febril. Com um salto despreocupado e inconscientemente gracioso, deixei que a água me tapasse por inteira, entrando nas profundezas das águas escuras, me guiando pelo ritmo suave das ondas glaciais. Mesmo ainda estando um horror, saí da água depois de alguns minutos, vendo que o resto só podia ser melhorado com muito sabão. Torci meu cabelo, vendo o tão comprido ele estava; suas pontas cacheadas e grossas roçavam a panturrilha. Teria que cortar se fosse voltar a viajar, talvez um corte mais curto, afinal, meu cabelo crescia uns dois centímetros por dia. Nem me incomodei em apanhar o travesseiro; apenas saltitei sem pressa alguma, racionalizando sobre os possíveis lugares para onde eu poderia ir.

Humm... Quem sabe Paris. Pierre e Pietro ficariam muito satisfeitos em me ver de novo. Eles tinham um apreço especial por mim; eram amigos íntimos da família. Desconsiderei a ideia depois de relembrar essa afirmação – sem mencionar que eu havia visto o casal mais chique do mundo havia apenas poucos meses, e não havia ajudado em nada. Muito pelo contrário, só piorou quando eles perguntaram de Joe. E também haviam Charles e Makenna, mas eles estavam sempre viajando pela gloriosa Europa. Seria difícil encontrá-los.

Soltei um suspiro pesado. Como a órfã que eu era, não tinha para onde ir.

Eu estava chegando perto da rodovia e ouvi um carro se aproximando cada vez mais. Atravessei às pressas e continuei a correr logo que alcancei a floresta; quem visse meu estado poderia achar que era alguém que assassinaram, jogaram no rio e voltou à vida. Fiz uma careta ao ultrapassar as últimas árvores e ver que eu me encontrava de novo no pórtico da enorme mansão. De volta ao purgatório, pensei com uma ironia mórbida, tentando enxergar o mínimo.

A baderna no meu quarto estava pior quando adentrei nele; a chuva tinha feito um considerável estrago – o tapete preto estava tão empapado quanto o travesseiro que eu larguei no lago. Novamente, ignorei. Minha meta era chegar ao banheiro, mas ele estava bloqueado pelos destroços da estante; com mais um de meus movimentos despreocupados, os pedaços voaram outra vez de encontro à parede norte, gerando mais destroços. O banheiro se encontrava tão arrumado e organizado que nem parecia pertencer ao mesmo ambiente do quarto maltrapilho. A água morna – pelo menos, essa era a minha percepção – combinada ao cheiro de frutas vermelhas do xampu me ajudou a desligar. Era essa a razão pela qual eu quase morava em uma banheira naqueles últimos tempos – era fácil eu me esquecer do mundo envolta de bolhas de sabão e espuma. Após eras na água, mesmo não tendo decidido para onde iria ir, concluí que não podia embromar mais. Deixei a água sem vontade alguma, melancólica, me arrastando, como sempre. Vi de relance meu reflexo no espelho de corpo inteiro e parei ali para fitar de baixo para cima a imagem replicada.

Eu não era nem nada gorda, mas também não era do tipo magricela. Como muitas das coisas em mim, eu estava no meio-termo. Eu também não era nem muito alta nem muito baixa, uma boa definição para um metro e sessenta e oito. Meu cabelo comprido e molhado, sem os cachos espessos, praticamente se arrastava no chão. O rosto não se modificou muito na transformação em vampira e depois que me juntei aos híbridos, as mudanças detectadas eram mínimas; o leve arredondamento do queixo nas linhas angulosas do rosto, a curva delicada dos lábios – que agora pareciam eternamente franzidos em um rosto amargurado – e do nariz arrebitado, as linhas suaves das maçãs do rosto sempre rosadas – que, na maldição de ser meia-vampira, virava um pimentão por absolutamente qualquer coisa idiota –, os olhos amendoados enquadrados por cílios longos com íris de um verde-esmeralda puro e intenso.

A coisa que eu mais adorava em mim era a cor dos meus olhos. Nas minhas décadas de vampira comum, eu ficava enraivecida de ter perdido meu tom intimidador de verde. Fiquei radiante quando Nahuel...

Isso! Nahuel! Eu não via Huilen e ele havia dez anos. E eles não conheciam Joseph, então não perguntariam nada. Seria interessante rever o vampiro que me forneceu a meio-humanidade, sem falar que isso provavelmente me entreteria bastante.

De repente, eu me sentia com uma pressa devastadora. Corri ao closet, tirando aos chutes os pedaços que restaram da cama do caminho. Vesti-me a jato, levando em conta que para os humanos estava frio. Uma malha de gola alta, sobretudo de lã, o meu sempre útil jeans básico, botas aveludadas... Sem esquecer um par de luvas. Humanos tinham o costume de usar luvas no frio congelante e aquela era uma ótima alternativa para disfarçar o calor anormal de minhas mãos. Escolhi tudo na cor preta – tirando a caixa de lembranças, era difícil achar outra cor no meu closet. Quando terminei, fui ao banheiro para um corte de cabelo improvisado; passei a lâmina um pouco abaixo da linha do quadril, mesmo que eles crescessem rápido demais, eu nunca cortava mais que isso.

Liguei às pressas para o aeroporto, perguntado sobre o próximo voo para a América do Sul. A sorte sorriu para mim; tinha um para Buenos Aires dali a três horas. Eu poderia correr do Ministro Pistarini Airport até as belíssimas florestas brasileiras – já estar no continente certo era animador, eu podia utilizar de minha própria natureza para chegar a Nahuel. Aquelas três horas foram úteis para eu me programar. A comida, por exemplo. Eu não tinha tomado café da manhã ainda e estava faminta; já que me recusava ao máximo beber sangue, eu tinha fome com tanta frequência quanto os humanos, só que era muito mais esfomeada que eles. Um dia antes, eu havia comprado um estoque gigantesco de hambúrgueres e batatas fritas no McDonald's da cidade; havia sobrado uns cinco Big Mac e uns três Chicken McClassic. Escancarei a geladeira, enquanto enfiava as batatas e os hambúrgueres em uma forma e socava no fogão – no micro-ondas não cabia tudo –, fazendo uma carranca de impaciência enquanto eles aqueciam.

Cansada de esperar, os tirei do forno, alguns ainda frios e comecei a comer, acompanhada de uma Coca de um litro que, para o horror de toda a educação apurada que tive, eu bebia direto da garrafa. Tentava me concentrar no gosto do frango, nos detalhes banais da mesa da cozinha, na memória do rosto de Nahuel ou do lugar onde ele e Huilen viviam – qualquer pensamento que pudesse impedir as lembranças nebulosas e acusadoras voltarem a me rondar.


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