Olhos De Aquarela escrita por Star


Capítulo 2
O Estranho Sem Cor




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Nina levou alguns segundos para perceber que estava acordada e de olhos abertos. Eu apaguei?, pensou. Seu corpo inteiro parecia meio dormente, como se estivesse mergulhada em gelatina. Apesar da fulminante dor na cabeça não existir mais uma simpática ressaca martelava a sua testa para que não se esquecesse dela tão cedo. Não fazia ideia de onde estava nem de quanto tempo tinha passado. Eu definitivamente apaguei.



Com algum cuidado, sentou-se onde estava e prestou atenção. O tecido sob seu corpo era liso, frio e duro, típico de colchões muito finos, e não ajudava muito o seu traseiro dolorido. O ar cheirava a desinfetante extraforte e álcool. O burburinho de vozes comedidas e educadas chegava meio abafado e com um pouco de esforço conseguiu captar alguns “a pediatria fica depois da escada”, “você tomou um choque no seu o que?”, “São Vicente de Paulo, boa tarde, a senhora tem algum convênio?”.

Nina suspirou, aliviada. Pelo menos estava no seu hospital favorito.

Agora, o que diabos havia acontecido? Nina e seu traseiro lembravam muito bem do tombo que levou por esbarrar em algum desconhecido babaca e apressado. A partir daí a memória parecia um sonho confuso, muito claro e colorido. Nina lembrava de ter visto o tal garoto. Nada de excepcional. Não fosse o pequeno inconveniente de ser declarada cega e de olhos inutilizáveis desde que se conhecia por gente.

Nina levou os dedos até os olhos, meio desconfiada, como que para se certificar de que ainda eram os seus velhos conhecidos, companheiros de muitos óculos escuros e tropeços pelo mundo, e sentiu algo áspero. Parte do seu rosto estava enfaixado com gaze e esparadrapos e ela mal percebeu. Arriscou timidamente puxar a venda.

– Droga, você de novo?!

Nina se assustou com a voz e baixou a mão rapidamente. Novamente não havia cor, ou som, ou vibração. Será que estava perdendo suas habilidades?

– Ah... Foi você! – Ela falou, depois de algum tempo testando seu avançado reconhecimento de voz, e logo ficou furiosa, que raios de cumprimento era aquele? – Você que me derrubou!

– Não precisa falar como se tivesse sido um atentado terrorista. Foi um acidente. - Pelo tom de voz, ele parecia constrangido. Bem, pelo menos isso.

– O que veio fazer aqui? – Nina acrescentou, irritada: - Por acaso está me perseguindo?

– Claro que não. Você é muito ingrata, sabia? Quando você apagou eu tive que te trazer pra cá.

Nina ficou calada, emburrada. Não iria agradecer por isso. Não teria desmaiado se não fosse por culpa dele, em primeiro lugar.

– E, de qualquer forma – ele continuou –, sou voluntário aqui no hospital.

– Pode tirar essa coisa de mim, então? – Apontou para o rosto, impaciente.

– Se prometer que vai dizer “obrigada”.

Ela bufou e cruzou os braços.

– Certo, mas antes eu preciso fazer umas perguntas de praxe. Sente alguma dor?

– Além dos meus ossos destruídos por você querer me atropelar?

– Continuando. Tontura?

– Não.

– Enjôo?

– Negativo.

– Consegue tocar a ponta do seu nariz com o dedo indicador da mão esquerda?

– Por acaso pareço bêbada?

– Quantos dedos têm aqui?

– Isso só pode ser piada.

– Ah, verdade, você é cega.

– Mesmo que não fosse. Estou com os olhos tapados, idiota. Agora anda logo e tira isso de mim, está começando a coçar.

– Você reclama demais, sabia?

Devagar, a venda nos seus olhos começou a afrouxar, até ser removida completamente.

Nina sentiu a luz esquentar suas pálpebras, e dessa vez teve o cuidado de abrir os olhos devagar. Por um segundo, tudo estava branco, mas as formas e contornos novamente foram surgindo, aos pouquinhos, como uma fotografia sendo revelada à luz vermelha. As paredes amareladas, uma mesa marrom grande e velha, o uniforme azul-claro do voluntário. Engraçado... Sempre achei que fossem verdes.

Estava tudo tão nítido, e era real. Ela estava enxergando. Aquela era alguma espécie de milagre absurdo e fantástico. Depois de dez anos no escuro...

– Eu sei que sou muito gato, não precisa se emocionar tanto assim – ela ouviu o ajudante assassino dizer, convencido, e desejou não ter uma companhia tão imbecil naquele momento surreal da sua vida. Ele balançou os braços e ela tentou focar nele, mas as lágrimas que escorriam tornavam tudo desesperadamente embaçado. – Ei. Tem certeza que você é cega?

– Eu sou cega. Seu idiota. – Nina fungou. - Eu... Não sei como isso tá acontecendo...

O foco foi se ajustando aos poucos, com a funcionalidade de um órgão pouco acostumado a ser usado. Nina viu milhares de cores se encaixando em uma forma única. O rosa claro de bebês cobria inteiro o voluntário, a cabeça era envolta em um tom amarelo que quase emitia luz própria e seus olhos eram um azul mais puro que o do uniforme de voluntário.

– Acho que estou ficando maluca – Nina balbuciou, a vista voltando a embaçar com tantas lágrimas, a cabeça ameaçava tombar para um dos lados, as mãos levantadas tentando buscar algum equilíbrio no ar, como se tantas cores e formas fossem substâncias tangíveis.

– Ah, droga. Por que só acontecem coisas ruins quando eu estou por perto? Desse jeito vou acabar matando você. Deita aí.

O garoto a empurrou de volta para cama e Nina esperneou contra a sua falta de delicadeza. Ele olhou pra trás, alerta, como se tivesse ouvido algo.

– Tem alguém vindo. O médico pode não gostar de eu ter tirado aquilo de você. Anda, coloca de volta! – Ele jogou o esparadrapo sobre o rosto emocionado dela, que fungou, parecendo totalmente insensível ao drama absurdo e choque de realidade em que Nina estava imersa.

– Há, nunca! –Nina atirou o esparadrapo de volta nele. - Nunca mais vou me atrever a fechar os olhos!

– Por favor! – Ele suplicou, desgrudando o papel do cabelo. - Se acontecer mais alguma coisa, eu posso acabar sendo expulso desse hospital!

Nina não tinha nem duas gotas de rebeldia correndo pelas suas veias. Muito menos o costume de não fazer o que lhe pediam, mesmo que fosse um estranho indelicado totalmente desmerecedor de qualquer misericórdia que quase lhe matou algumas horas atrás.

– Vai ficar me devendo uma. – Disse e pegou a gaze de volta, enrolando-a novamente sobre os olhos, ainda abertos, admirando pelo menos as frestas de luz que passavam entre as linhas de algodão. – O que você já fez de tão grave, afinal? Explodiu um prédio?

O voluntário não respondeu – se dirigia à porta. Nina ouviu um cumprimento dele ao médico, e depois nada.

As luzes se distorceram, e tudo voltou a escurecer. A dor maçante voltou, como se o seu crânio estivesse sendo apertado por mil toneladas de rochas.

– Droga, não de novo...! – Nina teve vontade de berrar, mas seu protesto só se fez dentro da própria mente, ecoando e batendo pesadamente em cada uma das suas células cerebrais.

Apertou os olhos com as palmas das mãos, tentando suportar a dor e ainda assim tentando mantê-los abertos. Pensou na sua vida inteira passada em luzes desligadas e na ilusão de cores e o desespero tomou conta.

Eu não posso voltar... Eu não posso voltar pra escuridão...

Ela gemeu de dor, se debatendo na cama gelada, não havia percebido que estava berrando como uma criança. O médico gritou por ajuda no corredor e logo o quarto estava cheio de dezenas de vozes de enfermeiras e mãos tentando segura-la por todos os lados.

E, de repente, tudo ficou claro, tão estupidamente claro que Nina quase sentiu a conclusão mais óbvia e improvável da sua vida bater nela e chama-la de imbecil.

O voluntário. O maldito voluntário. Ele foi embora e a escuridão voltou. Era ele.

De alguma forma ou de outra, ela precisava ficar perto dele.

O garoto.

Fazia muito sentido, um sentido quase diabólico. Quando estava perto dele, de alguma forma, conseguia enxergar. E era só ele dar as costas e, puf, vinham as trevas e aquela dor insuportável.

Nina pensou sobre isso durante a noite inteira, acordada no escuro solitário do seu apartamento, depois de devidamente garantir ao Seu Cícero de que só tinha passado mais de dez horas na rua porque viu uma loja com uns vestidos muito bonitinhos e tranquilizar o choro desesperado de Eva que ligou pra casa e não foi atendida vinte e sete vezes e já estava de malas prontas e passagem comprada pra voltar. E, depois da madrugada insone atendendo telefonemas de três em três horas de “não está tendo pesadelos, está, meu anjo?”, Nina sabia como chegar até o garoto.

Desceu as escadas até o terceiro andar – Eva não confiava em elevadores e sempre tinha lhe cotado histórias terríveis sobre a caixinha metálica de satanás – e entrou no primeiro corredor, passando os dedos pelas paredes enquanto andava, contando porta por porta, até parar no número 29.

Era a única dos quase cem vizinhos que Nina realmente sabia o nome, e, vamos por assim dizer, conhecia. A vizinha cor-de-rosa.

– Dani? – Chamou enquanto batia na porta, e achou melhor tentar algo menos informal.- Dona Daniela, tá em casa?

A porta se abriu por um borrão cor-de-rosa vibrante.

– O que é que você quer-... Ah, Nina, é você. – A vizinha relaxou e Nina viu o borrão rosa passar do tom marcante e agressivo para um mais claro e delicado. - Aconteceu alguma coisa?

– Não, não. Eu só preciso de um favor seu, Dani – sorriu, travessa.

– Venha, pode entrar. Sinto muito pela grosseria, mas eu pensei que era o meu namorado. O desgraçado está vindo me perturbar faz alguns dias, atrás de dinheiro.

Nina conheceu a vizinha cor-de-rosa quando sua mãe de assinatura se ofereceu para ajudá-la com as caixas de mudança e em troca, por pura simpatia ou por curiosidade em ver uma cega correndo atrás de uma bola, Dani tentou ensina-la a jogar basquete. Ainda Eva e Daniela se viam com frequência, geralmente para tomar café na varanda, as duas acreditando que a porta fechada seria o suficiente para evitar que Nina ouvisse quando a vizinha chorava porque o namorado a machucava.

– Aceita um suco, café ou qualquer coisa assim? Sei lá, um baseado, um copo de cachaça? Eu não tenho, mas dá pra arrumar fácil. E hoje o dia tá uma merda...

– Não, obrigada. – Nina andou até bater com a canela na estrutura macia do puf de pelúcia e derramou-se alí.

– E então? Qual era o favor?

– Você era uma jogadora de beiseboll, não é, Dani?

– Da liga amadora, mas sim.

Nina sorriu.

– Ainda tem o bastão?


xXx

O loiro deitado no chão com cheiro de naftalina suspirou, entediado. A parede ao seu lado estava cheia de desenhos em giz de cera e na mesma sala um grupinho de crianças sobre o tapete colorido brincava com os dinossauros de borracha do hospital.

Ele olhava fixo o relógio de pulso que segurava acima da sua cabeça, acompanhando os ponteiros que giravam ao contrário.

– Só mais algumas horas...


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Notas finais do capítulo

Qual vocês acham que é o plano secreto da Nina? Quem é o garoto misterioso? Não percam, no próximo capítulo! Tantaraam~~ aushuhahushuasDevo postar um capítulo novo todo final de semana (ou antes, se minha ansiedade não aguentar. Ela quase nunca aguenta. QUIETA, ANSIEDADE, DESCE DE CIMA DA MESA. AI MEU DEUS, COLOCA ESSA CALÇA DE VOLTA) então fiquem ligados! Me sinto uma apresentadora da tv globinho. Mas tamo aí pra isso.2 minutos de luto em homenagem à TV Globinho, por favor.Eu falei dois minutos.MEU DEUS, DÁ PRA ESPERAR?Ok, vai, próximo capítulo.