Olhos De Aquarela escrita por Star


Capítulo 4
O Primeiro Sábado Colorido




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O dia tinha todo o clima esperado de um sábado. Sol quente sem chegar a ser insuportável, brisa fresca, pessoas animadas conversando pela rua. E um plano claro para a garota da escuridão.

Nina rolou pela cama e apanhou o telefone da escrivaninha, apertou o botão de chamada automática, esperou apenas dois toques e foi atendida.

– São Vicente de Paulo, bom dia, no que posso ajudar? – A recepcionista falou maquinalmente do outro lado da linha.

– Eu queria algumas informações sobre um voluntário do hospital... Por favor.

– Você tem o nome?

– Alex.

A mulher ficou em silêncio, como se estivesse esperando pelo resto da informação.

– Ah... Eu só sei o nome – Nina completou, meio constrangida.

– Sabe de que setor ele é? Ou o número de identificação?

– Desculpa, só sei o nome mesmo.

– Assim fica difícil. Não posso fazer muita coisa por você. Mas se não estiver com pressa pode deixar o seu número que eu entro em contato assim que der uma olhada nos arquivos.

O telefone mal se encaixou novamente no suporte, e o toque tilintou nos ouvidos de Nina.

– Alô?

– Senhorita Nina, tem um garoto aqui em baixo perguntando por você – Falou Cícero do outro lado da linha direta. – É mais do que óbvio que não vou deixa-lo subir. Eva provavelmente chamaria a polícia. Quer que eu chame?

– Garoto? ...Mas que garot-... Não, Cícero, deixa que eu mesma desço até aí.

Nina desligou o telefone, uma dúvida absurda cavando espaço pela sua mente. Seria ele? Por um lado não tinha crença o suficiente para dar atenção às suas ideias, por outro sabia que Cícero não lhe ligaria a menos que alguém insistisse muito e não conseguia dizer que outro homem no mundo poderia aparecer na sua vida tão de repente. O jornaleiro, talvez? Será que ela tinha esquecido de pagar alguma conta?

Nina deu os ombros e cobriu-se com um roupão antigo para descer, já que além da ansiedade a preguiça de trocar de roupa também era demais. À essas alturas da sua vida, não conseguia duvidar mais de nada.

Contrariando as aflições e regras maternas, Nina pegou o elevador. Quando as portas metálicas abriram para o térreo, todas suas dúvidas dela se acertaram. Havia uma luz no fim do túnel - ou no fim da portaria, caso você não esteja se sentindo exclusivamente poético hoje - que conforme ela se aproximava, contagiava todo o lugar. No foco central estava o garoto loiro, em roupas que pareciam pelo menos dois números maiores que ele.

– O que você está fazendo aqui? – Nina perguntou, assim que chegou mais perto, piscando várias vezes os olhos. Tantos momentos de luz e escuridão já começavam a se tornar conhecidos e ela quase se sentiu alegre por aquela pressão irritante puxando suas córneas para o cérebro.

– Que jeito mais grosseiro de se cumprimentar uma visita. – Ele falou, com ares de riso.

– Oi, bom dia, o que você está fazendo aqui? Como me encontrou? Preciso chamar a polícia?

– Não melhorou em nada, mas valeu a tentativa. Bem, hoje é sábado, então eu pensei em te levar pra tomar um sorvete.

Nina estreitou os olhos, desconfiada.

– Tomar um sorvete? Você veio até aqui pra me chamar pra tomar um sorvete?

– Exatamente. E você é quem vai pagar.

– Por que eu tenho que pagar? E como você sabia onde eu moro, afinal de contas?

– Sabe, eu fui expulso como voluntário do hospital por tratar uma paciente sem permissão. Ou seja, a culpa foi sua. Então o mínimo que você pode fazer é me pagar um sorvete. E eu puxei a sua ficha no hospital. Acho que isso também contribuiu para a minha expulsão. É, bem provável. Mas continua sendo culpa sua.

– Mas... Eu não tive nada a ver com aquilo! – Nina quase gritou, repentinamente indignada. - Você que simplesmente me arrastou pra um quarto lá e-...

O loiro inclinou-se para ela e interrompeu, sussurrando:

– Se continuar falando desse jeito, as pessoas vão acabar pensando que fizemos coisas erradas.

E indicou com a cabeça uma dona-de-casa que passava ao lado deles para a rua e os olhava de forma repreensiva. Alex deu uma piscadela para ela, a mulher fez uma cara mais feia ainda e apertou o passo. Nina esfregou o rosto nas mãos, sentindo-o esquentar de vergonha.

– Que droga, espero que não seja ninguém que a Eva conheça... – murmurou, apenas imaginando o apocalipse que seria se a sua mãe de assinatura descobrisse que seu bebê andava falando com garotos desconhecidos e muito atrevidos por aí.

– Tudo bem, então. Não foi culpa sua, foi minha. Mas podemos ir tomar o bendito sorvete? Eu pago. Você é difícil de se convencer, hein?

– Por que você quer tanto me arrastar pra rua? – Ela perguntou, desconfiada e raivosa pela vergonha passada.

– Porque é sábado, óbvio! – Alex lhe deu um peteleco na testa e Nina sentiu como se tivesse cinco anos (o que é meio irônico, já que ela não lembrava de forma alguma de quando tinha seus cinco anos). - Ninguém merece ficar enfiado dentro de casa em um sábado de sol, nem mesmo uma chata como você. Agora vamos logo, ou vou ter que te carregar?

Nina estreitou os olhos para ele.

– Você não faria isso.

O loiro se inclinou para ficar com o rosto na altura do dela e só então Nina percebeu que ele deveria ser pelo menos uma cabeça mais alto, as íris quase líquidas dos seus olhos azuis em cílios dourados gigantescos a encarando de modo perverso, e perguntou, travesso:

– Duvida de mim?

A garota sentiu um arrepio percorrer seu corpo e as suas pernas ficarem bambas. Espalmou a mão no rosto que a encarava e o empurrou pra trás.

– Tá legal, eu vou. Ainda tenho minhas dúvidas sobre o seu juízo. Ou se você sequer tem um. É melhor não arriscar.

Ele sorriu.

– Garota esperta.

Os dois já estavam um pouco longe na rua do prédio, Alex andava muito rápido. Nina ouviu alguém chamar o seu nome. Virando-se pra trás viu um senhor idoso de cabelos brancos escovados para trás tentando correr em sua direção em passinhos trôpegos e vacilantes. Ela podia ver sua boca se mover, mas estava longe demais para conseguir ouvir o que dizia.

Nina poderia ter pensado que ele estava correndo atrás de outras pessoas, se não estivessem somente ela e o loiro em toda a rua. Na verdade, tudo parecia muito estranho, como um pesadelo bem real. O senhor tombou de lado e apoiou-se na parede, sua mão velha e pesada segurando-se como podia na grade de um prédio enquanto respirava penosamente.

– Nina... Você não pode sair, Nina... Não deve...

Ela tentava se lembrar, achou-o familiar. Talvez pela voz grave, agora arfante. Um feixe de luz azul ofuscou a sua visão.

– Cícero... – Parou de andar, e iria voltar, para ajudá-lo.

Mas a mão do garoto a segurou antes que pudesse finalizar o pensamento e a obrigou a continuar andando.

– Não olhe para trás - Alex disse, estranhamente autoritário.

Nina o olhou e viu que pela primeira vez ele estava sério, seguindo em frente. A mão dele não apertava, mas a prendia de alguma forma que não conseguiu sequer pensar em se soltar, e ia a puxando, obrigando suas pernas a continuarem andando, e os olhos a prestarem atenção no caminho da frente, porque pela primeira vez conseguia ver para onde estava andando. Quando tentou lembrar disso, mais tarde, Nina não sabia dizer se tinha sonhado a coisa toda ou não. A memória parecia forçada, quase inventada. Como uma mentira que você repete vezes o suficiente até acreditar.

Lá atrás, o homem escorregou pela parede até cair sentado no chão, agora com as duas mãos sobre o coração. Não conseguia respirar.

XxX

– Muito bem, pode escolher. Mas não apele e peça uma barca gigante de nove sabores e dezessete tipos de cobertura, eu só trouxe alguns trocados. – Alex empurrou para a garota sentada na sua frente o cardápio plastificado enquanto falava.

Os dois estavam em uma das mesas redondas postas do lado de fora da lanchonete que ficava a poucas ruas de distância. A mesa tinha um guarda-sol fincado em um buraco no meio para que os clientes não sofressem insolação enquanto esperavam seus pedidos.

– Aaah, quantas opções... – Os olhos de Nina brilhavam enquanto deslizavam de cima a baixo pela cartela colorida. Pensou um pouco até descobrir que todos aqueles nomes não lhe traziam nada à memória. Buscou olhar para o Alex e pedir ajuda e o viu encarando-a como se estivesse se divertido pela sua felicidade infantil. - O que eu devo pedir?

– Não posso saber o que você quer. Diga, qual seu sorvete preferido?

Nina mordeu o lábio, também incapaz de responder.

– O que? Você nunca tomou sorvete na vida?

Agora ela se remexia na cadeira, estava ficando constrangida.

– Tomar eu já tomei, mas... Eu não me lembro dos nomes. Ou da aparência. Só me lembro do gosto.

– Tudo bem, então. Vamos pedir um de cada sabor.

– Você sabe que o slogan dessa lanchonete é “o melhor dos 37 sabores”, certo? – Ela perguntou, apontando para o grande letreiro verde com o nome do lugar e a frase mencionada em vermelho.

– Você não é cega de verdade, não é? – Alex perguntou e Nina abaixou sua mão timidamente, percebendo o quão descuidada era e recebendo a pergunta como um soco no estômago. Não tinha certeza do que responder.

– Por meio período – disse, pouco a vontade. - Ou quando chove. Coisas assim.

Houve silêncio por um ou dois instantes na mesa em que Nina se culpou solenemente por não ser capaz de inventar qualquer resposta melhor, até que para sua surpresa Alex acenou com o cardápio para uma das garçonetes, gritando como um enfermeiro em tempos de acidentes rodoviários:

– Por favor, senhoras, o clima ficou pesado, precisamos de sorvete aqui imediatamente! Juro por Deus, há um sábado em risco aqui!!


XXx

– E então? Foi um passeio divertido, não foi?

Alex perguntou quando os dois acabavam de chegar de volta à entrada do prédio. Os portões estavam estranhamente abertos, então ele a acompanhou até dentro da recepção.

– Eu não acredito que você me fez pagar – Nina resmungou.

– Claro, só você comeu.

– Mas você disse que eu podia pedir!

– É óbvio que podia, mas alguém tinha que pagar.

Nina fechou a cara, emburrada.

– Tá, não precisa ficar assim. Depois eu te dou um reembolso. E acho que agora é a minha deixa pra ir embora. Nos vemos por aí... Ou não. – Acenou, com um sorriso controlado, e dirigiu-se ao portão.

Tudo voltou a se repetir. A dor de cabeça, a escuridão tomando aos poucos conta da imagem como fogo corroendo o rolo de um filme, a pressão desumana no crânio, o sentimento de que algo vital estava sendo sugado para longe. Nina não achou que fosse capaz de suportar tanto desespero mais uma vez.

– Alex... Por favor, não vá embora... Eu preciso que você fique... – As palavras eram forçadas para fora com enorme dificuldade, mas ele não a estava ouvindo. Ele continuava andando para longe. Ela talvez estivesse de joelhos, ou caída, sentia tudo girar tanto que não sabia dizer.

A dor na cabeça era tão, tão insuportável, mas ela não poderia desistir.

– Alex... Eu preciso de você... Fica...

Ele ainda não havia se virado. Ele iria cruzar o portão. Ele ia embora, e nunca mais o veria novamente. Ela teria de conviver com a escuridão pelo resto da vida.

– Nina! O que houve com você?

A voz parecia tão longe e irreconhecível. Quem era? A inconsciência misericordiosa estava lentamente capturando-a para levá-la longe da dor.

– Alex... Eu preciso que você fique. Eu preciso de você. Por favor, não vá embora... Por favor, por favor... Está doendo tanto... Por favor, Alex...

A escuridão a abraçou.


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Notas finais do capítulo

Quem apareceu no último momento para socorrer Nina? Ela vai conseguir se encontrar com o garoto outra vez? E quem era o homem no portão, afinal?Todas respostas (e mais perguntas ainda) no próximo sábado (caso eu não tire uma nota tão ruim na UERJ que decida terminar com essa vida de burrinha miserável e me jogue na linha do trem ou coisa parecida (o que provavelmente não vai acontecer! (eu acho (OTIMISMO MIL VAMO PULAR GALERE!!!)))