Olhos De Aquarela escrita por Star


Capítulo 5
Declarações em uma noite de preto-e-branco




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Sussurros.

Muitos sussurros.

Nina não sabia dizer o que significavam. Eram como várias vozes ao mesmo tempo tagarelando em uma língua estranha, como aqueles dialetos satânicos de O exorcista, mas ainda assim era extremamente familiar. E vinha do alto.

Chegou a levar mais um minuto ou cinco até finalmente entender. O que ouvia não eram sussurros, era o ranger do seu ventilador velho. Ela estava de volta ao apartamento. Mas como? A última coisa da qual se lembrava era de ter desmaiado na recepção chamando por Alex, que continuava a ir embora... Era como um sonho confuso e frustrante. E será que realmente não foi? E se o encontro, o sorvete, o sábado todo não passou de um sonho? Era tão difícil conseguir lembrar realmente de qualquer coisa. A cabeça estava doendo, a velha dor de antes.

Mas não foi um sonho. É óbvio que não. E Nina só percebeu isso quando notou que apesar da escuridão amarga, estava enxergando alguma coisa. Quase fundido às trevas costumeiras, sem cores, apenas uns tons mais claros, e o movimento rápido. Tinha pás. O que era aquilo? Uma duas, três, quatro, nove pás... Não dá pra contar, rodava rápido demais, e rangia. Rodava e rangia. O som dos sussurros.

– Ah, o ventilador...

Nina levantou a mão. Não conseguiu tocá-lo. Estava mais alto do que parecia. Mas por que as coisas estavam tão escuras? Aonde foram as cores? Será que depois de tantos vai-e-vem de visões seus olhos pifaram em um meio termo?

Sentou-se na cama conhecida, dava pra ver parte das ondinhas brancas formadas pela sua movimentação no lençol desarrumado, graças a uma iluminação fraca vinda da varanda. Ela sorriu e puxou uma parte do lençol, as ondinhas se esticaram até sumir. Ao seu lado viu números em verde-brilhante flutuando em um retângulo duro. Nina analisou-o com as mãos e reconheceu o botão redondo no topo. O despertador. Como era triunfante a sensação de poder saber as horas sem tocá-lo e ouvir a voz programada.

– Finalmente você acordou.

A garota se assustou com a voz, por reflexo soltou o despertador que caiu sobre a própria perna. Toda a magia do descobrimento do mundo de seu próprio apartamento se foi.

– A-Alex?.

– Estava começando a achar que tinha te matado de vez.

– Foi você quem me trouxe aqui?

Ele balançou a cabeça. Ela riu, cansada.

– Você precisa seriamente parar de me salvar, estou começando a me sentir tão inútil quanto a princesa do Mário.

– Sabe como é, não consigo resistir quando uma garota desmaia dizendo que precisa de mim. E acredite ou não, isso não acontece todo dia.

Nina estremeceu, seu rosto começou a arder como se estivesse em brasa, tinha se esquecido da parte da imploração. Aquilo era humilhante demais para ser relembrado.

– Vai querer me explicar agora?

– Olha, Alex... Eu sei que você provavelmente não vai acreditar em uma palavra do que eu disser, e vai acabar me achando mais doida que agora, e talvez eu realmente seja, mas... Por favor, só ouve.

O garoto cruzou os braços e ergueu as sobrancelhas, um gesto mudo de estímulo.

– Alex, eu realmente era... Não, eu sou realmente cega. Durante dez anos da minha vida, eu fui cega e vivi cega nessa casa, com minha mãe, o porteiro, todo mundo. Mas quando eu conheci você... Eu não sei como isso pode ter acontecido, mas juro, eu voltei a enxergar! E quando você foi embora, as coisas escureceram de novo... Então eu percebi que toda vez que eu estou perto de você, eu consigo ver. Você faz meus olhos quererem funcionar. – O garoto desviou o olhar dela para o chão, e Nina se desesperou. – É impossível e insano, mas é verdade, juro que é! É como se... É como se só a sua presença já me curasse... Alex, você... Você acredita em mim, Alex?

Ela não havia percebido, mas agora estava ajoelhada na cama, chorando. E se ele não acreditasse? Ele iria ir embora. Ele nunca mais iria querer vê-la, afinal, é só mais uma garota doida e obcecada inventando desculpas doidas e obcecadas pra continuar perto dele. E por que ele não falava isso logo? Só continuava ali, olhando pro chão, enquanto Nina sentiu seu coração agoniado dando cambalhotas pela garganta.

– Nina – Alex começou, devagar. Nina prendeu a respiração, preparando-se para o choque das palavras que vieram no mesmo tom manso. – Alguma coisa realmente esquisita está acontecendo por aqui, isso eu posso dizer. Não estou dizendo que realmente acredito em você, na magia, no milagre, nem em fadas coloridas do arco-íris lunar que talvez eu esteja emanando pra você, só... Eu estava olhando o apartamento – e sinto muito por isso, mas é muito, muito chato ter que ficar esperando alguém voltar à consciência – e achei alguns livros em braile. Um diploma de quarta série na escola para alunos especiais. Uma vida toda registrada. Ninguém teria tanto trabalho de arranjar tudo isso se fosse somente uma brincadeira ou alucinação qualquer. Fora isso, eu não sou idiota, sou capaz de ver as suas crises sofridas e seus tiques nervosos sempre que fica perto da minha hora de ir embora.

– Então?

– Não me apresse, isso é complicado – Alex bronqueou, nervoso, fazendo a garota fungar e soltar um sorriso reprimido. - O que eu quero dizer é... Eu fico aqui, com você, até conseguirmos resolver isso tudo. Não acho uma boa ideia você passar tanto tempo sozinha nesse apartamento, mesmo. Vamos descobrir o que há. E nem pense em contar pra alguém ou pro hospital, vão pensar que andei te drogando pra me apossar do apartamento. Ninguém vai conseguir acreditar nisso mais do que eu.

Nina sentiu todo seu corpo miúdo mais leve por finalmente saber que todo sofrimento e confusão que ela passara nos últimos dias iria embora. Poderia encontrar uma explicação para tudo, mas, principalmente, poderia ficar longe da maldita escuridão. Soluçou de alívio e jogou-se contra o garoto abraçando-o apesar das suas reclamações, ela toda era felicidade pura.



Em meio a tanta emoção e do clima digno de novela, ao invés de uma trilha sonora melosa, soaram batidas leves na porta.



– Nina? Nina, você está acordada? Tá tudo bem?

A voz alta e um pouco grave era de Dani, não havia como confundir. Nina sentou-se de volta na cama, limpando as lágrimas do rosto com as mãos e secando na sua camisola, rindo e ao mesmo tempo tentando se recompor. Isso levou alguns segundos e mais batidas preocupadas na porta.

– Quer que eu vá atender? – Perguntou Alex, com um sorriso no rosto.

– Oh, não. – Nina percebeu que seu trabalho estava sendo inútil e resolveu puxar logo o lençol para secar o rosto – Não quero que Dani pense coisas erradas sobre nós. Sabe, um estranho dentro do meu apartamento, e eu aqui, toda acabada e de olho inchado... Não, não, isso, certamente não seria bom.

– Fica tranqüila, baixinha – Nina estremeceu. - Quem você acha que me ajudou a te trazer até aqui em cima?

Alex foi até a porta e cumprimentou a vizinha. Nina imaginou ter ouvido algo como “Está tudo bem, eu vou tomar conta dela, prometo”, mas a sua cabeça estava um pouco longe.

“Baixinha”

Pode parecer idiotice, mas aquilo soava extremamente familiar. Nina arrepiou-se por inteira pela forte sensação de que alguém já a chamara assim antes. Quem?

Uma pontada de dor amarga a atingiu no peito e seu coração se contraiu. Não sabia dizer, mas tinha a sensação certa de que algo muito ruim havia acontecido, também. O que?

Nina?

“Baixinha”

– Você tá legal, Nina?

“Ei baixinha, vamos brincar?”

Nina voltou a si e encontrou o rosto preocupado do seu novo companheiro e estranho anjo salvador. Não era para menos, pela quantidade de vezes que ela estava ficando fora do ar nos últimos dias. Nina abanou a mão e deu um sorriso fraco para acalmá-lo.

– Tá tudo bem, é só o alívio por finalmente ter conseguido falar com você. Ah, mas tem mais uma coisa. – Baixou o olhar, tão receosa quanto uma criança admitindo ter feito coisa errada. - Eu acho que... Quebrei meus olhos.

Alex franziu a testa.

– Como assim “quebrou” seus olhos?

– Antes, quando eu estava perto de você, eu conseguia enxergar tudo e muito bem. Mas agora as coisas ainda estão muito escuras. Acho que de tantas visões e não-visões acabei quebrando meus olhos.

Alex não pôde evitar de rir, jogar a cabeça pra trás e quase gargalhar daquela ingenuidade. Nina fechou a cara e bufou.

– Não tem graça!

– Tem, sim. Seus olhos não estão quebrados, Nina, só anoiteceu.

O garoto se dirigiu até o interruptor perto da porta e o ligou. As luzes do lustre se acenderam, renovando as cores dos móveis e afugentando as sombras. Nina colocou a mão no rosto, temendo que a luz fosse a machucar como das últimas vezes, mas isso não aconteceu. Não tinha como se queimar com a fraca luz de uma lâmpada.

– Vê? O sol se põe, tudo escurece. Acontece quando fica de noite. Fico surpreso que não saiba disso.

– Ah... Bem, eu sabia. – Defendeu-se, enquanto se encaminhava até a beirada da cama para poder se levantar. – Em teoria, só.

Nina olhava tudo com a empolgação de uma descoberta. As cores de seu apartamento possuíam um bom astral. Eva era certamente uma ótima decoradora. Ah, Eva! Agora finalmente poderia vê-la! Também poderia ver Dani! E Cícero! Todos aqueles com quem sempre convivera. Como será que eles eram?

A animação crescente no interior de Nina a impediu de perceber quando o garoto passou por ela até a porta da varanda.

– Vem cá, baixinha.

Nina seguiu a voz, a atenção ainda sendo roubada pelas pás verde-claro do ventilador, o tapete de cor azul forte, os travesseiros cor-de-rosa. Nada realmente combinava, mas criava um clima agradável. Virando o rosto para frente, o seu entusiasmo atingiu o clímax, e ela precisou segurar a respiração para captar a emoção da paisagem.

– Ah, meu Deus...

Era uma imensidão de azul escuro, com infinitos pontinhos brilhantes distribuídos aleatoriamente e um majestoso círculo de luz se sobressaindo em meio às nuvens roxas. A única vontade de Nina era se jogar, fazer parte de tudo aquilo, e quase podia senti-lo. O céu. O luar. As estrelas.

Só conseguiu voltar a si quando sentiu o muro da varanda batendo-lhe na altura da barriga, como um aviso de pare.

– Cuidado aí, baixinha. Não vai querer cair daqui logo agora, não é?

– Ah, Alex... É mais lindo do que tudo o que eu possa ter imaginado.

– Aproveite, porque de dia você não vai poder olhar tanto assim, ou então o sol vai fritar seus olhos.

– Por que o céu escurece?

– Porque... Sei lá, tem a ver com a rotação da Terra, alguma coisa assim.

– É como se cada pessoa tivesse seu próprio momento de escuridão... Mas ainda assim é injusto, elas têm alguma luz das estrelas.

– Mesmo que não pareça, todas as pessoas têm momentos de trevas, Nina. E todos também têm uma luz.

– Exceto eu. Até te encontrar, eu não tive luz alguma. Somente cores.

– Você teve, sim.

A garota virou o rosto para trás, confusa, e viu aqueles azuis profundos fixos em si.

– Do que você tá falando?

Ele sorriu, e desviou o olhar pro céu.

– Nada não. Com o tempo você entende.

Alex parecer perceber a insistência do olhar interrogativo da menina, pouco acostumada a não receber a resposta que queria, e suspirou, voltando-se para o apartamento.

– Não vai entrar agora? Já está bastante tarde, eu tô com sono.

Nina o seguiu, distraindo-se daquele comportamento estranho e lembrando-se do fato do apartamento somente ter dois quartos, um deles trancado, logo, só uma cama livre. Um sofá pequeno, sem colchão extra, sem outras alternativas além do tapete ou o chão da cozinha.

– Onde você vai dormir? Acho que se puxar as almofadas do sofá e cobrir com um cobertor dá pra chamar de confortável.

– Não, obrigado. Vou dormir na sua cama.

Ela parou, estática.

– Minha cama? Mas a minha cama é... – Assistiu Alex jogar-se sobre a cama bagunçada e empertigar-se sobre o lençol de florzinhas, fazendo a madeira ranger. - É minha cama! – Bradou, em um instinto protetor para com seus pertences. – E você não pode dormir aí! Vai... Vai infetar os meus lençóis com... Com esse seu cheiro de homem!

– Bem, minha donzela resmungona, no chão é que eu não vou ficar. – Sentou-se, lançando-lhe um olhar provocador. - E você, pretende dormir aonde?

– Na minha cama, é óbvio!

Alex chegou um pouco mais para o lado e deu tapinhas no espaço livre da cama. Nina corou, e apressou-se a acrescentar, quase aos gritos.

– Mas não com você aí!

– Bem, nesse caso – Deitou e acomodou-se melhor, com a cabeça sobre as mãos no travesseiro fofo, e fechou os olhos. – Boa sorte pra tentar me tirar daqui.
A garota bufou. Aquilo era inacreditável.

– Você... você é um péssimo hóspede!

– E você uma péssima hospedeira. Agora quietinha, o dia foi longo.

Nina ficou parada, processando a própria raiva e encarando o novo colega de quarto inconveniente que não fez nenhum gesto que revelasse que aquilo era só uma brincadeira, e que ela poderia dormir tranqüilamente – e sozinha – na própria cama. Por fim, pegou o travesseiro que sobrava, e deitou-se no chão. Não demorou muito até ser alcançada pelo pensamento de que “não é certo deixar uma pessoa qualquer mudar tanto a sua vida de uma hora pra outra”.

Pensando mais um pouco, chegou à uma conclusão mais ou menos satisfatória.

“Definitivamente, ele não é uma pessoa qualquer”

Se dormir no chão era o preço pelo seu resgate das trevas... Bem, que seja.









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