Olhos De Aquarela escrita por Star


Capítulo 9
Quem é a Garota do Espelho?




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Nina já esperava que a vizinha fosse estranhar que um garoto desconhecido as acompanhasse, mas não houveram perguntas. Fosse pela tensão que se instalou ou pela ansiedade de chegar logo no hospital, Alex e Dani não trocaram palavra alguma. Junto ao silêncio voltava também o clima pesado de luto no ar.

Um aperto agoniado estreitava-se em volta do seu coração cada vez que o ônibus parecia mais perto do ponto do hospital. Eram tantas lembranças afetuosas que enchiam sua cabeça, todas gritando por atenção, que ficava difícil tentar se concentrar em outra coisa. Lembrava-se de Cícero ensinando-a como resolver frações; guiando sua mão pelo papel para desenhar um peixe que se parecesse com um peixe, sempre dizendo que o resultado era uma obra prima maravilhosa, digna de Picaso; brincando de espiões nas suas noites de folga com os walkie-talkies do hotel. Esperava que ele estivesse bem. Deus, o que faria de sua vida, sem Cícero?

Em meio a toda a aflição havia uma lembrança distorcida, misturada, como a imagem de um filme antigo. Cícero, não como um borrão azul mas como um velho senhor de cabelos escovados, apoiando-se em uma parede, com uma mão sobre o peito, parecendo sufocado, o seu azul fraquejando. Confuso como um sonho, algo que a memória não conseguia alcançar totalmente. Nina pensou que talvez tivesse criado essa imagem para ilustrar os seus temores. Mesmo assim, era assustadora.

No hospital, Dani parou para falar com uma das recepcionistas. Nina queria seguir direto para os quartos do fim do corredor, perto da sala de raio-X, pra onde ela sabia que são transferidos os pacientes recém-operados, mas resolveu esperar. Tamborilava os dedos no mármore do balcão de informações, lidando com a ansiedade que lhe plantava pensamentos pessimistas. E se os médicos tivessem alguma complicação durante a cirurgia, e Cícero agora estivesse...? Não, não, isso não.

Uma lembrança vaga passou por sua mente quando viu outra recepcionista separando papéis de dentro de uma pasta, e Nina agarrou-se a ela, porque qualquer coisa que distraísse sua mente no momento era bem-vinda.

– Ei, com licença... – A mulher levantou os olhos azuis para ela. – Eu liguei pra cá alguns dias atrás e pedi a cópia do registro de um dos funcionários, é meio importante, sabe, e não me ligaram de volta.

– Oh, sim. – Assim que ela abriu a boca, Nina reconheceu sua voz. Era ela quem sempre atendia os telefones, com voz quase programada, sempre muito educada. – Por quem a senhorita estava procurando, mesmo?

Nina olhou em volta, só para garantir. O loiro estava parado perto da porta, mãos nos bolsos, parecendo não muito confortável. Não seria muito legal se ele descobrisse que ela andou o espiando. Ou pelo menos tentando fazer isso.

– Um voluntário do hospital, Alex.

– Só Alex? – A pergunta fez Nina lembrar de seu telefonema, e pensou se era uma pergunta de verdade ou uma citação.

– Isso. Só Alex.

– Sinto muito, mas não consegui achar nada nos nossos registros.

– Mesmo? Ele saiu há menos de uma semana.

– Hm... É estranho documentos assim sumirem de repente. Tem certeza de que não se enganou quanto ao nome?

Nina olhou novamente para trás.

– Sim, tenho certeza. Não acha que pode ter acontecido alguma coisa com o registro dele?

– Pouco provável. Principalmente se é algo tão recente assim. Talvez você tenha se enganado, não? Não pode ser de outro hospital?

– Não, sem chances. Mas tudo bem, pode deixar.

– Se quiser posso pesquisar um pouco mais, procurar pelos outros setores, isso dará bastante resultados considerando que não temos o sobrenome mas como disse que é importante-...

– Não, tudo bem, não tem problemas. Obrigada.

Nina se afastou do balcão, percebeu que Dani já seguia por um dos corredores e passou a acompanha-la. Foram guiados hospital a dentro por uma enfermeira gorducha, que conversava com Dani.

– O que foi, baixinha? – Perguntou Alex, obviamente notando que a garota estava o observando atentamente.

– Nada. – Nina deu de ombros. – Só estava pensando em como você tem cara de Alex.

Ele franziu a testa sem entender, mas não perguntou mais. Nina também decidiu não prolongar o assunto. Como boa paranóica, é claro que havia cogitado a idéia de Alex ter lhe dado um nome falso. Mas isso já parecia novela demais.

Entraram na última sala do corredor, em frente ao laboratório de Raio-X. A enfermeira os guiou até a cama perto da janela, na extremidade do quarto, e sussurrou para Dani, de modo que os outros dois também ouvissem.

– Ele ainda está sendo observado, então peço que não criem muita agitação. E por favor não mexam nos aparelhos ou nos tubos de soro – e saiu, deixando-os tão a sós quanto poderiam estar em um quarto compartilhado com outros cinco doentes recém-operados e com cara de dopados.

Nina assustou-se quando percebeu que o homem na cama era realmente um homem, e não uma mancha azul flutuante. Que bobeira a sua! As coisas eram diferentes, deveria se acostumar com isso. Mais estranho ainda foi perceber que ele realmente se parecia com o senhor de sua lembrança inventada, mesmo com seus cabelos brancos e ralos agora bagunçados pela cabeça rosada, por não ter uma escova perto que os arrumasse.

– Oi, Cícero. Nós viemos lhe visitar – Dani aproximou-se da cama, e Nina fez o mesmo.

– O senhor está bem? Ainda sente alguma dor? – Nina perguntou, preocupada.

O homem piscou com os olhos fechados, fazendo força para erguer as pálpebras, e sorriu ao conseguir.

– Minhas meninas – falou com sua voz fraca, erguendo as duas mãos o máximo que podia, como se as apontasse vagamente ou pedisse um abraço. Dani o abraçou, e ele falou, com voz cansada. – Como estão as coisas por lá? Espero que não tenham me substituído. Estou velho, mas ainda não morri.

– Deixe de ser bobo, o senhor é insubstituível!

– Estou falando sério, se quando eu voltar encontrar um moleque no meu cargo, chuto a bunda dele tão forte que vai faze-lo voar por cima dos muros – deu um risadinha curta que parecia arranhar sua garganta – Oh, Nina! – Seus olhinhos apertados se encheram de surpresa e alegria, como se só agora tivesse identificado a garota ali, e suas mãos se ergueram novamente. Nina o abraçou. – Graças a Deus você está bem. Graças a Deus. Estava tão preocupado.

– Não precisava de tanto, Cícero – rebateu Nina, esforçando-se para exibir mais bom-humor do que sua própria preocupação. O que eram todos aqueles tubos entrando e saindo do seu amado porteiro?! - O senhor criou uma menina esperta, consigo esquentar macarrão instantâneo e sobreviver sozinha por dias.

Cícero parecia prestes a dizer algo, mas Dani não percebeu, e o cortou.

– O que aconteceu com o senhor, Cícero? É um homem tão forte. Sua saúde é ótima. Até mesmo a enfermeira disse que foi uma surpresa que o senhor tivesse um ataque cardíaco.

– Foi Nina. – respondeu, a voz rouca, os olhos acinzentados pousados sobre a menina. Dani a olhou, buscando alguma explicação, alguma desculpa, e Nina apenas franziu o cenho, sem conseguir entender. Ele continuou, com a voz grave e arrastada – Eu vi minha menina saindo sozinha do prédio... Eu não posso deixar minha menina sair... O mundo é perigoso, são tantas coisas ruins, como a minha menina poderia se defender? – Apertou seus olhos, de forma dolorosa. – Tentei chamá-la, tentei muito, mas não me ouviu. E então veio essa dor. Estava impotente, inútil, eu não podia mais alcançar minha menina, como iria protege-la? Foi horrível, tão horrível...

Ele balançava a cabeça, parecendo sofrer com a memória. A lembrança de Nina tornou-se mais nítida e coerente. Aquilo havia acontecido de verdade. No dia em que ela saiu pela primeira vez com Alex.

– Mas eu não estava sozinha, Cícero – ela apertou a sua mão, esperando que o confortasse de alguma maneira da sua confusão. Uma dor de cabeça começou a martelar em suas têmporas. – Eu estava com Alex. Nada ruim ia me acontecer. Você não precisava se preocupar tanto!

– Alex? – Dani voltou-se para ela, sobrancelhas erguidas.

– Sim, o menino do qual te falei, do hospital. - Nina explicou, um pouco envergonhada. Suas bochechas esquentaram. - Ele me levou a uma sorveteria e... Ele passou comigo os últimos dias. Foi comigo ao seu apartamento, você não lembra? Ele... – olhou ao redor, mas não conseguia achar o loiro em lugar algum. A dor de cabeça se intensificou, um aperto estrangulador. – Ele estava aqui perto agora há pouco... Onde ele foi? - esticou o pescoço, olhando para as outras camas e para as enfermeiras que entravam e saíam.

– Nina, do que você está falando? – Perguntou a vizinha, um pouco mais preocupada, e Nina teve a sensação por segundos da sua imagem ser trocada por uma mancha cor-de-rosa .

– Você o viu ontem, quando foi lá em casa, foi ele quem abriu a porta, e esteve comigo durante todo o tempo, como pode não se lembrar? – Nina perguntou, quase indignada. Sentiu como se o oxigênio fosse sugado para fora de seu cérebro e uma pressão impressionante começou a comprimir seu crânio.

– Você abriu a porta pra mim ontem.

– Claro que não, ele... – Nina olhou ao redor novamente. Girava em todas as direções, procurando pelas outras macas, pela janela, perto do bebedouro, e isso estava deixando-a tonta. Onde estava Alex? - Meu deus, ele estava aqui agora há pouco!

– Nina, por favor, pare com isso. – Dani pediu. - Nós viemos sozinhas até aqui.

– O que? Não! Ele estava... – Qual foi a última vez que o vira? Na recepção do hospital? No corredor? - ...estava... – Ele havia sequer entrado junto com elas no ônibus?

– Você está bem? – Dani perguntou, pousando a mão sobre o seu ombro. Nina se afastou, rejeitando o toque como se fosse eletricidade. O que havia de errado com ela? Por que inventar coisas tão estúpidas?

– Ele estava comigo, você o viu, por que está falando isso? Ontem...

– Você estava sozinha, Nina. – Dani a interrompeu, com a voz mais severa. – Foi você quem abriu a porta para mim ontem. Você estava sozinha quando apareceu no meu apartamento. Você estava sozinha quando viemos para cá. Não havia mais ninguém.

A dor de cabeça já beirava ao insuportável.

– Não! Não! Qual o seu problema?! – Nina sentia-se exausta e já mal conseguia respirar, ainda menos pensar. Tudo o que sabia era que Dani estava errada, muito errada. E onde estava Alex? Precisava encontrá-lo. E esfrega-lo no meio de sua fuça nojenta. Além disso, como poderia ainda estar enxergando, se ele não estava por perto? Por que não se lembrava da última vez que o tinha visto? Pelo menos, eles saíram juntos do apartamento ...não saíram?

Desesperada, Nina ignorou os chamados da vizinha, e saiu correndo pro único lugar onde tinha certeza que iria encontrá-lo.

A sua casa.





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Notas finais do capítulo

O que pode ter acontecido, afinal? Alex é um amigo imaginário? Dani está mentindo para não admitir pro porteiro recém-operado que a xodó dele passou os últimos dias vivendo suspeitosamente rolando com um garoto pelo chão cheia de hormônios? Seriam essas lembranças de um passado que Nina esqueceu? Alucinações? Astigmatismo? Gravidez histérica? Candidiase?


Cadê o Alex que tava aqui? O gato comeu?