Olhos De Aquarela escrita por Star


Capítulo 10
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O caminho até sua casa nunca foi tão longo.

Poderia parecer estranho mas enquanto subia as escadas correndo – porque não teve paciência o suficiente para esperar o elevador – Nina ouvia uma voz baixinha dentro da sua mente, rezando. “Por favor esteja lá. Por favor esteja lá. Por favor esteja lá...”

Quase derrubou a porta e, de fato, lá estava ele. O garoto loiro estava sentado na sua cama, bagunçando todos os lençóis só por estar alí, de pernas cruzadas e queixo apoiado nas mãos. Como se afugentada pela sua presença a dor de cabeça diminuiu e se tornou apenas um martelar chato.

- O que aconteceu? – Nina perguntou. Irritada, confusa, mas acima de tudo aliviada por ter a chance de vê-lo novamente. – Por que você saiu do hospital? Por que me deixou lá?

- Nina. – O garoto se levantou da cama, tão sério e assustador quanto costumava ficar em certos momentos. Momentos que Nina detestava.

- Dani falou coisas absurdas. – Ela o ignorou, para continuar com a sua indignação. Chegou a tentar rir mas foi algo seco e forçado que saiu da sua garganta – Sabe? Por que ela... Eu não consigo explicar, mas não faz nenhum sentido!

- Nina, por favor.

A garota se calou, sentindo-se sem ar. Estava quase histérica. Havia algo muito doloroso em parar de falar. Não queria o silêncio, não queria ouvir o que quer que o garoto tivesse para dizer a seguir. Deveria continuar falando e mudar a situação, sair daquele lugar, sumir com a dor de cabeça, esclarecer suas ideias, ir embora e só voltar quando tudo parasse de parecer tão errado.

Alex foi até a outra porta do apartamento, a que levava para o quarto de Eva e que estava sempre fechada. Nina pensou em alerta-lo de que estava trancada, que Eva sempre trancava a porta do seu quarto quando saía de casa. Era uma das manias que Nina não entendia muito bem – como não andar de elevador e comprar papel higiênico cor-de-rosa - mas nunca havia questionado, por nunca querer invadir a privacidade da sua mãe de assinatura. Contrariando seus pensamentos, porém, a porta se abriu e deslizou para dentro, sem esforço algum.

- Não estava trancada? – Nina perguntou.

- Estava.

- Quem abriu?

- Você.

Nina não entendeu, nem perguntou mais. Sentia-se confusa e desnorteada demais para discutir. Não lembrava de ter feito aquilo. Mesmo assim, conseguia imaginar perfeitamente a imagem de seus dedos forçando a maçaneta uma vez e mais outra até que a tranca cedesse com o seu peso. Alex entrou no quarto e ela o seguiu.

O quarto de Eva era a parte mais iluminada do apartamento, graças à enorme janela em uma das paredes e parecia ser muito maior do que Nina já imaginou. Tinha uma cama casal de lençóis vermelhos aconchegantes, um enorme guarda-roupa de mármore, uma escrivaninha com pilhas de livros encostada a uma das paredes e um abajur sobre um velho baú quadrado encostado perto da porta, no qual Nina tropeçou. Apoiado ao lado do abajur, ela viu, estava algo comprido e fino, que se esticava em diagonal até encostar na parede. Não conseguia dizer o que era, mas parecia muito familiar. Deslizou seus dedos por ele, sentindo a textura fria e dura, e reconheceu aquele toque da sua rotina anterior. Da vida antes de Alex.

- Isso não estava no banheiro?

Seus dedos eram refletidos por ele, como se houvesse outra pessoa tentando corresponder o seu toque. Nina lembrava-se de ter sentido falta daquilo na parede em cima da pia, apesar de não conseguir entender o que é. Talvez fosse como um quadro, que imitava a imagem da parede em frente. Ou talvez fosse uma janela, e realmente houvesse uma outra mão tentando alcançar a sua.

Um pouco assustada pela última opção, recolheu rapidamente a mão.

- Estava, sim. – Alex puxou o quadro fino pelos lados, encaixando-o de forma rente à parede. Afastou-se, cuidadoso para que ele não tombasse para a frente e então olhou para a garota. – Não precisa ter medo. Vem cá, você vai entender o que é.

Ele lhe estendeu a mão. Nina ainda hesitou, mas teve dificuldades de imaginar como as coisas poderiam ficar piores do que já estavam. Segurou a mão do garoto e então ele a puxou para que ficasse de frente para o quadro estranho.

Como Nina havia imaginado realmente havia uma pessoa dentro da moldura escura. Ela não se mexia, mas parecia estar respirando, o suficiente para lhe classificar como algo mais que uma pintura. Nina se perguntou desde quando uma pessoa estava morando dentro do quarto de Eva e como nunca percebeu isso antes. “Quem é?”, estava prestes a perguntar para Alex, quando percebeu que a garota do quadro virou o rosto. Nina esperou que ela fizesse mais alguma coisa, mas nada. Ficaram paradas, se encarando, quase assustadas. Virou-se para Alex novamente, e ela fez o mesmo. Testando uma ideia, Nina ergueu a mão esquerda. A garota do quadro estava imitando-a! Mexeu a mão, dando um tchauzinho frouxo, observando o quanto seus gestos eram precisamente iguais.

- O que é isso, Alex? – Perguntou, enquanto ainda acenava para o quadro mágico. Tentava encontrar alguma brecha, talvez se continuasse por algum tempo a garota do outro lado se atrapalhasse e finalmente um dos vai-e-vens de dedos não combinasse com os seus.

- Um espelho.

Espelho. Nina podia não o reconhecer, mas obviamente sabia o que era. Em palavras, pelo menos.

- Oh, nossa... – as palavras escaparam da sua boca, enquanto a descrição do dicionário em braile da primeira série lhe voltava em mente, e sua mão voltou lentamente junto ao corpo, assim como fez a garota do espelho. Nina a olhou, espantada, olhou para Alex, e de volta para ela. – Esta... esta sou eu?

Ele sorriu, sem precisar usar palavras. Nina se aproximou do espelho e encarou a si mesma de olhos arregalados.

Cabelos escuros, separados em mechas finas que caíam pelos ombros até as costelas. Olhos arredondados que Nina achou parecidos com as tampas da boca do fogão, enormes e brilhantes. Um nariz pequeno como uma campainha, a boca cheia de curvas, orelhas engraçadas. Nunca tinha percebido o quanto orelhas podiam ser engraçadas. Sequer lembrava que tinha.

Viu pelas suas bochechas pequenos pontinhos escuros salpicados na pele, branca feito pudim de leite, viu os ossos salientes abaixo do pescoço. Corpo pequeno,  parecia capaz de caber em um bolso, escondida sob uma calça jeans e a camiseta branca. Era tão estranho. Estava tão acostumada a só ver outras pessoas que... Bem, nunca havia nem mesmo se imaginado como uma cor borrada, muito menos como outra pessoa. Os outros poderiam pensar que cegos têm o costume de imaginar todas as coisas por não serem capaz de vê-las, e talvez realmente o fizessem, mas Nina nunca havia pensado em algo tão simples como o formato do seu rosto, ou a cor de sua pele. Ou em orelhas.

Tocou o vidro gelado, só para ter certeza de que não passava de um pedaço de matéria morta, e de que não, não havia outra pessoa ali a imitando somente para deixa-la ainda mais confusa. E realmente não havia. Realmente, era somente ela.

E isso era o mais assustador.

- Como funciona? – Nina perguntou, impressionada, com seus dedos ainda analisando o vidro.

Alex deu de ombros.

- É bem simples. Um espelho reflete tudo o que está na sua frente.

- Então... Por que você não aparece?

Nina deslizou os dedos pela parte do espelho onde deveria aparecer o reflexo do garoto, mas exibia apenas a parede dos fundos do quarto.

- Porque eu não estou aqui.

A dor de cabeça voltou. Nina viu a garota do espelho se encolher com ela e levar uma das mãos até a testa, enrugada de dor.

- Eu não existo de verdade, Nina. – Alex falou com simplicidade, abrindo um sorriso terno.

Nina pensou que os gestos dele pareciam os mesmos que os de um médico explicando para a família que seu filho está com câncer terminal e vai morrer. Já havia visto muitas vezes. Mas não parecia normal que se lembrasse de uma coisa dessas agora.

Tentou buscar alguma dica que indicasse que aquela era alguma brincadeira para lhe fazer esquecer um pouco da situação atual, um jeito do garoto pedir que ela relaxasse, mas não havia nada. Nenhum sinal dele. Nenhum sorriso sacana para o qual ela pudesse responder “tá de sacanagem?”, e os dois rissem depois. Se fosse realmente uma brincadeira, era uma muito cruel.

- Por que você está fazendo isso?

- É por isso que Dani não me viu no seu apartamento. É por isso que Cícero não nos viu juntos na rua. Eu só existo aqui – Alex empurrou de leve a sua cabeça com o dedo indicador, e de alguma forma Nina sabia que às suas costas a garota do espelho inclinava-se sozinha para o lado oposto.

- Mas... e o hospital? Você trabalhava lá, com outras pessoas...

- Eu só estava lá quando você estava, Nina. Foi uma desculpa, para que eu pudesse entrar na sua vida.

Nina não queria admitir mas aos poucos tudo fazia sentido tão perfeitamente que chegava a ser grotesco. Conversas e passeios se encaixavam aos poucos em uma trama onde Nina estava sempre sozinha em todos os lugares por onde passava nos últimos dias. A dor de cabeça estava lhe atrapalhando, ela não sabia mais como reagir. Por que ele começara com aquilo, por que logo agora?

- Isso... Não pode ser... E quanto aos meus olhos? Por que voltei a ver, quando estou com você? Qual a sua explicação?

Alex pousou as mãos em seus ombros e Nina mal sentiu o seu peso.

- Você nunca foi cega de verdade, Nina. – Alex falou, com olhos amáveis e protetores que lembravam os de Eva. - Durante esse tempo todo você escolheu por não ver. Não ver, não se lembrar. Foi tudo uma escolha sua. Mas uma parte sua se cansou disso, achou que já estava na hora de sair do trauma e enfrentar o que quer que fosse. E foi aí que você me criou.

- Não! – Nina gritou, afastando-se das mãos dele. – Meu Deus, isso... Não tem como ser verdade! É loucura!

- Nina...

- Não! Pára de falar!

- Nina, por favor...

- Sai daqui! Vai embora!

- Você precisa-...

- SAI! AGORA!

Nina só percebeu o quanto estava gritando quando bateu a porta e só ouviu uma batida abafada. Ainda mais, soluçava alto, com o rosto repleto de lágrimas, a mente dolorida, a raiva, fúria e desorientação de não conseguir entender.

Encolheu-se perto da cama, afundando a cabeça nas mãos. E alí ficou, até que achasse suficiente, até que a dor de cabeça desaparecesse.


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Notas finais do capítulo

Então, o que acontece é que esse capítulo era na verdade metade do capítulo anterior, que eu me confundi no word e acabei postando errado. De qualquer forma, agora a história tem um capítulo extra, ó que legal (com o mesmo nome pq CRIATIVIDADE SDDS ETERNAS VOLTA PRA MIM)

Então, você já imaginava essa saída? Hm hm? Alex é uma das ilusões mais adoráveis que já vi.