Doppelgänger: Primeiro Dia escrita por Rauker


Capítulo 6
Capítulo 05 - Trote


Notas iniciais do capítulo

Agradeço a Shimada Saya pela betagem deste capítulo.



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A cerimônia se iniciava, uma cerimônia às avessas. Os participantes deveriam entrar em comum acordo; um grupo altivo, outro, submisso. Os chamados não deveriam ser recusados: ou “trotava” ou “trotava”. O calouro não tinha escolha, um calouro como Léo Ventura.

Somente alguns segundos depois de o pássaro ter voado, recupero-me das más impressões que ele deixou e saio de minha fantasiosa percepção da realidade. Sou novamente um calouro, gradualmente mais apreensivo, e não um garoto atemorizado por uma ave estranha. Deixarei esse acontecimento para trás, embora ache que não me esquecerei dele tão cedo.

O grupo de alunos sumiu, provavelmente estão em algum corredor dentro do prédio. Doze degraus a minha frente, sendo o sexto um patamar largo, me separam do interior do prédio. Alguns garotos conversam na entrada, as feições animadas e estimuladas por algum assunto empolgante (ou  ridiculamente bobo). Como estão usando o uniforme escolar — calça-jeans e a camisa cinza com a estampa de duas asas negras nas costas —, presumo serem veteranos. Então me recordo de mais um detalhe que tentei relegar até o momento, torcendo para que algo assim não ocorresse em Ventura, algo muito pior que a simples ansiedade de entrar numa classe nova, algo que morro de pavor: o trote.

Não entendo essas pessoas que querem se divertir ao custo da insegurança dos outros, às vezes humilhando-os. Se o calouro quiser entrar na brincadeira, o problema será dele. Mas aqueles que não se sentem à vontade nessa situação deveriam ser poupados.

Para meu desespero, noto um pote de tinta guache nas mãos de um dos alunos (claro sinal de que são troteiros). São quatro rapazes e todos aparentam idade suficiente para já terem terminado o ensino médio. Será que são repetentes? Reparo que, na verdade, todos estão providos de tinta guache, maldita munição a ser descarregada nos calouros. Eles permanecem conversando e rindo... De algo bobo, aposto. Tanto melhor! Continuem conversando e assim passarei despercebido por vocês!

Pensando dessa maneira, subo cautelosamente os últimos degraus, nervoso e inseguro. Passo ao lado deles, rezando para que minha presença passe despercebida. Não me atrevo a olhá-los nem mesmo de esguelha. O alívio é delicioso quando me afasto deles, ouvindo-os imersos em alguma conversa envolvendo “pegadas”. Ainda bem que deu certo! Não queria imaginar como seria minha cara pintada. Assim, o receio se esvai e dá lugar a uma tímida segurança.

Porém, uma mão encosta com força sobre meu ombro esquerdo. Que frio na barriga! Acontece o que eu temia. Giro a cabeça, assustado. Estou tão estupefato que só me recupero do susto a tempo de escutar suas palavras após alguns segundos. 

— … mudar um pouco o tom do seu rosto?  

Só pode ser brincadeira! Tive certeza de que eles não me viram,  de que estavam mergulhados demais na conversa para prestarem atenção na caminhada furtiva de um calouro. Mas não é o fim! Ainda posso me safar dessa se eu conversar com eles, porém a conversa não é o meu forte.  

— Não, não quero — digo ao adolescente ao meu lado, procurando não sentir raiva do sorriso brincalhão em seu rosto. Ele deve ter uns 18 ou 19 anos, cabeça raspada, olhos verdes, musculatura vistosa; parecia um cadete do exército. Tento reiniciar minha passada, mas a mão pousada no ombro insiste para que eu permaneça no lugar.

— Peraí, parceiro! Pra que a pressa? Deixa eu te explicar como funciona a parada. Você pode ver isso como uma brincadeira ruim, mas é só uma forma de se enturmar com o ambiente da escola, com as pessoas daqui. Uma brincadeirazinha que não vai te influenciar em nada.

O que ele disse e como ele disse me incomoda profundamente. Uma brincadeira irrelevante, né? É um completo imbecil! Um imbecil que só serve para causar problemas ao mundo já cheio de outros problemas. Algumas dessas brincadeiras às vezes traumatizam as pessoas ou até acabam em tragédia.

— Eu não gosto dessa brincadeira — rebato com raiva contida. O garoto me encara por um instante, avaliando seu próximo passo para insistir no trote, e diz:

— Tá certo, cara. Não sou muito chato com esse tipo de coisa. Se você não gosta, tá beleza. Não vou forçar isso se não gostar, tá me entendendo? Só uma contribuição pra nossa formatura no final do ano, e tá liberado.

— Contribuição? — pergunto, mesmo sabendo exatamente do que se trata.

— É, pode ser uma nota de cinco. Um pedágio pra se livrar do trote. Não vai te fazer falta!

A última frase encerra minha cara em indignação, impossível não deixar a raiva transparecer. Ele acha que eu nado em grana para tratar dinheiro de uma forma tão desprezível? “Não vai me fazer falta”? Que desgraçado! Minha mãe dá um duro danado por cada centavo para sustentar eu e minha irmã. Há ocasiões em que a Marcela nem tem dinheiro para a merenda na escola (eu mesmo raciono o lanche na escola). Economizamos o máximo possível, abrimos mão de muita coisa somente para sobreviver. Sim, a palavra é sobreviver, e não viver. Então, chega um cara e me diz que cinco reais não me farão falta? Isso me enfurece. Tenho tanta raiva que não posso contê-la dentro de mim. Preciso extravasá-la. Eu preciso...

— Vai à merda!

— Quê?! Qual é a tua, mané? Por acaso te xinguei? — pergunta o garoto, demonstrando ter um pavio bem curto. Permaneço quieto, sentindo ter cutucado a onça enquanto dentro de sua própria jaula. — Tava na moral aqui conversando contigo, pô. Tu é mó irritadinho! — Meu objetivo era sair ileso da tentativa de trote, mas parece que acabo de diminuir as chances disso acontecer.

— Qual é o rolo aí, Pastel? — indaga uma voz forte. Um dos garotos daquele grupo se aproxima e traz o resto consigo.

Procuro me desprender da mão que segura meu ombro, mas ela passa a segurar a camisa com tanta firmeza que a fuga se torna impossível. Enquanto isso, os três troteiros marcham até mim. O careca (apelidado pelos outros de Pastel) pronuncia minha sentença:

— Já era, moleque. Vai tomar o trote.

Meu estômago afunda.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo: 07 de abril.