Deuses e Diamantes escrita por André Tornado


Capítulo 30
Sacrifício.


Notas iniciais do capítulo

"Quando a altura chegar
Esquece todo o mal que fiz,
Ajuda-me a deixar
Alguns motivos para ser lembrado."
Linkin Park, Leave Out All The Rest



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Número 17 sacudiu a cabeça para afastar a névoa platinada que lhe toldava a fronte e lhe cortava a respiração. Esfregou a cara aflito, para se limpar da secreção peganhenta colada à pele. Pigarreou algumas vezes e arrancou da garganta uma massa de expetoração enegrecida, como se tivesse engolido cinzas, que cuspiu para o chão. Apercebeu-se, só então, que estava de joelhos. Fez um esforço e pôs-se de pé. Encontrou a irmã a olhar para ele desnorteada, com a cara lívida e lavada em suor, a pestanejar demasiado depressa. Bafos de vapor saíam-lhe dos lábios indicando uma acentuada descida da temperatura.

Levantou os braços para olhar para as mãos arranhadas. Sentiu-os pesados e enfraquecidos. Não percebia o que é que tinha acontecido. O príncipe e o namekusei-jin agiam da mesma maneira embrutecida e baralhada da irmã.

Escutou um restolhar, os sons de alguém a recuperar a consciência. Notou que era Ozilia, deitada de costas, espancada e arrasada. Arrepiou-se, procurou pelo diamante cor-de-rosa que ela usava, deu um passo na direção dela, retendo a respiração. Encontrou-o ainda sobre o peito, que subia e descia ao ritmo de uma respiração entrecortada, unido ao corpo dela, e sabia que os ferimentos eventualmente seriam curados e toda a dor banida. Era apenas uma questão de tempo, a recuperação iria acontecer. Se seria rápida, isso ele não conseguia saber, provavelmente menos rápida que um feijão senzu e se precisavam da criatura curada e em plena forma, sabia-o menos ainda. E como todos os problemas que o seu processador não era capaz de solucionar num tempo razoável, tendo em conta as variáveis em análise, foi de pronto esquecido e não se aproximou dela. O diamante bastaria, a presença dele só serviria para irritá-la.

- Acho que eles voltaram ao normal.

A frase vibrou no ar gelado como uma nota desafinada de uma harpa. Fora o filho mais velho de Son Goku que falara. Os dois fedelhos estavam suados, com as roupas amassadas e rasgadas, cansados e com uma cara apatetada, que era todavia diferente da atitude da irmã, do príncipe, do namekusei-jin e, provavelmente, dele próprio. Eles estavam literalmente perdidos, desajustados e desorientados. Aquele trio de saiya-jin arraçados não estava simplesmente a fazer o papel de idiota. Miravam-no a querer assegurar-se que estavam mesmo a vê-lo e que não era nenhuma estranha miragem.

Estava um frio de rachar. Número 17 olhou para o céu toldado de uma espessa camada de nuvens cinzentas e vermelhas, que criava uma cobertura que impedia qualquer tipo de calor de penetrar ali e restabelecer o ambiente tépido anterior. Os bafos de vapor quente saíam da sua boca e da boca de todos os outros, ajudando a criar um cenário cada vez mais assustador por ser estranho. Entreolhavam-se confusos, sem desejarem verdadeiramente arrancar a conversa que poderia esclarecer todas as dúvidas.

A resfolegar, Ozilia pôs-se de pé. Verificou o diamante que sustinha na ponta dos dedos, voltando-o de um lado para o outro, os olhos percorrendo cada centímetro à procura de alguma lasca fatal que a condicionaria dali por diante. Ignorava-os e número 17, que a espreitava pelo canto do olho, também a ignorou. Cruzou os braços.

O príncipe esfregava a cara com a mão metida na luva desfeita e olhava para o filho mais velho de Son Goku.

- Kuso! Foste tu que me bateste na cara?!

Gohan confirmou:

- Hai. Estavas possuído, Vegeta-san… Tu atacaste-me e tive de me defender.

- O que é que estás a dizer, rapaz?

O namekusei-jin adiantou, massajando o pescoço com uma mão:

- O pesadelo era demasiado real. O que quer dizer que não foi nenhum pesadelo. Estivemos mesmo a lutar uns contra os outros. As nossas verdadeiras almas estiveram longe daqui durante os combates mas, de algum modo, conseguimos ver o que estávamos a fazer.

Número 17 baixou a cabeça, incomodado com aquela explicação que resumia na perfeição o que tinha experimentado. Viu a irmã, tão reservada quanto ele, fazer o mesmo. Assim, julgavam eles, evitavam qualquer tipo de inquirição. Não lhe apetecia e palpitava-lhe que a número 18 também não, estar a relatar o que tinha vivenciado naqueles curtos minutos que começavam a diluir-se na mente.

Continuava um frio de rachar.

- ´Tousan… Já te sentes melhor? Pelo menos, já recuperaste os teus olhos.

O príncipe olhou para o fedelho dos cabelos lilases. Gohan explicou:

- Enquanto estiveram… hum, acho que enfeitiçados, no tal pesadelo, os vossos olhos estavam brancos, vazios. Como se vocês se tivessem transformado em corpos sem vida, animados por algum demónio.

- Mas agora já está tudo bem – sossegou Piccolo com alguma secura. Espreitou a deusa por cima do ombro.

- Só nós é que estivemos enfeitiçados? – O príncipe indicou, com um gesto largo que fez com o braço, o namekusei-jin e os dois humanos artificiais, incluindo-se obviamente no rol.

- Hai, Vegeta-san – respondeu Gohan.

- Tem lógica.

- E já não se vão deixar enfeitiçar outra vez? – Perguntou o fedelho dos cabelos espetados.

- Não sei! – Exclamou o príncipe exasperado.

- Eu não queria voltar a combater contigo, ojiisan.

- Tu também me bateste na cara?

- Tu querias bater no Trunks-kun e tive de defendê-lo.

- E tu também me bateste, Trunks?! – Berrou o príncipe, achando que tinha sido o saco de pancada geral.

O fedelho dos cabelos lilases negou com a cabeça.

- Hum-hum… – Baixou a cabeça de seguida, unindo os dedos indicadores, explicando acanhado: – Eu nunca iria conseguir bater em ti, ‘tousan.

- É uma pena, miúdo – censurou o príncipe ríspido. – Tu tens sangue saiya-jin nas veias. Deverás ser capaz de bater em qualquer um, enfrentar qualquer adversário, independentemente da sua identidade.

- Isso é mais fácil dizer, do que fazer.

- Queres que eu te prove?

- Vegeta-san! – Interrompeu Gohan. – Não estamos aqui para lutar uns contra os outros. Outra vez, não.

- A não ser que seja absolutamente necessário. – O príncipe apontou-lhe um dedo: – Estou a dever-te uma, não te esqueças.

Gohan suspirou, encolhendo os ombros.

- Onde está o Goku? – Perguntou Piccolo dirigindo-se a Ozilia, mas ela não lhe ligou a mínima. Tapava o diamante com a mão que pousava sobre o peito, tinha um sobrolho levantado e outro crispado, duas linhas irregulares desenhadas na testa, parecendo que estava a receber uma mensagem áudio num registo tão baixo que deveria empregar toda a sua concentração para perceber as palavras, porque era importante escutá-la.

- Provavelmente, ainda a combater Lux – respondeu o príncipe voltando a cabeça de um lado para o outro. – Ei… Onde raios está o tatami?

Número 17 ergueu os olhos e viu o que todos estavam a descobrir naquele momento. O recinto do torneio, o que incluía não apenas o tatami, mas os edifícios adjacentes, a bancada e o púlpito do mestre-de-cerimónias, tinham desaparecido, volatilizados por uma qualquer catástrofe que lhes passara despercebida. A acrescentar, estava um frio de rachar, tinham um manto de nuvens revoltas no céu e não tinham a certeza se ainda continuavam no mesmo sítio.

- Eu sinto o ki do meu pai – disse Gohan ansioso. – Ele está perto daqui.

- Eu também o sinto, ‘tousan – acrescentou o fedelho dos cabelos lilases e o fedelho dos cabelos espetados acenou afirmativamente, corroborando que também ele sentia a presença de Son Goku.

- Hai, Trunks – anuiu o príncipe inquieto.

Mas alguma coisa não estava igual e número 17 olhou para a irmã.

- Mesmo com toda a preparação, fomos surpreendidos – desabafou ela.

Ele não lhe soube dar uma resposta condizente.

- Têm razão. Então, ele continua a lutar contra Lux. – O namekusei-jin insistiu em captar a atenção da deusa. – Ozilia, o que é que se está a passar?

Ela soltou o diamante que não tinha o mesmo brilho de antes. A cara estava torcida numa expressão horrível de sofrimento e de fadiga. Concedeu em responder. As palavras saíram aos tropeções:

- O torneio… está quase a terminar. Os deuses… não está contentes. A ira do tirano será medonha e muitos inocentes irão sofrer… Por causa dessa ira…O diamante está a pedir ajuda, mas a ajuda nunca mais chega. E ele diz que confia em mim… Eu não posso fazer mais… Temos de ter esperança, mas no futuro não existe esperança. Apenas sombras e nuvens cinzentas e vermelhas.

- O que é que essa louca está a dizer? – Admirou-se o príncipe.

Número 17 não pode deixar de fazer a analogia entre as nuvens do céu e as nuvens do discurso dela.

- Ozilia, o meu pai precisa de ajuda? – Perguntou Gohan preocupado.

- Nós todos precisamos de ajuda.

Abriu os braços e de repente estava armada com a mesma lança que utilizara no combate contra Lux. Assemelhava-se a uma gata assanhada, transtornada pela tal mensagem que tinha acabado de receber. Ordenou num silvo ameaçador:

- Vocês, ficam aqui. Se me seguirem, é a vossa morte.

Saltou, furou o manto de nuvens cinzentas e vermelhas e desapareceu – deixou de estar à vista e o seu ki sumiu-se. Total e absolutamente desaparecida. Longe de qualquer alcance, físico ou sensorial.

- Eu também vou!

Piccolo agarrou no braço de Gohan.

- Não, espera.

- O meu pai precisa da nossa ajuda. Não percebeste, Piccolo-san? Solta-me!

- Não posso soltar-te. Estamos no mundo dos deuses e devemos seguir as regras deles. Sobretudo, os conselhos da única deusa que se mostrou, até à data, que está definitivamente do nosso lado.

O príncipe sorria, voltando o rosto para o céu pardo e rubro.

- Vocês, cobardes… Façam o que entenderem. Mas eu vou!

E saltou atrás de Ozilia. Também ele se perdeu depois de ter cruzado as nuvens.

- Otousan! – Gritou o fedelho dos cabelos lilases aflito.

O namekusei-jin ordenou mais assustado que autoritário:

- Todos quietos!

Mas número 17 descruzou os braços, sacudiu os ombros, sorriu para o cenário nublado que tanto atraíra o sangue guerreiro do príncipe dos saiya-jin, a promessa velada da deusa de um final emocionante daquela aventura descabida, mesmo que a tivesse travestido de uma ameaça mortal.

- Eu não vou ficar aqui ao lado dos pirralhos.

E também saltou.

A irmã saltou atrás dele, exclamando com um tom de alegre ansiedade:

- Não vais sem mim!

De repente, o frio de rachar terminou.

***

Son Goku estava suspenso no vazio, inerte, a oscilar como se fosse uma marioneta presa por fios elásticos. Tinha a cabeça pendurada, a cabeleira negra quando devia ter o tom aloirado dos super saiya-jin. Abandonava-se numa posição ereta que contrastava com a evidente falta de consciência. Mas o que era mais curioso eram os braços levantados para cima e uma espécie de bola azul baça, parecida a um recorte de papel mal feito, sem qualquer espécie de volume ou de energia, apesar de emular um ataque energético.

Número 17 viu-se sozinho diante de Son Goku num sítio que era branco como a neve, sem qualquer espécie de ponto de referência que lhe indicasse onde ficava a parte de cima e a parte de baixo. Era simplesmente tudo igual, branco. Um nada gigantesco.

Ali estavam ele, Son Goku, o recorte de papel azul e acabavam os pormenores que descreviam a cena.

Escutou um burburinho atrás de si. Para além de uma cortina ondulante, uma tela parcialmente transparente, vislumbrou dois vultos que discutiam. O primeiro, inconfundível, reconheceu-o como pertencendo a Ozilia. Brandia a lança e chegava a lutar com esta, utilizando-a como arma. O segundo vulto, que à partida ele julgou tratar-se de outro deus ou criatura similar, apesar de ter uma silhueta bem distinta, só foi capaz de perceber que era o príncipe dos saiya-jin quando lhe escutou a voz distorcida negando energicamente. O que estaria ele a recusar e por que razão estavam tão longe dele, que também tinha furado as nuvens, era inexplicável. Novo problema rejeitado pelo processador central.

Quando se voltou, recuou repentinamente, surpreendido.

Lux estava ali, à sua frente, pairando com elegância, mostrando-lhe um diamante preto que segurava com uma mão, dedos enclavinhados sobre a pedra morta. Número 17 reconheceu o diamante de Son Goku e estremeceu.

- Ele ainda não está totalmente acabado. Ainda há vida nele.

Falava, certamente, do diamante, não do inimigo. Número 17 notou que o diamante de Lux exibia-se com uma pujança inédita, alimentado pela energia do outro moribundo. Deveriam devorar-se, aqueles diamantes, aproveitando aqueles que eram mais fracos e que sucumbiam diante dos mais fortes. Uma lei que não lhe era totalmente repulsiva.

- Podes tentar. Ela quer que tentes… – Lux inclinou a cabeça um pouco para a esquerda. – Tão ingénua!

Um apito agudo feriu-lhe os ouvidos e número 17 tapou-os com as duas mãos, espetando os cotovelos.

O nada branco transformou-se no recinto do torneio. O tatami regressou, mais a bancada vazia com aquele balcão rebuscado destinado ao tirano dos deuses e o púlpito do mestre-de-cerimónias ocupado pelo seu legítimo dono anafado, permanentemente alheado e iminentemente profissional, mudo como uma coluna sem qualquer tipo de relevo ou característica distintiva.

Os céus não tinham a cobertura cinzenta e vermelha de nuvens que haviam arrefecido o ar. Tinham, isso sim, Son Goku de braços levantados, transformado em super saiya-jin, com uma bola azul de energia sobre os cabelos loiros espetados, à espera de ganhar volume, força e pujança. Por enquanto, era uma bola oca. Lux acabava de sová-lo. Número 17 sentiu o sangue a ferver. Apertou o punho direito.

Ela quer que tentes.

Lux recuava. Lançou o braço num movimento rápido, como uma segadeira, e arrancou o diamante separando-o de Son Goku. Houve um clarão alaranjado, um pedido mudo de socorro. Não era a mesma pedra preta que ele tinha visto, era antes dessa pedra preta e ele estava ali para tentar evitar esse desfecho.

Porque ela queria que ele tentasse.

Número 17 atacou Lux.

Cruzou os ares até ao deus como um míssil e desfechou-lhe um murro com o punho direito que apertara. Ouvia os arquejos de Son Goku, que tentava articular uma súplica, que lhe devolvessem o mais rápido possível o diamante, balbuciando qualquer coisa sobre um ataque definitivo que tinha aprendido com um deus de um planeta minúsculo. Número 17 não lhe ligou. Criou uma esfera de energia com a sua própria técnica dos braços levantados, mas esta não era azul, nem oca. Era amarela e encerrava o poder destrutivo de uma pequena estrela. Lançou-a contra Lux e viu-o a ser engolido pela explosão ainda mais amarela.

Son Goku implorou pelo diamante.

Número 17 mergulhou como uma ave de rapina sobre o tirano. Assou-o com outra esfera energética. E antes de Lux se conseguir levantar, arrancou-lhe o diamante da sua garra gananciosa.

Escutou o grito profundo de Son Goku que estrebuchava e viu, conseguiu vislumbrar, a aflição do saiya-jin a contorcer-se num sofrimento atroz dentro do diamante. A luz alaranjada que o envolvia, e que não era a aura dos super saiya-jin, convertia-se numa névoa negra.

Mas Lux não estava derrotado ainda. O gume de uma das espadas passou a milímetros da cabeça de número 17. Alguns fios pretos de cabelo passaram-lhe diante dos olhos, cortados pelo golpe inesperado do objeto afiado. Baixou-se, defendeu-se, contra-atacou, desferiu socos e pontapés, esquivou-se da dupla de espadas que assobiavam céleres, cortando o ar. Lux sorria, deliciado com o adversário que ousava enfrentá-lo.

Número 17 conseguiu pontapear-lhe um dos pulsos, a espada esquerdina voou para o horizonte. Estava sobre o tatami. As súplicas de Son Goku eram cada vez menos audíveis. Não se podia demorar.

Guardou o diamante no bolso das calças de ganga. Estendeu os braços e enviou uma rajada de ki que criou uma barreira luminosa que impediu os avanços de Lux. Saltou até ao lugar onde Son Goku pairava tal como o havia visto assim que furara as nuvens cinzentas e vermelhas – uma marioneta quebrada e sem vida, com um recorte de papel azul sobre a cabeça, entre os braços levantados. Enfiou-lhe o diamante pela túnica do dogi, devolvendo a pedra mágica ao seu legítimo dono.

- Esta é a segunda vez que te ajudo – confessou sorrindo, entre dentes.

Sentia-se, no entanto, satisfeito e apaziguado consigo próprio. Não se arrependia de ter enviado a sua energia, a sua contribuição para a derrota de Majin Bu. Não se arrependia de, agora, ter lutado contra Lux para recuperar o coração perdido do seu inimigo. A amarga realidade arrefeceu-lhe as entranhas. Ela queria que ele tentasse. Simplesmente… tentasse. Porque nunca o iria conseguir. O sorriso foi mais aberto, de puro orgulho. Haveria de desempenhar aquele papel fundamental na resolução do drama até ao fim e sem qualquer fímbria de medo. Afinal, ele era o mais forte do mundo, de qualquer mundo, até daquele onde os deuses reinavam.

O sorriso de número 17 apagou-se e exigiu, agarrando Son Goku pela túnica, sacudindo-o:

- Derrota este tirano miserável. Assim, terei a certeza que o meu sacrifício serviu para alguma coisa!

O urro de Lux vibrou-lhe nos ossos.

- Maldito!!!

Voltou-se e encarou o deus que vinha como um anjo mortífero para o cobrir com a sua maldição.

E entregou-se à luta.

O cenário reconstruiu-se repentinamente. Os lutadores da galáxia do Norte assistiam deslumbrados e preocupados ao combate entre o deus e o humano artificial. Son Goku recuperava lentamente, posto num dos cantos do palco, a aguardar a próxima entrada de cena que haveria de lhe pertencer, para finalizar a peça e receber os aplausos finais devidos ao grande herói do dia. Os esforços de todos haveriam de se resumir numa única figura. O lendário saiya-jin chamado Son Goku. Esforços e, claro, sacrifícios.

Número 17 riu-se com a ironia, ao receber aquele golpe que o entonteceu.

Tentou defender-se, mas tudo terminou, de forma abrupta.

Houve uma explosão. Sentiu o corpo incendiar-se por dentro, queimando-o com um líquido que lhe invadiu todas as células, implodindo-as uma por uma. E depois desse calor, um frio de rachar.

***

Número 18 gritou desesperada:

- 17!!!!

À medida que via o corpo do irmão despenhar-se do alto, sabendo que acontecia o pior dos desfechos.

Um instante de pausa, em que o grito reverberou na imagem estática, fazendo abanar a película fotográfica, um negativo de cores erradas, como se esta se refletisse na superfície de um lago agitado por uma pedrinha lançada por um garoto travesso.

Um instante de pausa…

Ozilia arrebatou número 17, encaixando-o num amplexo decidido e quente, como se apenas isso fosse garantia de o conseguir salvar – a sua decisão e o seu calor. Arrebatou-o ainda nos ares, antecipando a queda, aterrou com ele sobre as lajes polidas.

Ficaram os dois no centro do tatami.

- Baka! O que foste tu fazer?

Número 17 replicou com a voz fraca:

- Não sou menos que um saiya-jin.

- Não devias ter sido tu a lutar com Lux pela posse do diamante de Son Goku.

- Mas não querias… que eu tentasse?

- Não. Isso foi uma mentira de Lux! Eu sabia que tu…

- Que eu era inferior a qualquer saiya-jin.

- Não – negou furiosamente. – Não, não.

- Em tempos, fui mais poderoso que um saiya-jin. Mais poderoso que o imperador de todo o Universo chamado Freeza. O mais forte do mundo! – Riu-se com a boca a encher-se de sangue. – Vês? Consegui roubar o diamante a Lux. Pena que não tivesse sido o diamante dele… Mas também o conseguiria fazer. De certeza.

Ela calou-se. Ele perguntou:

- O que me querias dizer…?

- Nada. Esquece. Não é o momento para resolvermos problemas ou para alimentarmos dúvidas.

- Acho que este é o único momento… – e provocou – bela Ozilia.

Ela rosnou-lhe. Ele conformou-se:

- Mas vão mesmo ficar problemas por resolver e muitas dúvidas alimentadas.

O corpo sacudiu-se numa convulsão e ele fechou os olhos, aguentando a dor e a derradeira réstia de dignidade. Ela ameaçou:

- Não te atrevas a morrer nos meus braços…

Ele amolecia, arrefecia, encolhia-se resignado ao seu fado, mas não se arrependia. Partia como um guerreiro, tombado no campo de batalha, orgulhoso de ter recebido a estocada fatal de um deus. Não havia melhor maneira de fenecer para toda a eternidade. A lembrança dele seria sempre sublinhada pelo seu derradeiro ato de coragem e de altruísmo, bem vistas as coisas. Pois ele tinha-se sacrificado por aquele bando de idiotas, liderados pelo seu inimigo Son Goku e, em última análise, sacrificado por toda a galáxia do Norte.

Lágrimas finas desprendiam-se das pestanas de Ozilia, escorriam pelas faces pálidas. Ela já não usava o toucado de lutadora, nem envergava a couraça ou o traje de combate. O seu cabelo dourado e entrançado flutuava em redor da cabeça, vestia o vestido curto e calçava as botas peludas de quando ele a encontrara pela primeira vez, no santuário da floresta. E inexplicavelmente, o ki era o de uma corça. Estava bela, tal como os deuses a apelidavam. Era, efetivamente, bela, demasiado até. Ele nunca tinha conhecido uma criatura como ela e sentiu esse privilégio como uma bênção.

As lágrimas finas convertiam-se em gotas de cristal quando abandonavam a pele sedosa do rosto divino, tilintavam sobre as lajes numa melodia triste. Ele tentou esticar os dedos para sentir esse milagre, lágrimas que se transformavam em cristal. Ou simplesmente, lágrimas choradas por ela e para ele. Mas as forças eram mínimas e limitou-se a contemplá-la exangue.

- Não te atrevas a morrer nos meus braços. Tu não és digno da atenção de uma deusa. – Ela soluçou: – Humano patético.

Número 17 sorriu para Ozilia. Corrigiu-a num fio de voz:

- Artificial… por favor…

Ainda a sorrir, fechou os olhos devagar e entregou-se brandamente ao caminho escuro e sem retorno.

E foi assim que número 17 morreu.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Vitória.



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