Olhos De Aquarela escrita por Star


Capítulo 8
Tempos de Guerra e Fome




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/369670/chapter/8

Durante todo o caminho até em casa, Nina somente olhava enquanto Alex uma vez ou outra abria a sua pasta de registro, alguma coisa, balançava a cabeça com “uhums” sérios e lançava um rápido olhar para ela, assustado ou furioso, para soltar uma gargalhada da cara de apavorada dela. Ela não sabia como ainda não tinha pulado no pescoço dele, lhe acertado com um chute nas costelas e saído pela janela do ônibus correndo com a pasta debaixo do braço. Talvez tivesse um auto-controle maior do que esperava. Mesmo assim, a curiosidade lhe corroía por dentro. Era seu passado. A sua vida. Precisava saber.

Depois de muita implicância, os dois seguiram sem mais conversas. Então, Nina percebeu que desde que abriu a pasta, mesmo com as provocações, Alex parecia estar sério demais. Aquele silêncio só serviu para deixa-la com mais medo ainda, mas não tinha coragem para puxar um assunto qualquer. Sua cabeça estava ocupada pensando em que tipo de informações bizarras poderiam estar arquivadas ali. E se Nina descobrisse que na verdade é filha dos terroristas suicidas que organizaram o ataque de 11 de setembro? E se descobrisse que tem leucemia, e só deve ter mais dois meses de vida? E se na verdade ela não foi perdida, e sim abandonada pela sua família? Aliás, que tipo de pessoa pode abandonar uma criança de seis anos em um hospital? É claro, existe bastante gente ruim pelo mundo...

Se essa fosse a verdade, o que ela deveria fazer? Não iria largar Eva, com certeza não. Mesmo que decidisse um dia ir atrás de seus verdadeiros pais, nunca iria se esquecer da sua mãe de assinatura. Ela se esforçara tanto para que as duas fossem uma família, mesmo que uma família feita só de duas mulheres malucas. Se preocupava, se descabelava, se importava, e parecia amar a Nina mais do que qualquer coisa no mundo. Não seria justo com Eva simplesmente abandona-la agora que um registro qualquer tenta roubar a sua posição como mãe e entrega-la para uma desconhecida.

Era isso. Seus pais não passavam de dois desconhecidos. Poderiam ser ninjas, psicopatas, plantadores de palmito ou mafiosos. Mas isso não diminuía a vontade de Nina de descobrir de onde viera.

Quando chegaram no apartamento Alex foi na frente, e Nina o seguiu até a cozinha. O loiro largou a pasta sobre a mesa e sentou-se na cadeira em frente a ela e juntou as mãos como em uma prece, encostando os nós dos dedos na testa. Soltou um suspiro cansado, que fez com que relaxasse todo o corpo, mas ao mesmo tempo parecesse mais tenso ainda. Nina encostou-se na parede de frente para ele, apertava os braços, sentindo-se absurdamente frágil. O que havia naquela pasta? Quem ela era?

Ele a encarou por sobre as mãos entrelaças, de forma tão séria que chegou a quase doer. Nina encolheu-se, sentindo o corpo quase tremer de expectativa.

- Nina. – Sua voz grave atravessou a cozinha parecendo congelar tudo ao redor. Houve uma pausa elaborada para que captasse completa atenção antes de continuar. Nina apertou os lábios, esperando pelo tranco que viria a seguir. A grande revelação. Terroristas, aliens ou psicopatas? Quem eram os seus pais? – Tô morrendo de fome. O que vai ter pra janta?

Nina sentiu todo o seu corpo, assim como seu cérebro, murcharem completamente. Não conseguia reagir, estava em um limite tênue entre um ataque de risada e um ataque de nervos. E antes mesmo de formular uma frase, o loiro ergueu o dedo indicador, falando.

- Mas antes de responder, quero alertá-la de uma coisa: todo o seu futuro depende dessa resposta.– E balançou a pasta amarela acima de sua cabeça. - Pessoalmente, eu espero que seja algo muito gostoso e com cheiro de bacon, porque se não for, tchau-tchau passado.

- Me dá essa pasta aqui!

A garota investiu contra ele, mas Alex foi mais rápido e levantou-se da cadeira a tempo de manter a pasta distante com os braços estirados.

- Nada disso. Eu tô com fome!

- Pouco me importa. Me dá a pasta!

Ela o agarrava, puxava seus braços e pulava a sua volta, tentando alcançar, mas ele trocava de mãos e sempre a mantinha distante o suficiente. Não era uma briga justa. Nina nunca tivera irmãos ou primos pequenos para precisar disputar alguma coisa, exceto a última colher de doce-de-leite, quando Eva dava seus surtos por açúcar e as duas praticamente armavam uma guerra pelo apartamento, então não sabia exatamente o que fazer e era enganada com muita facilidade.

- Menina má! Menina má! – Alex ria, erguendo suas mão ao máximo e vendo Nina pular para tentar alcança-las como se fosse um pequeno chiuaua irado.

- Me dá essa porcaria!

Nervosa, irritada, quase esgotada mas acima de tudo furiosa, Nina pulou sobre ele, enganchando as pernas em sua cintura, e envolvendo o seu pescoço com o braço de modo a enfia-lo em suas costelas para que não pudesse ver mais nada, se esticando ao máximo enquanto o braço que segurava a pasta mantinha-se alto e inalcançável como uma bandeira hasteada, e o outro tentava livrar-se dela, ou segurá-la, não tinha muita certeza.

Alex começou a andar desorientado, buscando por fôlego e por visão. Bateu com a perna em uma cadeira, em seguida na mesa, e mais uma vez na mesinha de canto, tão forte que o vaso de flor dela se desequilibrou e caiu. Além de mantê-lo com o rosto preso, Nina dava cotoveladas dolorosas na sua cabeça enquanto tentava praticamente escalá-lo para alcançar a pasta. Alex não duvidou nada que ela pisaria no seu nariz se conseguisse. Lançando-se mais uma vez às cegas, teve a sorte de conseguir bater em uma parede, em uma colisão forte o bastante para fazer a garota afrouxar o aperto e escorregar até o chão.

Alex ainda estava recuperando o fôlego, cambaleando para longe, quando sentiu seus pés serem agarrados e puxados com uma força assombrosa e caiu de cara no chão. Virou-se rapidamente por instinto, mantendo os braços o mais longe possível, e logo Nina estava sobre ele, escalando-o outra vez.

Ele prendeu uma das pernas dela entre as suas, de modo que ela não pudesse avançar mais, e a garota começou a esticar-se novamente, apertando o seu rosto com uma das mãos pra conseguir mais apoio. Alex começou a balançar o corpo de um lado para o outro, tentando desequilibra-la para livrar a cara das suas unhas afiadas e logo os dois estavam rolando pelo apartamento. Bateram nas pernas da mesa e rolaram para a outra direção, até que as costas de Alex ficaram presas entre a cama e o chão, e seu cotovelo bateu contra a madeira, enfraquecendo-o por tempo o suficiente para que Nina conseguisse subir a distância que precisava.

Porém, antes que seus dedos pudessem finalmente puxar a pasta amarela, Alex relaxou o corpo e se desencaixou, rolando para baixo da cama e saindo prontamente em pé do outro lado. Nina também já estava de pé, em posição de defesa que lembrava muito um goleiro de hockey lunático. E ainda assim um chiuaua raivoso.

Os dois respiravam pesado, esperando por um próximo movimento. Alex olhou para a porta da cozinha e de volta para Nina, e sorriu em meio às arfadas de ar. Nina estreitou os olhos e rosnou baixinho. Desafio aceito.

Ele subiu na cama e Nina jogou-se sobre ele. Alex pulou sobre garota antes mesmo dela encostar no colchão, e aterrissou rolando no chão do outro lado. Seu pé foi puxado durante o pouso, quebrando o equilíbrio, e quase bateu de cara na porta, mas isso não o impossibilitou de correr. Nina correu, mas tinha perdido tempo. Mesmo com rapidez digna de um quarterback Alex chegou primeiro ao banheiro se fechou lá, batendo a porta bem rente ao seu nariz.

- Me dá a minha pasta, Alex! E ABRA A DROGA DESSA PORTA! - Gritou, praticamente sem fôlego, enquanto agredia a porta com batidas pesadas e frenéticas que a faziam chacoalhar nas dobradiças. – ABRE, ABRE, ABRE, ABR...

Gritava com tanto fervor que mal percebeu quando a porta realmente se abriu, acabando por acertar uma das batidas no peito do garoto. Ele parecia esgotado e seu cabelo estava completamente bagunçado, mas mantinha o corpo ereto como se estivesse prestando continência em um quartel, além de ter um sorriso satisfeito no rosto.

Nina refez a cara amarrada, olhando-o de cima a baixo. Passou o rosto mais para trás, examinando as mãos que ele segurava atrás do corpo. Não tinha mais pasta alguma lá, claro. Examinou-o mais uma vez, e perguntou, ríspida:

- Onde está minha pasta?

- Em um lugar que você nunca vai encontrar.

Nina encarou-o mais profundamente, tentando farejar alguma fraqueza ou pista naquele olhar. Puxou as calças largas que ele usava e olhou para dentro, em um gesto rápido e pesado digno de um estuprador profissional. Não viu pasta alguma, apenas uma cueca boxer preta.

Alex acompanhou-a com o olhar, impassível.

- Não, não estão aí. Pervertida.

Nina soltou as calças dele e virou-se, marchando até uma das cadeiras que sobrou em pé à mesa e se jogou lá, bufando de braços cruzados.

- Como parece ser meio perigoso te deixar perto de utensílios domésticos no momento, - Alex fechou a porta do banheiro às suas costas – e mesmo assim meu estômago ainda implora por atenção, acho que lhe darei a honra que poucos seres humanos abençoados foram capazes de desfrutar.

Sacou a tábua de cortar carnes e uma faca de inox reluzente do escorredor de pratos da pia, exibindo-se de forma teatral.

- Hoje, eu cozinho.

Nina desviou o olhar do loiro com menosprezo, dirigindo sua careta emburrada para a parede.

- Ei. – Alex chamou, apoiando-se na mesa à frente dela. – Depois do jantar, nós vamos abrir a pasta juntos e ver tudo de uma vez. Eu farei tudo o que você precisar, tudo o que quiser. Sem truques.

Ela o estudou com o olhar por alguns segundos. Sua careta de ódio se desfez um pouco, quando ergueu as sobrancelhas para perguntar:

- Mesmo?

- Mesmo.

A energia mal humorada se dissipou, Nina parecia levemente satisfeita. Ou conformada.

- Mas comida primeiro! Quer dizer, você tem comida aqui, não tem?

- Claro que tenho. Você acha o que, que faço fotossíntese?

- Essa é a minha garota – Sorriu, feliz por ter trago de volta a implicância costumeira e inofensiva.

Nina enfiou-se dentro da geladeira, puxando potes e sacolas.

- Do que você vai precisar?

- Pode pegar tudo o que tem aí.

Logo estavam espalhados pela mesa um pote aberto de carne crua temperada, outros dois com arroz e macarrão pré-cozidos, duas cenouras pela metade que Eva usava junto com condicionador para dar volume no cabelo, meia cebola, queijo esverdeado, ameixas tão murchas e pretas que Alex achou serem passas, metade de melão, quatro laranjas, pão, azeite e uma tigela com algo meio deformado e colorido que parecia ser gelatina. Alex cheirou o macarrão, fazendo uma careta.

- Urgh, há quantos anos isso aqui mora dentro da sua geladeira?

- O suficiente pra poder pagar aluguel. Ei, não joga no lixo!

- Tarde demais. Só os melhores ingredientes entram para o menu de monsieur Alex.

- Droga, o pote era bonitinho – Nina resmungou, olhando dentro da lata de lixo para o pote cor-de-rosa afundado no que parecia ser vômito de gato ou restos de um assassinato. Sem chances de pegar de volta.

- Concentração, pequena coala. Vamos fazer a melhor gororoba que você já viu!

Alex estalou as mãos e o pescoço e começou a dar pulinhos para frente e para trás, acertando o ar com socos cruzados, mostrando toda a sua virilidade e determinação para o monte de comida crua. Nina imaginou se ele só fingia estar sério ou sempre achava que precisava mostrar pra comida que era muito macho antes de cozinhar. E como não poderia deixar de ser, Eye of the Tiger começou a tocar como trilha sonora dentro da sua mente.

Alex descascou as cenouras e as pôs no fogo, separou uma panela para fritar a carne no azeite com a cebola e começou a fazer outra porção de macarrão. Suas mãos se moviam com rapidez assustadora enquanto cortava, fatiava e descascava, e ele próprio parecia flutuar dentro da cozinha, enquanto ia de um lado para o outro levando panelas e buscando novos ingredientes no fundo da geladeira. Nina o observava sentada da mesa. Ela sempre sonhou em cozinhar daquela forma. Mas nunca pôde, é claro, nunca antes enxergava para onde a faca estava indo, ou se a comida parecia prestes a queimar ou não. Nem mesmo Eva tinha toda aquela habilidade culinária, o que significava muitas noites com McDonalds e saquinhos de pipoca de microondas.

A campainha tocou e alguém bateu na porta.

- Já vai.

Nina abriu a porta e encontrou com a vizinha cor-de-rosa.

- Dani – Sorriu, feliz com a surpresa. Não se lembrava de ter recebido alguma visita de Dani antes, era sempre ela quem ia procura-la, o que muitas vezes a fazia pensar se não a incomodava de alguma maneira.

A vizinha não parecia estar muito melhor do que a última vez em que a vira. Ainda estava com um jeito acuado, encolhida e apertando os próprios braços. Talvez já fosse um hábito agir assim. Seus olhos inchados denunciavam noites em claro e dias de choro.

Mesmo que agora Nina a enxergasse como realmente é, não pôde deixar de perceber que o rosa claro da vizinha estava meio apagado. Ela estava preocupada com alguma coisa.

- Ei, Nina. – Talvez tenha ouvido Alex mexendo nas panelas, porque franziu a testa e perguntou. – O que está fazendo aí?

Já haviam conversado sobre ele, é claro. Mas Nina nunca disse antes o real motivo de precisar falar com Alex. De precisar ficar perto dele. Por isso achou que não seria sensato dizer de uma vez que o garoto estava ali, sozinho com ela, em seu apartamento, e que, pior: passaram a noite juntos. Seria algo difícil de ser digerido, muitas informações difíceis de se processar, então achou melhor mentir um pouco.

- Nada, só... o jantar. – Encostou-se na porta, fechando-a um pouco mais. – Então... Quer entrar? – Perguntou, mordendo o lábio inferior. Se ela havia vindo, é porque queria falar algo. E não poderiam simplesmente conversar ali, com ela parada no meio do corredor.

Mas tudo bem, era quase um alívio que a primeira pessoa pra quem tivesse de explicar toda aquela história maluca fosse justamente Dani. Ela com certeza seria compreensiva e cooperativa.

Caso contrário, poderiam amarrá-la e mantê-la trancada no banheiro.

“Credo, que pensamento psicopata”.

Mas não deixava de ser uma opção.

- Não, obrigada. Eu estava indo para o hospital, e resolvi passar aqui porque imaginei que você iria querer ir também. Pensei até que já estava lá, na verdade.

- O hospital? Por que?

- Você não ficou sabendo, Nina?

Nina franziu a testa e balançou a cabeça. Dani desviou o olhar, parecia estar buscando por palavras, e isso fez com que Nina temesse o que viria a seguir.

- Cícero, nosso porteiro, ele... Ele sofreu um ataque cardíaco.

Nina sentiu sumir a força das suas pernas, como um dos primeiros sintomas de quando iria sofrer um liga-desliga de suas visões, com a exceção de que dessa vez o mundo continuava obedientemente ao seu redor. Apertou com força a porta, usando-a para manter-se de pé. Cícero. Aquilo fez sua cabeça doer.

- Quando foi isso?

- Ontem pela manhã.

- Ontem? Como ele está agora? Por que não me contou antes?

- Desculpa, realmente pensei que você já soubesse. Ele teve de fazer uma cirurgia de emergência, saiu há algumas horas. Liguei para o hospital e me disseram que já pode receber visitas.

- Ah... Tudo bem, vou só pegar um casaco. Pode esperar alguns minutos? Obrigada.

Nina fechou a porta devagar o suficiente para sequer ouvir o click da fechadura, e virou-se para a cozinha, se assustando ao encontrar Alex parado bem em sua frente, segurando seu casaco azul claro, como se estivesse alí o tempo inteiro.

- Já desliguei o fogo e guardei a comida na geladeira. Posso ir também?

Nina se sentia zonza demais pra pensar no quão estranha era a situação, por isso concordou vagamente e comentou com um riso seco, enquanto vestia o casaco:

- É tão deprimente que chega a ser engraçado, não é? Eu sempre acabo voltando praquele hospital.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!