Deuses e Diamantes escrita por André Tornado


Capítulo 19
Luz.


Notas iniciais do capítulo

"Um pouco de morte
Sem luto
Sem chamada de atenção
E sem aviso.
Querida... Uma ideia perigosa
Que quase faz sentido."
U2, Love Is Blindness



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Ela entreabriu os lábios devagar, quando ele lhe passou um dedo pela boca. Teve o instinto de morder, mas deteve-se e deixou-se acariciar. Ele queria provocar nela essa reação violenta, sabia como ela odiava aquele tipo de toque imbuído de uma sensualidade lânguida. Ou mesmo qualquer tipo de toque. Ela não gostava de ser tocada por ele e ele conhecia-lhe esse ponto fraco.

Afastou-se aborrecido, a suspirar alto. O que era inédito nele. Nunca o tinha ouvido suspirar. O seu pequeno estratagema reles fizera ricochete e ela reclinou-se entre as almofadas fofas, vitoriosa, aspirando o perfume que guardava nos grãos mágicos que tinha na mão direita.

– Senti a tua falta…

Outra coisa inédita. Ele sentia qualquer coisa.

Ozilia continuou de olhos fechados, embriagando-se no perfume e no ambiente diáfano daquele salão esplendoroso. Tudo era novo e perfeito, ela estava especialmente linda envolvida num vestido digno de uma deusa, mimada com joias. O seu diamante brilhava feliz, apesar de ela saber que não passava de uma ilusão encenada pelo tirano.

– Tu não precisas de mim.

– Pelo contrário, minha bela. Tu és o que eu mais preciso.

– Demonstraste-o perfeitamente quando enviaste o guerreiro assassino.

– Tinha a certeza que o derrotarias. Sempre confiei no teu poder.

Deslizou as mãos pela cintura dela e ela atirou fora os grãos mágicos, sacudindo a mão. Odiava aquela proximidade, a ousadia de ele julgar que ela lhe pertencia. Como tudo o resto, bastava um estalar de dedos, um pensamento, uma simples inspiração, tocar e era tudo dele. Mas sorriu-lhe e ele soltou uma gargalhada.

– Quando é que vais explodir, minha bela?

– Para ti? Nunca… Sabes que nunca farei o que queres.

– Porque recusaste o meu trono?

– Recusei a tua prisão, Lux.

– Era tão simples… Bastava que deixasses que eu te seduzisse. Iria dar-te aquilo com que sempre sonhaste.

– Eu nunca sonhei com nada.

– Ah… Que mentira tão deliciosa. E a tua boca fica ainda mais tentadora quando me mentes.

– Lux, afasta-te. Desiste desta fantasia.

– De ti ou do torneio?

– De ambos.

– Não posso.

– Porquê?

– Por causa de ti.

Ela sentiu um estremeção. Sacudiu os braços para se libertar, mas continuava presa na ilusão desmesurada de uma felicidade impossível. O tirano estava afastado do canapé onde ela se reclinava embriagada, sentando-se indolente num trono magnífico, um pé sobre o assento, brincando com um berlinde entre os dedos compridos. Ela compreendeu. A galáxia do Norte. Junto ao trono estava uma tigela transparente sobre um pedestal de vidro onde flutuavam outros berlindes.

– Basta uma ligeira pressão… – ameaçou ele de olhos semicerrados.

– Basta um simples desejo – contrapôs ela.

– Continuas a desafiar-me.

– Fá-lo-ei sempre, Lux.

– Quero que sejas a minha rainha.

– E eu quero que morras!

Ele soltou uma gargalhada. Então, já não estava afastado e olhava-a diretamente nos olhos, a roçar o nariz afilado no dela.

– Não acredito que tenhas sucumbido a esse estúpido sentimento chamado amor.

– Não sei do que falas, Lux.

– E como foste capaz de me trocar por um simples humano? Ele está aqui dentro, não está?

Rodava a pequena bola de vidro na ponta dos dedos junto à cara dela e ela via-a pelo canto do olho. Sempre adorara aqueles berlindes, o brilho escuro, os veios coloridos, os minúsculos pontos luminosos, as explosões que se sucediam. Havia vida dentro deles, sim. Uma vida insignificante que não sabia que era pertença de deuses mimados.

Ela riu-se.

– Ninguém me consegue conquistar. Tu sabes isso melhor do que ninguém, Lux.

Ele farejou-lhe o rosto dizendo:

– É aquele humano que te salvou na floresta. Estás disposta a abdicar de tudo por ele. Vais desistir da tua imortalidade por ele. Um abnegado sacrifício que, por mais grandioso que seja, não vai significar nada para qualquer um de nós. Nem para ti, sabes? E nem para eles, que tragédia! É tudo tão mesquinho… Pequeno. Mas agora que embarcaste na viagem, não voltas para trás e vais mesmo desistir de tudo por ele. Que comovente!

– Não sabes o que estás a dizer – contestou ela entre dentes.

Ele abriu-lhe a mão e depositou aí o berlinde da galáxia do Norte.

Contemplou-a demoradamente, quase apaixonadamente. Lux era o mais belo dos irmãos, se é que poderiam ser classificados assim, uma irmandade divina e perigosa, poderosa como nunca houvera nenhuma. Um triângulo de deuses invencíveis que se autossustentavam no processo de destruição dos mundos. Lux liderava, Valo era o mensageiro, Argia era o guerreiro.

– Salva-o.

Ela entreabriu os lábios, admirada com o pedido dele e ele beijou-a.

– Salva-o, Ozilia – murmurou-lhe ao ouvido.

E a fantasia desfez-se em bolhas luminosas e quentes.


***


Número 17 arquejou com o calor insuportável e abriu os braços para tentar segurar-se em alguma coisa sólida. Esperneou, debateu-se, mas só conseguiu aumentar o enjoo, o calor e aquela sensação aflitiva de estar preso no meio do vazio.

Depois, teve de lutar para não ser sugado para um lugar escuro. Estava a ser puxado por muitas mãos peganhentas, com mais de cinco dedos e grandes unhas partidas. Subiu o ki e foi capaz de desfazer os atacantes invisíveis, donos das mãos disformes.

O calor continuava insuportável. Olhou para todos os lados e só viu branco, claridade, um nada absoluto. Estava encharcado em suor. Arrancou o lenço vermelho, limpou a cara e atou-o na testa, cobrindo a cabeça e os cabelos pretos molhados, para mitigar a sensação quente de desconforto.

Ela apareceu e desafiou-o. Ele não estava com paciência e aceitou o desafio, disparando uma esfera de energia. Ela conseguiu sobreviver, contra todas as probabilidades e contra qualquer noção de bom senso. Ali, naquele mundo às avessas e estupidamente sobreaquecido, nada obedecia às normais leis da física.

Lutaram um contra o outro. Ele gostou, ela lutava bem. Sabia usar os punhos e tinha pernas ágeis e mortíferas. Mas ele era um androide de energia ilimitada e tinha os seus truques. Conseguiu atingi-la, conseguiu feri-la. O sangue dela salpicou-lhe a cara. Ele lambeu uma gota que estava no canto da boca. Ferro, vida e excitação, foi o que saboreou. Sorriu. Olhou para os nós dos dedos da mão direita e viu-os esfolados. O golpe fora bem aplicado, apesar de ele não se lembrar muito bem como a fizera sangrar.

Lançou a cabeça para trás a rir. Ele era o mais forte do mundo e recordava-se demasiado bem dessa náusea de força que um dia o encharcara e fizera-o crer na imortalidade.

Aquilo devia ser isso mesmo, pensou. A imortalidade.

Mesmo que fosse insuportavelmente quente.

Ela estava de costas para ele, vestindo a couraça dourada. Ele aproximou-se curioso. Mas antes que pudesse alcançá-la, ela mexeu os braços e os dois foram disparados por uma espiral matizada, onde choviam pétalas cor-de-rosa. Estavam dentro do diamante dela, o calor continuava a massacrá-lo. A impressão era excelente, contudo.

– O que é isto?

A pergunta dele vibrou no ar feito de cristal. Disse mais alto, disparando as palavras como balas:

– O que é isto, Ozilia?

Ela sorria-lhe triunfante.

– Nós vamos vencer o tirano? Isto é o nosso futuro glorioso!

– Não.

Era parecido, todavia, à glória de uma vitória memorável sobre o destino. Número 17 continuava a rir-se, tomado de uma loucura que o descontrolava. Libertou o ki, destruiu estrelas, criou buracos negros massivos. Os átomos fundiam-se na sua mão aberta e ele contemplava os seus feitos com a distância animosa de um deus.

– O meu mundo não tem limitações, já to tinha dito – dizia ela e a voz ecoava, baralhando as palavras, repetindo-as indefinidamente. – Não existe espaço, nem tempo. O que estás a experimentar é o meu mundo, sem as estúpidas encenações de Lux. Onde não existe comida ou a necessidade de comer. Onde não existe cansaço ou a necessidade de dormir. Onde não existe o Palácio do Tempo e os seus salões inventados. Este é o meu mundo.

– Magnífico!

– Sentes?

E ele estremeceu de prazer. O sorriso rasgava-lhe a cara alucinada.

Hai! E adoro sentir isto. Tanto… poder!!

Ela deu-lhe as mãos e rodopiaram juntos no vazio quente. Ele soltava gargalhadas selvagens, ela ria-se com ele. De mãos dadas completavam-se e uniam-se.

O diamante de Ozilia era o casulo deles, ali dentro estavam protegidos e não havia nada que os pudesse atingir, magoar ou destruir.


***


Lux tinha-lhe dito:

– Salva-o.

Isso só queria dizer uma coisa: ele estava condenado.

Ozilia só não sabia se isso se estenderia a todos os outros, também ao saiya-jin que tão voluntariosamente se dispusera a ajudá-la e que tinha um diamante dos deuses. Fechou a cabeça entre as mãos e soltou um grito de desespero. Como pairava no vácuo, não houve som a propagar-se e aquela dor não foi escutada por ninguém.

Limpou as lágrimas. Nunca tinha chorado, os deuses não choram, mas desde que tinha sido expulsa do seu mundo e da sua condição, que tinha feito muitas coisas novas. Ele tinha razão, era tudo demasiado mesquinho.

Abriu a mão e descobriu a pequena bola de vidro da galáxia do Norte.

Lux tinha-lhe dado essa vantagem.

Sorriu, apertando o berlinde com ganas.

Iria aproveitá-la até ao limite do seu engenho.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Inimigos.



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