Olhos De Aquarela escrita por Star


Capítulo 1
Meu Mundo Borrado




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Você pode me chamar de Nina, todo mundo me chama assim. É claro que por "todo mundo" eu quero dizer a minha mãe de assinatura e o porteiro.

A minha vida começou há mais ou menos dez anos atrás, em um hospital. Não me lembro de nada que tenha acontecido antes. Nem de como fiquei assim, ou se já era. E nem mesmo da minha família original, ou se já tive alguma um dia.

Tudo o que sei é que eu nasci novamente na ala infantil do segundo maior hospital do Rio de Janeiro, com uns seis anos, algumas costelas fraturadas, tagarela, morta de fome. E na escuridão. Passei algum tempo encalhada na ala de internos, fazendo amizade com tubos de oxigênio e pacientes terminais até que o programa “Cuide de uma Criança Carente e Abandonada Você Também” me designou para uma mulher recentemente viúva e possivelmente instável, Eva, minha atual mãe de assinatura. É só digitar alguns papéis, dar muitas rubricas e bum, de repente você vira mãe de alguém. Eu tentei usar esse truque e fiz muitos papéis absolutamente sérios com minhas canetas cor-de-rosa provando que eu era legalmente mãe de uma pá de cachorrinhos que eu achava pela rua e arrastava até em casa, mas de algum jeito essa desculpa nunca colou. Apesar da nossa união ter sido feita por um monte de advogados e juízes que fediam a café, da sua obsessão por limpeza e da superproteção psicótica, eu poderia chamar Eva até mesmo de uma mãe legal.

Os anos se passaram e por alguma graça do destino eu continuo por aqui. Viva, absurdamente meiga, frequentemente faminta e na escuridão. Fugindo de lavar a louça nas quartas-feiras, odiando divisões com mais de dois números e com uma prateleira do guarda-roupa só pros óculos escuros estereotipados que todo mundo me dá de presente em todos os aniversários e feriados possíveis.

Agora que Eva vai viajar, não tenho muita ideia do que fazer. É claro, ela ainda tem a família dela - que não é a minha - e precisa cuidar dos seus pais doentes. Isso deve levar algumas semanas.

Acho que vou ter algum tempo pra passar sozinha.



Meu mundo borrado

– Já vai sair, senhorita Nina?

O porteiro falou com a voz intencionalmente alta, deixando claro que a tentativa da garota de passar despercebida pela portaria foi completamente inútil. Nina virou-se para ele, sorridente.

– Oh, sim, Cícero! Preciso passar no mercado, sabe, meus... Sucrilhos... meus sucrilhos acabaram! – Tentou, apesar de saber que Eva provavelmente tinha deixado ordens para o caso de uma fuga.

– Nina, Nina – O tom carregado do porteiro ao repreendê-la ainda era o mesmo de quando, anos atrás, ele a pegava roubando no jogo de damas. – Eva deixou ordens claras sobre você sair do prédio – Eu sabia! – E desde quando você come sucrilhos? Será possível que eu não valho uma desculpa melhor?

Nina não pôde deixar de rir, gostava muito do tom divertido do porteiro. Ele era... Azul. Um azul forte, amável e sereno. Mas logo fechou a cara, fazendo beicinho.

– Por favor, Cícero! Ela não pode esperar que eu passe quase um mês trancada naquele apartamento! E eu gosto de sucrilhos, tá? Eles são doces.

Nina o sentiu suspirar, condescende. Cícero era a figura mais próxima de um pai ou avô que tinha na sua vida, e como todo pai carinhoso ele não conseguia se impedir de fazer os seus gostos.

– Tudo bem, você pode ir.

O som do molho de chaves se balançando, e o portão velho rangendo ao abrir.

– Mas se contar para Eva vou dizer que você saiu correndo de mim e pulou o muro.

– Nós temos um muro? – Ela brincou e riu sozinha enquanto colocava os óculos escuros grandes e redondos. Tinha uma coleção enorme deles no seu quarto, ganhava no mínimo dois por ano e os detestava.

– Não quer que eu vá com você? - ele perguntou, preocupado, ao vê-la sair.

– Não precisa, Cícero – garantiu, com um enorme sorriso. – Eu vou ficar bem sozinha.

O dia estava abafado e as ruas movimentadas, como um painel escuro repleto de borrões de cores.

Nina adorava o som, as cores e as vibrações da rua nos fins de semana, especialmente por passar a maior parte dos dias com Eva dentro de casa. Adorava a sua mãe de assinatura, sem dúvidas, mas era difícil aguentar tanto amor superprotetor materno aos dezesseis anos de vida, idade em que os adolescentes mais sentem necessidade de expressar sua rebeldia e clamar pela própria liberdade usando muita maconha, dirigindo mal e entrando em depressão, como os programas da TV a cabo dizem. Além disso, Eva levava a maternidade tão a sério que Nina mal acreditava que realmente a tivesse deixado sozinha por duas semanas inteiras. In-te-i-ras. Sem ninguém contratado pra ser babá, sem uma coleira rastreadora, só a velha propina pro porteiro e a cartilha de "1001 lugares onde se esconder em caso de desastres naturais" que ela mesma escreveu. Secretamente Nina ficava esperando esbarrar com o borrão vermelho berrante que era sua mãe de assinatura em alguma esquina gritando ensandecidamente “COMO você tem a CORAGEM de sair SOZINHA na rua?! E SEM O CASACO!!!!!!”.

Por alguma sorte, Nina conseguiu pegar o ônibus sem ser arrastada de volta pra casa pela orelha pela sua mãe de assinatura usando barba e gorro para se passar por um sem-teto. Depois de passar a catraca, começou sua procura minuciosa por alguém que a pudesse ajudar. Não demorou muito e o encontrou. Um dourado meio desgastado e caloroso, envolto pela escuridão. Sentou-se ao seu lado e uma quantidade exagerada de perfume floral com notas de algodão encheu-lhe as narinas.

– A senhora pode me avisar quando chegarmos no centro? – Nina perguntou, um sorriso no rosto, e suas teorias foram mais uma vez confirmadas quando a vozinha simpática e levemente rouca respondeu:

– É claro, criança. Você me lembra minha neta, sabia? Mas o que faz com os óculos de sol? Hoje está meio nublado.

– Acho que fico bonita com eles, a senhora não acha? – Fez uma pose exagerada, mexendo nos cabelos macios.

A senhora ao seu lado soltou uma risadinha bem humorada e as duas conversaram até que o ônibus parou vinte minutos depois e ela lhe cutucou carinhosamente com a mãozinha enrugada.

– É aqui, criança, você já pode descer.

Nina despediu-se alegremente do borrão de cor dourado e foi se guiando pelos outros bancos até a porta de saída do ônibus. Ainda não tinha descido para o chão quando esbarrou pesadamente em algo, ou muito provavelmente alguém. Chocou-se contra uma pessoa que vinha na direção contrária, com bastante pressa, e da qual ela não havia percebido nenhuma cor, som ou vibração.

O esbarrão foi forte o suficiente para fazer com que Nina escorregasse da escada do ônibus e que os óculos se desencaixassem das suas orelhas. Nina caiu sentada no chão e quase pôde ouvir o som do seu cóccix se rachando, não mais alto que o seu gemido de dor.

– Cara, isso deve ter doído. Você tá legal?

Nina estava prestes a responder algum “desculpa, não te vi”, vindo direto da glândula muito ativa de humor negro lá dos fundos do seu cérebro quando sentiu uma pressão estranha e incômoda na cabeça. Em instantes, a luz inundou o seu campo de visão de forma que ela achou, ironicamente, que ficaria cega.

A imagem foi se formando aos poucos, de contornos e uma infinidade de tons diferentes de cores. Era algo. Alguém? Uma pessoa curvada na sua frente. Seu rosto. Olhos claros, quase da mesma cor do fundo que o cercava, escondidos atrás de mechas finas de um branco amarelado, tudo insuportavelmente brilhante.

Nina piscou com força, muitas e muitas vezes, como se pela primeira vez na vida descobrisse que tinha olhos e que podia usá-los. A confusão que se formava pelo processo novo de tanta informação a estava deixando zonza, quase bêbada.

– Eu... eu não... vi... você...

A pressão incômoda no seu crânio evoluiu para uma dor incrivelmente aguda, deixando os gritos de dor que seus ossos da bacia davam no chinelo, mas Nina não queria fechar os olhos. Não podia deixar que se fechassem.

O que viu em seguida foram todas as cores e formas girando vertiginosamente. Seus óculos caídos. O chão cinzento. E novamente a escuridão.


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Notas finais do capítulo

Então, galerinha do bem, bem-vindos à épica história de Nina, a ceguinha! (auhuhaséissoaívamoincentivarosoutrosafazerbullyingcomacriançaquenãoenxergamesmoadoroaminhavidauahsuhaus)Eu comecei a escrever essa história lá em 2009, em épocas mais puras e simples, em que eu ainda brincava de boneca e tinha medo do escuro (ainda faço as duas coisas, cadê a porra do meu amadurecimento). Tentei manter o meu estilo mais inocente antigo e resolvi reescreve-la consertando os buracos de minhoca da trama, porque essa foi a primeira grande história original que eu pensei na minha vida toda e meu espírito criacionista (e a Nina da minha cabeça) não ficaria em paz enquanto eu não lhe desse um fim (e acreditem ela me enche o diabo do saco). Se você me conhece de épocas mais antigas talvez lembre dessa história como Blind Love, a história da menina Sayuri, se não, bem, aproveite todas as aventuras e desventuras que estão por vir!É um prazer enorme te ter como um dos meus primeiros leitores. Por favor, sinta-se em casa. Nina adora visitas! (só não toque nos biscoitos. Sério. SÉRIO.)