Olhos De Aquarela escrita por Star


Capítulo 6
O Cachorro, a Coala, a Vizinha e o Monstro




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Foi um sonho?



Não, não foi um sonho. Se fosse, teria sido o mais longo da história da humanidade. Mas não podia ser, porque suas costas doíam e Nina ainda estava no chão. E estava encarando, de vista turva, mas existente, grãos macios de poeira debaixo da sua cama.

Levantou-se fazendo alguns ossos estalarem, sentindo as conseqüências da noite mal dormida e deixou-se afundar na própria cama que havia lhe sido negada e agora parecia extremamente confortável e preciosa. Fechou os olhos, desejando ter sono o suficiente para conseguir dormir um pouco ali e consertar a dor nas costas, mas ao contrário de sono sentiu o colchão afundar ao redor da sua cabeça e a voz conhecida e marota demais pra um ser humano normal a despertou completamente.

– Você dorme demais, sabia?

Reabrindo os olhos, encontrou o rosto de sempre, encarando-a com um sorriso. Os cabelos loiros seguiam a gravidade pra baixo, e, se estivessem de pé, seria como aquela cena do beijo no filme do Homem-Aranha. Só que sem chuva, sem escadas, e sem beijo - ou aranhas.

– Sabia. Você falou isso ontem. Porém, considerando que dormi no chão, acho que mereço um tempo extra de sono. – Respondeu, tentando driblar o constrangimento na voz.

Aliás, constrangimento pelo quê? Nina recebia sinais confusos do seu corpo o tempo inteiro em que Alex estava por perto. Não sabia mais se devia confiar em si mesma. Fora o óbvio milagre dos seus olhos decidirem funcionar, havia a sensação gostosa dentro do seu estômago revirado quando estava perto dele, junto de um frequente frio gelado de constrangimento e nervoso. Sem dúvidas, aquilo só podia ser efeito da sua criação em cativeiro e o pouco costume de lidar com garotos. Ou de comida estragada. Com certeza comida estragada.

– Dormiu no chão porque quis. Eu te convidei pra vir dormir comigo – Alex encolheu os braços, ficando com os cotovelos apoiados no colchão, e seu rosto próximo demais, tanto que Nina quase sentia as madeixas douradas encostarem na sua bochecha e podia ver nitidamente os seus cílios dourados feito milho. – E é sério, você dorme demais. Ficou inconsciente ontem de manhã até a noite e ainda conseguiu dormir até agora. Nunca vi isso. Parece um coala.

– Que droga, não fique tão perto assim. – Resmungou, tirando os rostos de simetria e sentando-se na cama. Agora já se sentia com mais razão porque era óbvio que ele estava começando a se aproveitar da situação, o que ficava muito claro através do seu sorriso arrogante que aumentava cada vez mais. – E não me compare com um coala. Coalas comem as próprias fezes.

– É proteção maternal.

– São fezes.

– Deixa de ser cabeça dura, baixinha. – Se deliciou com um olhar zangado, e resolveu mudar logo de assunto antes que aquilo virasse uma seção de xingamentos. – Aonde nós vamos hoje?

– Hm? Como assim?

– É domingo e eu não pretendo passar o dia inteiro trancado aqui. Sou como um cachorro, você precisa me levar pra passear.

– Não acredito que chamou a si mesmo de cachorro.

– Exatamente. E se não me levar, vou fazer xixi nos móveis e roer seus sapatos.

Nina riu e se pôs a pensar sobre aonde poderiam ir. Não queria deixar seu companheiro entediado, nem fazer qualquer coisa que o levasse a sequer cogitar a idéia de desistir de toda sua maluquice e ir embora. Até que se tocou: Ela mesma não conhecia nada, somente o hospital. Quem gostaria de um passeio revigorante entre pessoas tossindo e sífilis?

– E aí? Alguma idéia?

– Na verdade, não consigo pensar em nada...

– Nesse caso, parece que vou ter que bancar o homem hoje. – Levantou-se, fazendo pose heróica - Ainda bem, porque não gosto muito de inverter os papéis. Eu levo você.

– Pra onde? – Perguntou, dividida entre a desconfiança por ter apanhado por uma vida inteira por ele nos últimos dias e pela animação de poder dar uma volta e conhecer mais do mundo onde vivia.

– Surpresa. Mas acho que você vai gostar. É só você trocar de roupa que já podemos sair.

Trocar de roupa?...

Nina olhou para si mesma. Estava usando uma camisola, mas não lembrava de tê-la colocado. Na verdade, não lembrava de ter trocado de roupa antes de... Sair na rua... Ela estava assim quando saiu? Balançou a cabeça. Mas é claro que não, oras. Só devia estar confusa por tanta coisa acontecer.

Procurou em gavetas uma muda de roupa que tivesse mais cores possíveis e foi ao banheiro para se trocar. Enquanto se enfiava pela blusa verde como o ventilador do quarto, deu por falta de algo. Nunca havia realmente visto antes aquele banheiro de ladrilhos azuis nas paredes e no chão, mas já estivera ali muitas vezes, e alguma coisa certamente estava faltando. Em cima do que ela reconheceu ser a pia, não havia nada, só um espaço branco descascado de tinta e sem ladrilhos.

– Estranho... – Passou os dedos pelo retângulo em branco na parede pelada. Antes não tinha uma coisa pendurada alí?

Consolou-se com a ideia de que tantos momentos fora do ar haviam a deixado realmente confusa e terminou de se trocar de vez.


Nina passava pelos corredores seguindo as paredes com as mãos. Mesmo que não precisasse disso, sentia que poderia se perder se parasse de contar as colunas. Quinze colunas até o elevador. Foi sempre assim que se guiou.


Alex andava do outro lado, e sempre que ela o olhava, ele estava sorrindo.

Os dois pararam em frente a uma parede, e logo que o garoto apertou o botão no painel de aço, duas portas “secretas” se abriram para uma caixinha pequena e de aço. O garoto entrou, ela não.

– O que é isso? – Perguntou, assustada, olhando para o interior do lado de fora.

– É um elevador, Nina. Você sempre andou nele.

– Negativo. Eu andava em um... Um piso mágico que subia e descia, não numa caixa assassina que vai pra sabe-se lá onde. – Nina decretou, assustada, e de repente todo o pânico de Eva para com elevadores parecia fazer muito sentido. Como as pessoas tinham coragem de se enfiar em uma coisa perigosa daquelas? A porta tentou se fechar, mas o garoto a impediu com os braços e os dois lados voltaram.

– Como assim “sabe-se lá onde”? Ela vai até a recepção!

– Eu não vou entrar nisso, Alex! – Bateu o pé, feito criança decidida. Ou, se preferir, uma mula empacada.

– Como você pretende descer, então? – Alex saiu de do elevador bem quando as portas se fechavam pela segunda vez e a caixa sumiu.

Nina olhou para os lados e reconheceu a porta que costumava usar às vezes. Apontou para ela, sem estar muito certa do nome escrito.

– Por ali!

– Pelas escadas? Nina, meu coala, não sei se já percebeu, mas você mora no oitavo andar! Oitavo! São oito lances de escada! OITO!

Ao terminar de falar, ela já estava indo para a porta, sem aparentemente ter-lhe ouvido ou dado qualquer atenção.

– Pra um cachorro, até que você é bem preguiçoso! – Riu, e começou a descer os degraus.

Alex não tinha outra escolha, a não ser segui-la.



Nina parou cinco lances de escadas depois, em frente à do andar onde estava escrito “3º Piso”.



– Alex, se importa se nós entrarmos aqui rapidinho? – Perguntou, enquanto abria a porta e dava uma olhada no corredor.

– Você vai mudar a sua ideia de entrar aí se eu disser que sim?

– Não.

– Imaginei.

Os dois entraram, Nina mais uma vez contando as colunas com os dedos pela parede.

– O que você vai fazer por aqui?

– Visitar a minha vizinha, a Dani. Acho que já falei dela.

Tomara que ela esteja em casa, pensou animada consigo mesma. Finalmente Nina iria conseguir ver como eram as pessoas que lhe cercavam, e queria que pelo menos Dani fosse uma das primeiras. Imaginou como sua vizinha cor-de-rosa seria, seus olhos, seus cabelos, suas mãos.

Conforme Alex e Nina entravam mais no corredor vozes discutindo ficavam mais altas e os dois resolveram não falar mais. Nina continuou andando, até que a origem das vozes ficou visível, e ela estancou. A contagem estava certa, só faltavam mais quatro colunas, e era em frente à última que havia um casal gritando. Por instinto, Nina se encolheu atrás de uma coluna, escondendo-se.

– Por que você-...

Sssh! – Bronqueou Nina, e fez sinal para que ele se escondesse também.

– PORRA, DANIELA, QUE TU FEZ COM MEU DINHEIRO? ENFIOU NO RABO, CACHORRA?

– AQUELE NÃO É SEU DINHEIRO, É MEU. MEU SALÁRIO. E EU NÃO VOU DAR MAIS NENHUM CENTAVO PRA VOCÊ.

– TÁ MALUCA? ESQUECEU COM QUEM TU TÁ FALANDO, VAGABUNDA? QUER QUE EU META UMA BALA NO TEU JOELHO PRA TE FAZER LEMBRAR?

– VAI PRO INFERNO, PAULO, SE QUISER FAZ ISSO DE UMA VEZ PORQUE EU NÃO ACEITO MAIS AMEAÇA TUA!

A mulher tentava parecer firme mas era visível que estava tremendo e com lágrimas brotando no canto dos seus olhos. O tal Paulo olhou de relance para trás, pareceu ter percebido que havia alguém espreitando. Com seus músculos impacientes, ele segurou a mulher pelo pescoço, apertando-a ponto de fazer parecer que não era nada além de um palito de dentes e ameaçou em um sussurro que Nina ainda conseguiu escutar.

– Escuta aqui, vagabunda ingrata. Por hoje eu vou embora. Vou te dar um tempo pra esfriar a cabeça e pensar melhor nessas tuas palavras. E eu quero o meu dinheiro, senão, você já sabe... – Apertou com mais força. Nina passou as mãos pelo próprio pescoço, tão agoniada como se fosse o seu.

Paulo a arremessou contra a porta e saiu andando pelo outro lado do corredor. A mulher deixada pra trás escorregou até o chão, com lágrimas engolidas, parecia a ponto de explodir.

Nina não conseguia mais ver aquilo.

– Vem, Alex... Vamos embora.

Virou-se para ir, mas a mão do garoto a puxou de volta pelo cotovelo.

– Nina. Você se lembra da conversa que tivemos na varanda?

A garota virou pra ele, sem entender. O que aquilo poderia ter a ver?

– Todas as pessoas têm seus momentos de escuridão. E todas precisam de uma luz – Explicou, refrescando-lhe a memória. – Esse é o momento da Dani. Ela precisa de uma luz. Ela precisa de você.

Nina olhou novamente para a vizinha, que lutava para não se entregar ao choro, e massageava a garganta dolorida.

– Alex... Eu não posso fazer nada.

– Errado. Você pode fazer muita diferença.

Nina o olhou novamente, o garoto estava sério, da forma em que ficava em raras vezes. Não conseguia entender tudo o que ele tentava lhe passar. Não fazia ideia do que ela, tão frágil e insignificante, que apenas ouvia a história turbulenta da vizinha sorrateiramente por tantos meses, poderia fazer agora

– Dani?

Nina chamou, devagar, e mesmo assim a mulher se assustou. Daniela levantou os olhos, e o alivio foi extremo ao ver que era Nina quem a chamava. Relaxou os músculos do corpo, e começou a limpar as lágrimas do seu rosto com as mangas do suéter azul que usava.

– Ah, olá, Nina. – Tentou disfarçar a voz, mas era possível perceber toda angústia e medo contidos em cada palavra.

Nina a analisou em silêncio. Tinha olhos escuros e vermelhos, o cabelo negro preso em um rabo-de-cavalo que quase chegava até a cintura, era magra, com alguns músculos nos braços, um de seus olhos mostrava um roxo tratado pouco inchado, e o suéter escondia não muito bem um hematoma verde pelo seu colo.

– Nina? – Ela chamou novamente.

– Ah, sim. Oi.

A vizinha parecia um pouco incomodada, e riu, nervosa, passando a manga do suéter largo pelo rosto.

– Que engraçado...

– O que foi?

– Por um segundo eu poderia jurar que você está me vendo.

Nina baixou os olhos e desejou ter pego algum de seus óculos escuros de cega antes de sair de casa. Seria estranho chegar assim, de repente, e avisar que voltou a ver como uma pessoa normal. Ainda mais levando em conta todos os problemas pelos quais Dani estava passando.

– Quem... quem era aquele homem que acabou de sair daqui? – Mudou o assunto, esforçando-se para manter o olhar em algum ponto vazio pelo carpete cinzento que cobria o chão. E ainda assim apressou-se a se explicar. – Eu ouvi vozes. Parecia zangado. Aconteceu alguma coisa?

– Oh, bem... Ele é... Era, meu namorado. Um enorme imbecil. Mas não precisa se preocupar com isso, eu sei cuidar bem de mim mesma.

– O que ele queria? – Insistiu, mesmo percebendo o desconforto por parte da morena.

– Não é nada, mesmo, você não precisa... – Apesar de todos os esforços, Dani não conseguiu terminar a frase, as lágrimas vieram antes, junto de um soluço alto e angustiado. Esfregava o suéter no rosto, mas tudo o que conseguia era deixá-lo mais vermelho. – Sinto muito, Nina, acho melhor eu... Eu...

Antes que pudesse perceber, estava chorando no ombro da garota a sua frente, em um abraço apertado. Nina a sentiu tremer, e aqueles braços a apertaram de volta. Ficaram assim por um longo e necessário instante, em que os únicos sons pelo corredor eram aqueles soluços e gemidos chorosos.

– Eu tô com tanto medo, Nina – A vizinha conseguiu dizer, na voz abafada contra o ombro da outra, entre enormes soluços. Nina a apertou com mais força contra si, sentindo o borrão cor-de-rosa tremer em seus braços. – Eu tenho medo do que ele pode fazer...






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Notas finais do capítulo

Reviews, comentários e tamagochis são sempre bem-vindos! Aceito até sinal de fumaça, só pra saber o que estão achando da história, de Nina e Alex, é realmente complicado escrever sem saber a opinião de vocês (mesmo que a história já esteja escrita mas VOCÊS ENTENDERAM A ANALOGIA DA COISA AUHSUHAUHSA)
E um bom feriado a todos. :)