Lúcia e eu nos recolhemos já tarde e nem sinal de Caspian ou de nossos irmãos. Pelo jeito, a reunião entrou pela madrugada. Na manhã seguinte, Lúcia entrou em meu quarto quando eu estava quase pronta para sair, trazendo empregados que carregavam bandejas.

–Podem deixá-las sobre a mesa, por favor. - disse ela, indicando o móvel. - Que bom que já está acordada, Su, estou morrendo de fome. Obrigada. - disse aos servos quando saíram. Entendendo meu olhar curioso, ela foi logo respondendo. - Encontrei com Pedro hoje cedo, a reunião terminou muito tarde e eles a retomariam muito cedo então não estariam no café da manhã. Então vim para comermos juntas. - sorriu.

–Excelente ideia. - sorri para ela, encaminhando-me para a mesa. - Pelo jeito, não está sendo fácil negociar com os calormanos.

–É, parece que não. Da forma como está indo, levará dias.

–E Ripchip? Deu notícias? - apanhei torradas.

–Ainda não. Pedro disse que como eles têm estado em reunião esse tempo todo, não houve tempo para ouvir deles qualquer informação fora da nossa presença, além do mais, Rip terá mais tempo para inspecionar os aposentos. Talvez tenhamos alguma notícia esta noite quando Caspian der uma pausa estratégica para descanso, é o tempo que eles usarão para debater entre si.

Concordei com a cabeça tomando um gole de suco.

–Mas diga, Lúcia. - mudei de assunto. - Notei que você têm estado bastante com Jake desde o baile de noivado. Ele sequer tem vindo conversar comigo. - contei. Lúcia corou um pouco. - Como estão sendo as coisas?

–Ah... - ela deu de ombros, não contendo o sorriso. - Apenas temos conversado bastante.

–Sei.

–É sério, Susana. - ela riu. - Bem, posso dizer que... er... Bem, talvez tenha... Sabe... começado a se formar um laço a mais... - ela corou ainda mais.

–Defina “um laço a mais”.

–Ora, Susana, o mesmo que apareceu entre você e Caspian segundos depois de se verem pela primeira vez. - ergueu as sobrancelhas.

–Sendo assim, acredito que em breve eu estarei fazendo mistério sobre seu vestido de noiva. - provoquei. Lúcia mostrou-me a língua, mas riu. - O que Jake anda fazendo quando você está comigo? - perguntei depois de alguns segundos.

–Ele decidiu treinar com Eustáquio. - respondeu. - Rip estava treinando-os, mas agora que ele está ocupado, Eustáquio está ensinando-o o pouco que aprendeu.

–Isso é bom. Podíamos ir até lá treinar com eles mais tarde. - comentei. - Sinto falta de usar o arco e...

–Não, senhora. - protestou Lúcia. - Temos muita coisa para ver ainda. Vamos chamar o Caspian no intervalo da reunião por que vocês precisam escolher as alianças, ainda vamos ver meu vestido com a costureira. Ah, e os meninos também tem que tirar as medidas! E...

–Lúcia... - tentei, mas ela não me deu ouvidos.

–Vamos receber os floristas hoje também, além de pensar na lista de doces e...

–Lúcia...

–E selecionar os aposentos para receber os convidados, planejar melhor a decoração do salão. Eu estava pensando, Su, que estamos em uma época sem chuvas, daí poderíamos fazer a cerimônia ao ar livre...

–Lúcia...

–Se o Caspian concordar, claro. Mas ele anda tão ocupado ultimamente que fico desconfortável em apresentar mais essa pra ele, mesmo sendo importante que ele participe, ou ele deixou tudo a cargo seu? Não, acho que não. Pelo jeito que as coisas entre vocês demoraram a se ajustar acho que ele gostaria de ficar a par dos detalhes, dar opinião...

–Lúcia! - chamei mais alto, fazendo-a parar finalmente.

–O que?!

Respirei fundo, para falar lentamente.

–Você quer ser minha dama de honra?

Jake

–Erga mais a espada, Jake. - orientou Eustáquio. Assim fiz. Estávamos treinando há algumas horas onde os soldados costumam fazê-lo, aos fundos do castelo, muitos ainda treinavam conosco dando dicas e tal, mas na maior parte do tempo éramos só Eustáquio e eu. Dois amadores descoordenados.

–Chega, pausa para água. - falei, secando o suor da testa com a manga da camisa. Fomos para a sombra onde deixamos os odres. Sentei-me no chão, exausto.

–Já cansado, Jake? - brincou Eustáquio.

–Só está muito quente. - falei com a respiração ofegante.

–Está mesmo. - concordou, tomando um gole de água. - Pena Rip não poder nos ajudar agora, ele está fazendo falta.

–Muita falta, vou acordar todo dolorido amanhã.

–Com o tempo você pega o jeito. - disse ele. - Fiquei assim no início também.

Assenti duas vezes e ficamos em silêncio, observando o campo.

–Será que Lúcia e Susana ainda estão ocupadas? - perguntou ele.

–Com certeza. Lúcia disse que elas tem muito trabalho a fazer.

–Falando na Lúcia, parece que as coisas entre vocês estão finalmente andando, não?

Sorri um pouco.

–Parece que sim. Mas o que eu queria mesmo era que ela tivesse escutado a música que fizemos para ela. - confessei.

–Ora, achei que você tinha desistido de mostrar-lhe a música. - comentou sem entender.

–Não, claro que não. Acontece que as partituras sumiram sem mais nem menos!

–Como assim? Não, Jake, elas não podem ter desaparecido por que estão comigo. - disse apontando para si mesmo. Meu coração acelerou de susto.

–O que?! - levantei-me num salto.

–Eu as peguei para ler, e esqueci de devolvê-las, então como não o vi procurando, nem me perguntou nada, achei que não as quisesse mais! - defendeu-se.

Senti que ia desfalecer para em seguida ficar zonzo e explodir com indignação.

–EUSTÁQUIO! - avancei contra ele.

–Calma! Calma, Jake! Me desculpa! - ele ergueu-se também, recuando, as mãos em sinal de rendição.

–SABE O QUE VOCÊ FEZ?! POR QUE TEVE QUE PEGAR AS PARTITURAS?! POR QUE?!

–Já d-disse, eu queria lê-las! S-só isso! - defendeu-se, a voz trêmula de medo.

–Só isso... - arfei. - Você estragou toda a surpresa que fiz para Lúcia, me fez brigar com Caspian e você diz “só isso”?! SÓ ISSO?!

–Por Aslam, Jake, se acalme! - suplicou. Antes de eu colocar as mãos no seu pescoço. Eustáquio, de pernas bambas, ajoelhou-se.

Segurei-me para não apertar-lhe o pescoço.

–ME TRAGA DE VOLTA! AGORA!

Susana

Depois de ver os olhos de Lúcia brilharem com meu convite, passamos às missões do dia. Começamos com os floristas que nos trouxeram amostras de diversas flores. Montamos diversos arranjos para decidir qual combinação ficava melhor para a decoração e buquê. Quando terminamos, a costureira já aguardava para tirar as medidas de Lúcia e escolher os tecidos. Teríamos uma costureira para cada um de nós tendo em vista que eram roupas de gala e tínhamos pouco tempo. Terminamos as medidas e pouco depois, na metade da tarde, houve o falado intervalo da reunião. Meus irmãos, Jake e Eustáquio, à contragosto, foram tirar suas medidas e descansar um pouco. Caspian também, mas não era tão à contragosto assim, ou pelo menos ele não demonstrou.

–Lúcia disse que ainda temos que ver as alianças. - comentou ele.

–Sim, temos. - respondi. - Mas você pode descansar, vemos outra hora.

–Não, não. - ele falou. - Quanto antes melhor.

–Não vou fugir, Cas. - eu ri.

–Eu sei, mas como eu disse, não quero que ninguém atrapalhe nossos planos.

–Certo, certo.

Na verdade, o joalheiro veio até nós, era o melhor dos anões no que fazia. Trouxe-nos diversos modelos, desde os mais simples até os mais exagerados. Quando fizemos nossa escolha, Caspian as manteve consigo. Como um singelo brinde do joalheiro, ele nos deu um pequeno frasco transparente cujo conteúdo ele disse servir para intensificar o brilho das alianças. Menos um item na lista de Lúcia.

Depois que Caspian guardou o frasco e as alianças em seus aposentos, quis ficar a par do andamento dos preparativos e comentou comigo o rumo da reunião, dizendo que os calormanos insistiam com coisas absurdas como se fossem a coisa mais normal do mundo, mas, claro, Caspian, Edmundo e Pedro não aceitariam nada que nos prejudicasse. Não importa o quanto nossos “futuros aliados” tentassem nem por quanto tempo, não sairiam bem às custas de Nárnia.

Um pouco depois, a reunião foi retomada e Lúcia e eu mergulhamos nos nossos preparativos mais uma vez, ocupando-nos até a noite. Ela continuou negando toda vez que eu suplicava para ver o vestido, alegando que uma Rainha de Nárnia não deveria ser tão perversamente cruel, mas ela ria e dizia que eu era A Gentil, não A Dramática. Embora eu ache que posso cair bem nesse papel.

Jake e Eustáquio, sem nada para fazer quando começou a escurecer, juntaram-se a nós na biblioteca conversando entre si num canto. Jake parecia emburrado com o outro, mas lhe dava atenção mesmo assim, Eustáquio parecia contar-lhe algo importante. Minha irmã e eu já tínhamos metade da decoração planejada quando Caspian e meus irmãos chegaram, já eram altas horas da noite.

–Aí estão vocês! - disse Edmundo.

–E então? - perguntou Lúcia, tão ansiosa quanto nós.

–É melhor irmos para um lugar mais reservado. - disse Pedro. - Rip está nos esperando no gabinete.

Assentimos. Lúcia e eu recolhemos nossa papelada e os seguimos. Ripchip nos aguardava lá, como Pedro dissera, acompanhado por um de seus homens e cutucou este para que se erguesse quando entramos. Rip parecia calmo, mas ao mesmo tempo preocupado. Caspian orientou aos guardas que guardavam o lugar para não permitirem que ninguém se aproximasse ou interrompesse e trancou a porta. Nos acomodamos no gabinete.

–Então, Rip – começou Lúcia. - Descobriu algo?

–Sim, Majestades – ele assentiu uma vez. - E devo alertá-los logo para que fiquem ainda mais atentos a estes calormanos.

–O que há de tão preocupante? - perguntou Edmundo.

–Bem, senhores – iniciou Rip. - como me foi ordenado, ficamos meus homens e eu a postos. Enquanto nossos hospedes estavam ausentes de seus aposentos, nos separamos para fiscalizar discretamente e ficamos escondidos quando eles estavam presentes para ouvir qualquer informação importante. Primeiro, quando estavam apenas três calormanos no castelo, fiquei eu mesmo responsável pelo Tisroc, mas não houve nada estranho em seus aposentos ou em qualquer coisa que ele tenha dito ou feito quando estava fora das vistas de todos. O mesmo aconteceu com seus acompanhantes. Porém as coisas mudaram quando os concelheiros chegaram. Nada com o Tisroc, mas com seus acompanhantes. - fez uma breve pausa e deu a vez para que seu soldado continuasse. Ele deu um passo a frente seguido de uma suave reverência.

–A Lady que o acompanhava, Majestades, recebeu certas encomendas de um dos concelheiros, Tashest, na primeira noite em que chegaram. Não pareceria suspeito se não tivesse acontecido na calada da noite. A primeira era um baú médio, mas infelizmente não descobri o que era a outra encomenda por que ela a manteve o tempo todo consigo. - explicou. - Quando ela saiu para a reunião no dia seguinte, fui logo verificar o que tinha no baú. Tive certa dificuldade com a tranca, mas consegui abrir e...

Ele fez uma breve pausa ansiosa segurando as próprias mãozinhas. Lançou um rápido olhar para Ripchip por cima do ombro. Rip assentiu uma vez para ele.

–Diga, Storm. - encorajou, parecendo um pouco pesaroso. Storm parecia nervoso, tomou coragem e falou.

–Haviam amuletos medonhos e frascos. - contou, parecendo ter um nó na garganta. - Além de... bem... um dos frascos tinha sangue fresco e na rolha estava amarrado um pequeno coldre com uma espada que tinha um símbolo idêntico ao de Damus e... Pela Juba do Leão... - o nó o travara de vez e Ripchip compadeceu-se dele como todos nós, tomando a frente para concluir.

–Damus, Majestades, era um dos nossos. Ele foi designado por mim para investigar lorde Tashest. - Rip fez uma pausa, respirando fundo diante de nossos olhos incrédulos. - Ele desapareceu na noite passada.

Lúcia cobriu a boca com o dorso de uma das mãos e eu senti meus olhos arderem.

–Está dizendo que...? - Edmundo não conseguiu concluir. Ripchip assentiu com pesar.

Engolimos em seco. Mais atrás de Rip, Storm estava de cabeça baixa, com certeza de luto pelo amigo perdido.

–Então já sabem que os estamos vigiando. - concluiu Pedro, apoiando-se com as mãos na mesa para no segundo seguinte socar a mesma. Houve um breve silêncio, uma dúvida surgiu em minha mente.

–Storm disse que ela tinha amuletos e frascos, então ela só pode ser uma...

–Bruxa. - completou Caspian. Vi Jake e Eustáquio trocarem um olhar, preocupados.

–Por que Tariq traria uma bruxa para acompanhá-lo até a corte narniana? - Edmundo falou, mesmo todos já sabendo a resposta.

–Agora entendo por que ele está tão indeciso quanto às clausulas. - disse Pedro olhando para Caspian.

–Ele está ganhando tempo para o que quer que tenha vindo fazer aqui. - apoiou Caspian.

Jake deu um cutucão em Eustáquio, empurrando para frente. Todos olharam para ele.

–Bem – começou. - Acho que ele já está fazendo o que veio fazer. - começou. Aguardamos que continuasse. - Hoje, quando Jake e eu demos uma pausa nos treinos, fomos à cozinha encher os odres. Ela estava lá.

–Na cozinha? - estranhei.

–Sim – disse Jake. - E foi a coisa mais bizarra. Os servos estavam lá trabalhando, mas ao mesmo tempo não estavam. Pareciam fora de si. Continuavam fazendo suas tarefas, mas tinham o olhar vago e os olhos um pouco arregalados. Ela não esperava nos ver ali, ficou completamente surpresa.

–Perguntamos se podíamos ajudar em alguma coisa – continuou Eustáquio. - Mas ela deu uma desculpa qualquer e saiu.

–Ela está rondando o castelo. - concluiu Lúcia. - Agora entendo por que já esbarrei com ela por aí várias vezes.

–Vocês não viram se ela fez qualquer outra coisa na cozinha, se estava segurando alguma coisa ou algo do tipo? - indagou Caspian. Jake e Eustáquio negaram com a cabeça.

–O que me intriga é por que ela estaria na cozinha. - comentou Edmundo. Um frio percorreu minha espinha.

–Por enquanto só haverá um evento para o qual a cozinha terá uma participação importante. - falei. Caspian olhou-me e pude ver que o mesmo frio na espinha correu por seu corpo. Todos entenderam.

–Temos que tirá-los daqui o quanto antes! - decretou Caspian. - Vamos acabar de vez com essa farsa!